Acordar. Acordar as crianças. Fazer o café da manhã. Correr para o banho. Correr para o trabalho. Almoçar em frente ao teclado. Entrar em uma reunião. Entrar em mais uma reunião. Discutir prazos com o chefe. Conferir os e-mails. Buscar as crianças. Levá-las na natação. Levá-las no balé. Levá-las no futebol. Dizer que, amanhã, não vai deixar de ir à academia. Preparar o jantar. Comer em frente à TV. Conferir, mais uma vez, os e-mails. Tomar banho. Deitar na cama antes de dormir e se perguntar quando a vida se tornou uma ocupação constante.
Reconhecer-se na lista de tarefas ao lado não é difícil. Em maior ou menor grau, a sensação é de que todos ao redor parecem, sempre, ocupados demais. Não importam os avanços tecnológicos ou as facilidades da vida prática, como máquinas de lavar ou smartphones com leitores de códigos de barras. A agenda parece ser um objeto feito apenas para ser mais preenchido e o tempo, sempre muito curto. Para Brigid Schulte, autora de Overwhelmed: work, love, and play when no one has the Time (sem tradução no Brasil), a sensação é de que estamos sufocados.
“Você sente que nunca tem tempo suficiente para fazer o que precisa e quer fazer. Sente-se apressado, pressionado pelo tempo, sua caixa de e-mail está transbordando, está atrasado no pagamento de algumas contas, está sempre se sentindo um pouco inadequado — como se nunca pudesse fazer o bastante no trabalho nem ser boa o suficiente em casa”, afirmou Schulte, em entrevista à Revista do Correio. Ela é uma das mais recentes escritoras a voltar o discurso para a compreensão das relações entre as pessoas e o tempo.
Ao explorar a própria agenda de tarefas diárias, Schulte começou uma pesquisa para analisar de que forma as previsões econômicas da primeira metade do século 20 — que davam como certo que os homens trabalhariam menos e poderiam se concentrar muito mais em seu próprio lazer — não se confirmaram. E como esse lazer se tornou um fardo para muitos, que, culpados por trabalharem demais, não conseguem se dar tempo para cuidarem de si mesmos, por terem de compensar o período em que ficam longe dos familiares. “Você fica acordado à noite, com os olhos bem abertos, mente zumbindo, pensando sobre o quão ocupado estava durante todo o dia, mesmo que não possa realmente recordar exatamente o que fez. Então, fica ruminando sobre todas as coisas que ainda tem para fazer em sua interminável agenda”, completa Schulte, definindo sua sensação ao começar a escrever o livro.
Como era de se esperar, ela viu que não está sozinha. “Acabei de almoçar como um trator, porque comi muito rápido. Minha irmã é médica e pede para que eu fique 15 minutos sem fazer nada após o almoço, mas não dá”, garante a servidora pública Rominna Jácome, 40 anos. O dia a dia tornou-se ainda mais cheio de afazeres quando o filho, hoje com 1 ano e meio, nasceu. “Acordo e dou mamadeira para ele. Entrego para a babá enquanto vou à academia ou faço alguma atividade física. Mas, lá, já começo a conferir os e-mails e a falar com minha equipe.” Quando o trabalho começa de fato é que o dia se perde no relógio.
Rominna faz parte do grupo que menos consegue aproveitar bem os momentos livres: as mães que trabalham. Em uma sociedade que ainda considera como lazer o tempo em que elas passam com os filhos, essas mulheres se sentem culpadas por não conseguirem encontrar um equilíbrio entre elas, a família e o trabalho. O que não parece ter diminuído, mesmo com o aumento do número daquelas que comandam as contas das casa. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no fim do ano passado, entre 2002 e 2012, a quantidade de mulheres que são chefes de família no Brasil quadruplicou. Antes, elas representavam 4,6%, passando para 19,4%.
“Esse discurso é uma armadilha. Na tentativa de fazer com que família e emprego interajam, as mulheres não reservam tempo para si mesmas e acabam arcando com obrigações familiares que também são trabalho”, afirma Tânia Casado, coordenadora do Programa de Orientação de Carreira (Procar) da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP) e Fundação Instituto de Administração (FIA). Para a pesquisadora, o serviço na família não pode ser confundido com tempo pessoal. “Isso gera uma culpa maior na mulher. Se está trabalhando e vai buscar o filho, ela teme que isso atrapalhe sua carreira. Se não vai buscá-lo na hora, sente-se mal como mãe por fazê-lo esperar. É preciso que essa questão seja tratada com equidade”, completa.
