Saúde

Rótulos interferem na adesão ao tratamento de doenças psiquiátricas

Políticas de combate ao preconceito e apoio familiar estão entre as soluções propostas para mudar essa realidade

Paloma Oliveto

Alice* era uma garota perfeitamente saudável até os 18 anos. Filha única, sempre foi cercada de amor e expectativas. Como todos os pais, os dela traçaram planos para o futuro da menina dócil e extremamente inteligente que aprendeu a ler sozinha aos 5. Mas, no fim da adolescência, a vida de Alice sofreu um revés. Pressionada a cursar medicina, o ramo tradicional da família, mas inclinada a estudar belas artes, a jovem passou a ter crises de taquicardia e insônia, interpretadas pelos pais como ansiedade passageira.


Eles estavam errados. Alguns meses depois — e já aprovada no vestibular de medicina —, vieram as alucinações. “Eu cismei que um professor estava tentando me matar, via sinais disso em tudo. Nas coisas que ele escrevia no quadro, nos olhares que me dava… Até as notas dos trabalhos eu achava que eram mensagens cifradas”, conta Alice. “Mas, à noite, era pior. Eu via formas estranhas na minha frente, formas geométricas assustadoras que vinham para cima de mim”, recorda. Aqueles eram os primeiros sinais de esquizofrenia paranoide, distúrbio mental que a acompanha desde então. Hoje, Alice tem 67 anos.

Quando os males da mente emergem, eles nunca vêm sozinhos. São acompanhados por preconceito e discriminação. Socialmente estigmatizados, os pacientes tendem a negar o diagnóstico, piorando ainda mais as chances de recuperar a normalidade da vida. “Cerca de 40% dos indivíduos com doença mental séria não recebem nenhum tipo de tratamento e muitos que começam uma intervenção não vão até o fim”, observa Patrick W. Corriga, psicólogo do Instituto de Tecnologia de Illinois, nos Estados Unidos. Recentemente, ele publicou um artigo no jornal da Associação de Ciência Psicológica no qual afirma que a discriminação é um dos principais entraves para a busca de ajuda por parte de pessoas mentalmente fragilizadas.

Foi o que aconteceu com Alice. “Venho de uma família de médicos. Mas, mesmo assim, minha família negou a minha doença”, conta. Um generalista amigo dos pais de Alice foi o primeiro a sugerir que a jovem precisava consultar um psiquiatra. “Acho que, até por serem médicos e saberem como o doente mental era tratado naquela época, visto como um pária, arrancado do convívio social, aprisionado nos hospícios, eles fecharam os olhos para minha situação”, diz ela. Apenas aos 30 anos, Alice começou um tratamento contínuo, com acompanhamento farmacológico e psicoterápico. Já tinha largado a faculdade e se afastado dos amigos. “O lado bom foi que pude me dedicar ao que realmente sempre gostei: à pintura. Mas perdi mais de uma década da minha vida mergulhada na minha loucura, sem ninguém para me tirar daquele lugar.”

“O preconceito e a discriminação em torno da doença mental são tão incapacitantes quanto a doença em si. Eles impedem que as pessoas lutem por seus objetivos sociais e os dissuadem de buscar tratamentos eficazes”, observa Corriga. Para escrever o artigo que publicou, ele e os psiquiatras Benjamin G. Druss e Deborah A. Perlick, da Universidade de Emory e do Hospital Monte Sinai de Nova York, respectivamente, revisaram a literatura científica a fim de detectar como o estigma acaba afastando os indivíduos do atendimento especializado.

Os rótulos impostos aos portadores de distúrbios mentais são muitos. Eles são vistos como perigosos, imprevisíveis, incompetentes… “Dessa forma, acabam excluídos da força de trabalho e das oportunidades educacionais e sociais”, diz Deborah A. Perlick. Nem os profissionais da área de saúde estão isentos de lançar olhares preconceituosos sobre esses pacientes: “Muitas vezes, o prontuário reforça estereótipos negativos. Nesses casos, os médicos podem acabar desdenhando das queixas dos pacientes, colocando tudo na conta da doença mental”, critica a psiquiatra.

Autodepreciação
Ao olhar para os lados e só detectar discriminação, o paciente internaliza os estigmas e passa a se autodepreciar, alertam os especialistas. “Pessoas com distúrbios psiquiátricos podem começar a acreditar nas ideias negativas expressas pelos outros e achar que nunca conseguirão se recuperar, que são perigosas, responsáveis pela doença, que não prestam para nada. Com isso, podem se sentir envergonhadas, com baixa autoestima e incapazes de atingir seus objetivos”, lembra Patrick W. Corriga. Ele diz que um efeito disso é o “por que tentar?”, o que leva ao abandono do tratamento.

O caminho para reverter essa realidade é longo e árduo, reconhecem os pesquisadores. Mas eles acreditam que um conjunto de estratégias pode começar a desconstruir a imagem negativa do doente mental. Conhecimento, cultura e laços sociais são apontados como caminho pelos autores do artigo. “As políticas públicas devem encorajar o foco na educação. Temos de educar a sociedade para combater os estereótipos da doença e do tratamento. Além disso, incluir o apoio das redes sociais — amigos e familiares — dos pacientes pode ser um grande incentivo à adesão do tratamento”, acredita Corriga, que também aposta em legislações de combate ao preconceito.

No Brasil, há um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados que criminaliza a discriminação contra pessoas com transtornos e doenças mentais, com pena de até 3 anos de reclusão. “Juntos, temos de encorajar a intervenção precoce e o acesso ao tratamento sem medo de rótulos. Só assim conseguiremos erradicar o estigma”, acredita o psicólogo.

* Nome fictício a pedido da entrevistada


Passou da hora de intervir a favor da vida

Culpa, vergonha e medo de falar sobre o problema. Esses são alguns dos sentimentos inerentes às pessoas que precisam de atenção especial em razão do abalo à saúde mental. Embora se fale em predisposição genética, o que pouca gente sabe é que o uso de drogas é um fator de risco para o desenvolvimento de quadros psiquiátricos graves, como depressão, esquizofrenia, ansiedade, demência, entre outras morbidades.

No Brasil, as drogas têm feito cada vez mais vítimas e causado sérios impactos à sociedade. A falta de assistência especializada, multidisciplinar e com a participação de um médico com curso de especialização na área para as dependências é mais uma realidade. O álcool e o tabaco são os principais vilões nesse processo e, em razão do preconceito da sociedade, menos de 10% dos dependentes buscam orientação especializada.

Esse cenário precisa mudar. Somente com políticas de promoção da saúde e prevenção, com um projeto de comunicação atualizado para a população, será possível evitar que as drogas continuem a incapacitar indivíduos e impactem suas famílias. No que se refere à consulta ao especialista, que muitas pessoas ainda acreditam que é um médico dos loucos, vale registrar que a dependência é uma doença crônica, como o diabetes e a hipertensão arterial, que, por sua vez, também cursam com sintomas e sinais comportamentais e psicológicos, assim como a depressão apresenta sintomas físicos. A pessoa que tem depressão ou dependência de drogas apresenta uma doença no organismo inteiro, ou seja, não é possível mais compartimentalizar a doença.

É necessário reforçar que o preconceito muda o prognóstico da doença. Ou seja: quanto mais tarde ela for tratada, mais difícil e complexo será o tratamento. Infelizmente, o que se observa no Brasil é um sistema andando na contramão da ciência e das boas práticas. E todos, cada um no seu lugar, podem participar para mudar esse cenário e proteger a vida dos dependentes.

Ana Cecília Marques - Médica psiquiatra e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (ABEAD)