Para Brigid Schulte, é provável que essa relação já esteja se tornando balanceada. Segundo a autora, estamos na iminência de maior mudança nos papéis representados pelos gêneros em milênios. Agora, as mulheres estão mais informadas, assumindo postos de liderança na política, nas universidades e na vida pública, enquanto os homens têm abraçado seus papéis de cuidado dentro de casa como nunca haviam feito antes. “Mesmo assim, estamos assistindo a filmes antigos nas nossas cabeças, com um preconceito inconsciente sobre como as coisas ‘deveriam’ ser mais tradicionais. Portanto, não é surpreendente que estejamos confusas.”
Ainda hoje, Schulte continua, as mulheres são quem mais fazem os serviços domésticos e cuidam dos filhos, mesmo quando são as chefes da família. Isso faz com que, em um dia comum, elas tenham de mudar a chave de mulheres de negócios para donas de casa o tempo inteiro — como, por exemplo, quando você comanda uma reunião e, no meio dela, a escola do seu filho liga para dizer que ele está doente. “Esse papel de mudar ao longo do dia é algo que os homens não costumam fazer. E é cansativo.” Porém, ela aponta como interessante que, na pesquisa para o livro, tenha percebido que, cada vez mais, os homens têm relatado suas dificuldades em equilibrar o trabalho e a vida. “Acho que é um sinal de que as coisas estão mudando, embora lentamente. Como um sociólogo que estuda a transformações dos papéis dos gêneros me disse, a mudança social nunca vem em uma revolução, mas como um gotejamento lento.”
Os homens, claro, não podem ser considerados vilões, até porque também sabem das complicações das suas rotinas. O médico radiologista Antonino Mendes Ferreira Filho, 35 anos, é dono de uma clínica e garante não lembrar da última vez em que ficou menos de 10 horas trabalhando. Prestes a inaugurar outra unidade, a sensação é de que esse número vai aumentar. “O que percebo é que há uma linha entre dever e prazer que é muito difícil de funcionar. Para quem trabalha por contra própria, como eu, é complicado achar esses limites. Tarefas não podem ser adiadas, e isso se sobrepõe ao prazer. Você até pode ter permissão de não fazer nada, mas a cobrança hoje é tão alta que as obrigações sempre existem”, relata. Os momentos de lazer são poucos, já que também trabalha aos sábados. E, confessa, se pudesse ter um dia inteiro sem que as preocupações diárias tomassem seu pensamento, passaria 24 horas com a mulher e o filho. “São eles quem mais sofrem com meu dia a dia.”
O doutor em psicologia social e pesquisador do Instituto de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Wanderley Codo assegura que a dificuldade não é separar emprego e lazer, mas a impossibilidade, atualmente, de fazer uma distinção exata do que é trabalho e o que não é. “A jornada diária não existe mais. Antes, ela fazia uma demarcação importante: o que é trabalho e o que é vida pessoal. Na atualidade, o privado foi invadido pelo profissional.”
Para Codo, isso é um reflexo de uma mudança da nossa relação com o trabalho. Atualmente, garante, o ofício diário é permeado por afetividade e mais envolvente, já que nos divertimos fazendo algo que é necessário. Dessa forma, desenvolvem-se vínculos. “Não creio que isso seja algo ruim. Prefiro isso à alienação total. Melhor não termos jornada definida do que vivermos de vender nosso tempo.” Ele não nega que relações assim tendem a criar workaholics, causar um maior desprezo à família e mais exploração dos patrões. “Só que esses riscos são mais contrabalançados porque criamos vínculos mais sadios com o que trabalhamos. A divisão entre vida pessoal e trabalho é neurótica e impossível. Não há como não levarmos os problemas do serviço para a casa.” Ou vice-versa. E não importa quanto tempo passemos atarefados.
“A maternidade é algo que demanda 24 horas do nosso dia. Por isso, tento ser a melhor mãe que posso”, garante a servidora pública Roberta Queiroz Martins, 32 anos. Ela trabalha apenas meio expediente e, mesmo assim, considera seu dia recheado de afazeres que envolvem suas duas crianças. “Nos fins de semana, sempre fazemos programas com as crianças. Tanto que costumo dizer que descanso no trabalho. Mas, apesar do acesso que temos à tecnologia, que nos faça levar trabalho para casa, é preciso saber dosar.”
Em uma época na qual a conectividade permite que os empregados consigam se preocupar com trabalho mesmo fora dele, a tecnologia surge como um alvo fácil. “Hoje, vamos para casa já pensando no tempo que lá poderá ser usado para o trabalho”, afirma Tânia Casado. E isso cria a dúvida: estamos fazendo mais ou a mesma quantidade de serviço, porém usando o tempo de forma diferente? Para a especialista, a segunda opção é a válida. “As pessoas estão com uma falsa ideia de que se ocupam mais. Talvez elas estejam, na verdade, fazendo mau uso do tempo.”
Tânia explica que o propósito da tecnologia quem dá é o usuário. Dessa forma, ela pode ajudar ou não. “É preciso que seja feita uma reflexão: estamos usando o nosso tempo como deveríamos?” Mesmo que existam pontos que justificam uma diferença no uso do tempo atualmente — escolhas de trabalho mais alinhadas com prazeres da vida, mudanças na forma como os trabalhadores encaram a aposentadoria, entre outras —, Brigid Schulte manteve durante grande parte da produção do seu livro o questionamento: por que agora?
“Por que as pessoas se sentem mais sobrecarregadas, especialmente nos Estados Unidos, o país mais rico e poderoso do mundo? Fiquei especialmente intrigada que a Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica os EUA como o país mais ansioso do mundo. No entanto, não estamos no meio de uma guerra civil, nem estamos passando fome”, comenta. E, na sua pesquisa, acredita que a melhor resposta à questão veio de Huda Akil, neurocientista da Universidade de Michigan. Segundo ela conta, o professor explicou que cada época tem sua parcela de incerteza, ansiedade, estresse e opressão. A cada novo avanço na tecnologia — seja o lápis, seja a imprensa ou a internet — a vida parece que está acelerando e entrando em desgoverno. E estresse é causado por duas coisas: a incapacidade de prever e a falta de controle.
Para a época atual, a resposta surge na quantidade e na facilidade de acesso ao conhecimento. Por exemplo, esclarece Schulte, no passado, se a produção de um fazendeiro se perdesse, era estressante, mas não culpa dele. Ele poderia culpar a temperatura, Deus, etc. “Agora, há muitos mais de nós que são trabalhadores do conhecimento. É esperado que você saiba, seja capaz de controlar e prever quase tudo. Então, quando as coisas correm mal, a culpa é sua, não há mais ninguém para culpar. É tudo sobre você. Seja a falha realmente sua culpa ou não, há sempre a sensação de que ela é.”
Pode ser diferente? Há quem prove que sim. Empresária há três anos, Mayara Cristina Guimarães Pimenta, 27 anos, mantém o caixa em dia e, pelo sucesso na empreitada, está em vias de abrir mais duas lojas da sua franquia de restaurantes. Formada em educação física, sempre teve prazer em praticar esportes e, mesmo trabalhando diariamente, consegue organizar a rotina para praticar o futevôlei. “Hoje, minha rotina diária é bem tranquila. Preferi deixar as manhãs para mim mesma. Vou à academia, resolvo questões de casa e jogo futvôlei. À tarde, vou para a empresa. Lá, trabalho em tudo o que precisa ser feito.”
Claro que, no início, a situação era diferente. Ao abrir um negócio no qual não tinha experiência, precisou de meses para entender todo o funcionamento. “Chegava lá às 8h e saía quando fechava o caixa. Foi assim por cerca de seis meses. Depois, fui conhecendo mais os funcionários, pude delegar melhor as tarefas a eles, me organizando dentro do mês e criei minha rotina, que considero simples, pois quase todos os dias é a mesma coisa.”
Mesmo assim, Mayara garante que não se lembra de nenhum momento da vida em que tenha se sentido atarefada demais. Vê isso como um reflexo da sua personalidade e confessa que, em muitos momentos, sentiu-se pressionada pelos outros, por não parecer ocupada o suficiente, mesmo com o sucesso da empresa. “Tenho amigas também donas de restaurantes que não conseguem fazer o que eu faço. Viajar, jogar futevôlei, ficar no clube, sair com os amigos, almoços de domingo com a família, café da manhã juntos. Eu não quero deixar de fazer minhas coisas e, mesmo com três restaurantes, tempo eu vou achar.”
Planeje-se!
A autora Brigid Schulte hoje mantém uma série de práticas para lidar melhor com suas ocupações diárias:
Reconhecer-se na lista de tarefas ao lado não é difícil. Em maior ou menor grau, a sensação é de que todos ao redor parecem, sempre, ocupados demais. Não importam os avanços tecnológicos ou as facilidades da vida prática, como máquinas de lavar ou smartphones com leitores de códigos de barras. A agenda parece ser um objeto feito apenas para ser mais preenchido e o tempo, sempre muito curto. Para Brigid Schulte, autora de Overwhelmed: work, love, and play when no one has the Time (sem tradução no Brasil), a sensação é de que estamos sufocados.
“Você sente que nunca tem tempo suficiente para fazer o que precisa e quer fazer. Sente-se apressado, pressionado pelo tempo, sua caixa de e-mail está transbordando, está atrasado no pagamento de algumas contas, está sempre se sentindo um pouco inadequado — como se nunca pudesse fazer o bastante no trabalho nem ser boa o suficiente em casa”, afirmou Schulte, em entrevista à Revista do Correio. Ela é uma das mais recentes escritoras a voltar o discurso para a compreensão das relações entre as pessoas e o tempo.
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Como era de se esperar, ela viu que não está sozinha. “Acabei de almoçar como um trator, porque comi muito rápido. Minha irmã é médica e pede para que eu fique 15 minutos sem fazer nada após o almoço, mas não dá”, garante a servidora pública Rominna Jácome, 40 anos. O dia a dia tornou-se ainda mais cheio de afazeres quando o filho, hoje com 1 ano e meio, nasceu. “Acordo e dou mamadeira para ele. Entrego para a babá enquanto vou à academia ou faço alguma atividade física. Mas, lá, já começo a conferir os e-mails e a falar com minha equipe.” Quando o trabalho começa de fato é que o dia se perde no relógio.
Rominna faz parte do grupo que menos consegue aproveitar bem os momentos livres: as mães que trabalham. Em uma sociedade que ainda considera como lazer o tempo em que elas passam com os filhos, essas mulheres se sentem culpadas por não conseguirem encontrar um equilíbrio entre elas, a família e o trabalho. O que não parece ter diminuído, mesmo com o aumento do número daquelas que comandam as contas das casa. De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no fim do ano passado, entre 2002 e 2012, a quantidade de mulheres que são chefes de família no Brasil quadruplicou. Antes, elas representavam 4,6%, passando para 19,4%.
“Esse discurso é uma armadilha. Na tentativa de fazer com que família e emprego interajam, as mulheres não reservam tempo para si mesmas e acabam arcando com obrigações familiares que também são trabalho”, afirma Tânia Casado, coordenadora do Programa de Orientação de Carreira (Procar) da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP) e Fundação Instituto de Administração (FIA). Para a pesquisadora, o serviço na família não pode ser confundido com tempo pessoal. “Isso gera uma culpa maior na mulher. Se está trabalhando e vai buscar o filho, ela teme que isso atrapalhe sua carreira. Se não vai buscá-lo na hora, sente-se mal como mãe por fazê-lo esperar. É preciso que essa questão seja tratada com equidade”, completa.
Para Brigid Schulte, é provável que essa relação já esteja se tornando balanceada. Segundo a autora, estamos na iminência de maior mudança nos papéis representados pelos gêneros em milênios. Agora, as mulheres estão mais informadas, assumindo postos de liderança na política, nas universidades e na vida pública, enquanto os homens têm abraçado seus papéis de cuidado dentro de casa como nunca haviam feito antes. “Mesmo assim, estamos assistindo a filmes antigos nas nossas cabeças, com um preconceito inconsciente sobre como as coisas ‘deveriam’ ser mais tradicionais. Portanto, não é surpreendente que estejamos confusas.”
Ainda hoje, Schulte continua, as mulheres são quem mais fazem os serviços domésticos e cuidam dos filhos, mesmo quando são as chefes da família. Isso faz com que, em um dia comum, elas tenham de mudar a chave de mulheres de negócios para donas de casa o tempo inteiro — como, por exemplo, quando você comanda uma reunião e, no meio dela, a escola do seu filho liga para dizer que ele está doente. “Esse papel de mudar ao longo do dia é algo que os homens não costumam fazer. E é cansativo.” Porém, ela aponta como interessante que, na pesquisa para o livro, tenha percebido que, cada vez mais, os homens têm relatado suas dificuldades em equilibrar o trabalho e a vida. “Acho que é um sinal de que as coisas estão mudando, embora lentamente. Como um sociólogo que estuda a transformações dos papéis dos gêneros me disse, a mudança social nunca vem em uma revolução, mas como um gotejamento lento.”
Os homens, claro, não podem ser considerados vilões, até porque também sabem das complicações das suas rotinas. O médico radiologista Antonino Mendes Ferreira Filho, 35 anos, é dono de uma clínica e garante não lembrar da última vez em que ficou menos de 10 horas trabalhando. Prestes a inaugurar outra unidade, a sensação é de que esse número vai aumentar. “O que percebo é que há uma linha entre dever e prazer que é muito difícil de funcionar. Para quem trabalha por contra própria, como eu, é complicado achar esses limites. Tarefas não podem ser adiadas, e isso se sobrepõe ao prazer. Você até pode ter permissão de não fazer nada, mas a cobrança hoje é tão alta que as obrigações sempre existem”, relata. Os momentos de lazer são poucos, já que também trabalha aos sábados. E, confessa, se pudesse ter um dia inteiro sem que as preocupações diárias tomassem seu pensamento, passaria 24 horas com a mulher e o filho. “São eles quem mais sofrem com meu dia a dia.”
O doutor em psicologia social e pesquisador do Instituto de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Wanderley Codo assegura que a dificuldade não é separar emprego e lazer, mas a impossibilidade, atualmente, de fazer uma distinção exata do que é trabalho e o que não é. “A jornada diária não existe mais. Antes, ela fazia uma demarcação importante: o que é trabalho e o que é vida pessoal. Na atualidade, o privado foi invadido pelo profissional.”
Para Codo, isso é um reflexo de uma mudança da nossa relação com o trabalho. Atualmente, garante, o ofício diário é permeado por afetividade e mais envolvente, já que nos divertimos fazendo algo que é necessário. Dessa forma, desenvolvem-se vínculos. “Não creio que isso seja algo ruim. Prefiro isso à alienação total. Melhor não termos jornada definida do que vivermos de vender nosso tempo.” Ele não nega que relações assim tendem a criar workaholics, causar um maior desprezo à família e mais exploração dos patrões. “Só que esses riscos são mais contrabalançados porque criamos vínculos mais sadios com o que trabalhamos. A divisão entre vida pessoal e trabalho é neurótica e impossível. Não há como não levarmos os problemas do serviço para a casa.” Ou vice-versa. E não importa quanto tempo passemos atarefados.
“A maternidade é algo que demanda 24 horas do nosso dia. Por isso, tento ser a melhor mãe que posso”, garante a servidora pública Roberta Queiroz Martins, 32 anos. Ela trabalha apenas meio expediente e, mesmo assim, considera seu dia recheado de afazeres que envolvem suas duas crianças. “Nos fins de semana, sempre fazemos programas com as crianças. Tanto que costumo dizer que descanso no trabalho. Mas, apesar do acesso que temos à tecnologia, que nos faça levar trabalho para casa, é preciso saber dosar.”
Em uma época na qual a conectividade permite que os empregados consigam se preocupar com trabalho mesmo fora dele, a tecnologia surge como um alvo fácil. “Hoje, vamos para casa já pensando no tempo que lá poderá ser usado para o trabalho”, afirma Tânia Casado. E isso cria a dúvida: estamos fazendo mais ou a mesma quantidade de serviço, porém usando o tempo de forma diferente? Para a especialista, a segunda opção é a válida. “As pessoas estão com uma falsa ideia de que se ocupam mais. Talvez elas estejam, na verdade, fazendo mau uso do tempo.”
Tânia explica que o propósito da tecnologia quem dá é o usuário. Dessa forma, ela pode ajudar ou não. “É preciso que seja feita uma reflexão: estamos usando o nosso tempo como deveríamos?” Mesmo que existam pontos que justificam uma diferença no uso do tempo atualmente — escolhas de trabalho mais alinhadas com prazeres da vida, mudanças na forma como os trabalhadores encaram a aposentadoria, entre outras —, Brigid Schulte manteve durante grande parte da produção do seu livro o questionamento: por que agora?
“Por que as pessoas se sentem mais sobrecarregadas, especialmente nos Estados Unidos, o país mais rico e poderoso do mundo? Fiquei especialmente intrigada que a Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica os EUA como o país mais ansioso do mundo. No entanto, não estamos no meio de uma guerra civil, nem estamos passando fome”, comenta. E, na sua pesquisa, acredita que a melhor resposta à questão veio de Huda Akil, neurocientista da Universidade de Michigan. Segundo ela conta, o professor explicou que cada época tem sua parcela de incerteza, ansiedade, estresse e opressão. A cada novo avanço na tecnologia — seja o lápis, seja a imprensa ou a internet — a vida parece que está acelerando e entrando em desgoverno. E estresse é causado por duas coisas: a incapacidade de prever e a falta de controle.
Para a época atual, a resposta surge na quantidade e na facilidade de acesso ao conhecimento. Por exemplo, esclarece Schulte, no passado, se a produção de um fazendeiro se perdesse, era estressante, mas não culpa dele. Ele poderia culpar a temperatura, Deus, etc. “Agora, há muitos mais de nós que são trabalhadores do conhecimento. É esperado que você saiba, seja capaz de controlar e prever quase tudo. Então, quando as coisas correm mal, a culpa é sua, não há mais ninguém para culpar. É tudo sobre você. Seja a falha realmente sua culpa ou não, há sempre a sensação de que ela é.”
Pode ser diferente? Há quem prove que sim. Empresária há três anos, Mayara Cristina Guimarães Pimenta, 27 anos, mantém o caixa em dia e, pelo sucesso na empreitada, está em vias de abrir mais duas lojas da sua franquia de restaurantes. Formada em educação física, sempre teve prazer em praticar esportes e, mesmo trabalhando diariamente, consegue organizar a rotina para praticar o futevôlei. “Hoje, minha rotina diária é bem tranquila. Preferi deixar as manhãs para mim mesma. Vou à academia, resolvo questões de casa e jogo futvôlei. À tarde, vou para a empresa. Lá, trabalho em tudo o que precisa ser feito.”
Claro que, no início, a situação era diferente. Ao abrir um negócio no qual não tinha experiência, precisou de meses para entender todo o funcionamento. “Chegava lá às 8h e saía quando fechava o caixa. Foi assim por cerca de seis meses. Depois, fui conhecendo mais os funcionários, pude delegar melhor as tarefas a eles, me organizando dentro do mês e criei minha rotina, que considero simples, pois quase todos os dias é a mesma coisa.”
Mesmo assim, Mayara garante que não se lembra de nenhum momento da vida em que tenha se sentido atarefada demais. Vê isso como um reflexo da sua personalidade e confessa que, em muitos momentos, sentiu-se pressionada pelos outros, por não parecer ocupada o suficiente, mesmo com o sucesso da empresa. “Tenho amigas também donas de restaurantes que não conseguem fazer o que eu faço. Viajar, jogar futevôlei, ficar no clube, sair com os amigos, almoços de domingo com a família, café da manhã juntos. Eu não quero deixar de fazer minhas coisas e, mesmo com três restaurantes, tempo eu vou achar.”
Planeje-se!
A autora Brigid Schulte hoje mantém uma série de práticas para lidar melhor com suas ocupações diárias:
- Na noite anterior, penso no que será mais importante a ser feito no dia seguinte e anoto.
- Faço exercícios físicos quando posso. Eu e meu companheiro de corrida sempre nos perguntamos o que é o mais importante que planejamos para o dia seguinte e tentamos correr antes.
- Uso um tempo entre as semanas para pensar sobre o que é mais importante para mim e, a partir disso, estipulo uma agenda de compromissos. Coloco a minha alimentação e da minha família no topo da lista porque, no fim do dia, não é a quantidade de atividades que você completou da lista que importa — você esquecerá delas no dia seguinte.
- Eu me dou ao direito de fazer uma limpeza no cérebro para tirar absolutamente tudo que está me incomodando da cabeça, seja no papel, seja em um aplicativo. E assim me permito não fazer essas coisas. Então volto para minhas prioridades e deixo com que elas comandem o que eu faço. Assim, muitas vezes, quando volto e analiso a minha lista de tarefas, algo foi resolvido sem que eu tivesse feito nada. Um bom lembrete de que também precisamos de listas do que NÃO fazer.
- Tento manter minhas distrações ao mínimo. Planejo minha semana de trabalho na sexta-feira anterior. Verifico meus e-mails e minhas redes sociais em períodos prudentes, não a cada segundo do dia. E trabalho em pulsos de 30, 45 ou 90 minutos de foco em uma atividade — que chamo de prática deliberada. Mesmo quando adio e não quero fazer algo, saber que determinei um tempo e estou prestes a começar a tarefa faz com que enfrentar um trabalho difícil se torne mais fácil.