União de vacinas pode erradicar a pólio

A recomendação é feita pela OMS após testes com mais de mil crianças indianas. Segundo especialistas da agência, combinar as gotinhas com a imunização intramuscular reduz as chances de disseminação do vírus

por Flávia Franco 02/09/2014 10:00

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Narinder Nanu/AFP
Imunização na Índia: país já foi o centro da disseminação da poliomielite (foto: Narinder Nanu/AFP)
A poliomielite é uma doença que afeta crianças e adultos, podendo levar à paralisia total ou parcial de membros. Na década de 1950, vacinas começaram a ser desenvolvidas para combater a enfermidade. Duas delas são as principais imunizações de hoje: a Sabin— com o vírus ativo da doença — e a Salk — com o micro-organismo inativo. Não há um consenso sobre qual das alternativas é a mais eficaz para ajudar a erradicar globalmente a pólio. Especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS), porém, realizaram um estudo cujo resultado mostra que um tratamento combinado é a melhor abordagem.

Publicada na revista Science, a pesquisa foi feita na região de Uttar Pradesh, no norte da Índia, com cerca de 1 mil bebês e crianças. “Esse já foi o epicentro da transmissão global de poliomielite. Então, qualquer resultado encontrado nesse ambiente poderia ser aplicado em outros lugares também”, justifica Roland Sutter, líder do estudo e coordenador de pesquisas sobre a poliomielite na OMS. Sutter ressalta que o debate acerca da eficácia das imunizações se deve às peculiaridades delas.

A Sabin tem um perfil único para aumentar a imunidade da mucosa, condição necessária para interromper a propagação da doença de pessoa para pessoa. “Por isso, ela tem sido a forma de tratamento mais usada em todos os países”, explica Sutter. A Salk oferece a proteção pessoal, mas não auxilia tanto no combate à propagação da doença em comunidades porque não estimula a imunidade da mucosa da mesma forma que a primeira.

A desvantagem da Sabin, administrada por via oral, é que o vírus ativo presente nela é eliminado do organismo por meio das fezes, o que pode facilitar a contaminação em áreas com estruturas de saneamento básico precárias. Para erradicar a doença globalmente, Sutter afirma que será necessário desenvolver uma abordagem que combata a propagação da doença de pessoa para pessoa e também por meio de fezes contaminadas.

Lívia Ribeiro, infectologista do Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF), explica que a eliminação do vírus ativo nas fezes ocorre até seis semanas após a administração da vacina Sabin. “Essa característica pode resultar em risco para pessoas próximas não imunizadas ou que tenham algum tipo de imunodeficiência”, reforça.
Valdo Virgo/CB/D.A Press
Clique na imagem para ampliá-la e saiba mais (foto: Valdo Virgo/CB/D.A Press)

Os testes
Os participantes do estudo feito na Índia foram divididos em dois grupos: um foi vacinado com a Sabin, outro, com a Salk. Após quatro semanas, todos receberam uma dose da Sabin. Mais de 3 mil amostras de sangue e mais de 5 mil de fezes foram coletadas e testadas para avaliar o aumento da imunidade da mucosa e a excreção do vírus. Os resultados indicaram que as crianças que receberam os dois tipos de vacina apresentaram menos eliminação viral nas fezes. “Está muito claro, agora, que as vacinas devem ser usadas de maneira complementar para interromper as cadeias finais de transmissão e, dessa forma, conquistar a erradicação da doença”, afirma Sutter.

Segundo Paulo Gewehr, infectologista do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, os resultados indicam que o uso combinado das imunizações é importante principalmente em locais em que a cobertura vacinal ainda não é ideal e há surtos de paralisia infantil. “Essa abordagem já está sendo adotada em outros países também.” Desde 2012, a campanha do Ministério da Saúde envolve duas doses da vacina Salk. “São aplicadas em crianças que ainda não foram imunizadas contra a paralisia infantil. Depois, a recomendação é de que todos com menos de 5 anos recebam a dose oral”, explica.

Apesar de a campanha contra a paralisia infantil brasileira adotar a Sabin, a da gotinha, como principal abordagem, a Salk é recomendada por pediatras em casos de recém-nascidos que permaneçam internados em unidades neonatais durante a idade de vacinação, complementa Lívia Ribeiro. “Existe também uma recomendação para que crianças que receberam a Salk participem das campanhas com a Sabin após os quatro primeiros anos de vida, quando poderia diminuir a chance de complicações da vacina”, diz a infectologista.

Para ela, todas as alternativas que possam ajudar a eliminar a poliomielite no mundo são bem-vindas, mas é preciso ir além. “Acredito que investimentos devem ser feitos de forma maciça para universalizar o acesso”, afirma. Sutter concorda com a infectologista e explica que a preocupação atual não gira em torno apenas da erradicação da pólio, mas em garantir que ela permaneça extinta. “Esse estudo tem implicações não apenas para as nações afetadas, mas para praticamente todos os países ao redor do mundo a longo prazo”, afirma.

Participaram da pesquisa mais de 50 oficiais médicos da OMS e cerca de 500 trabalhadores de campo da agência de saúde ligada à ONU, da Unicef e do governo da Índia. Segundo Sutter, não há precedentes de um estudo clínico dessa magnitude para avaliar os efeitos das imunizações.


Mesma indicação
Um estudo feito por pesquisadores da Christian Medical College, na Índia, e publicado em julho na revista Lancet também sugere a combinação das vacinas para erradicar a poliomielite. Divulgada em julho deste ano, a pesquisa contou com a participação de 500 crianças, divididas entre as que receberam uma dose da vacina Salk após já terem sido imunizadas com a Sabin e as que não receberam o segundo tratamento (grupo de controle). Os pesquisadores analisaram o conteúdo das fezes para observar a excreção do vírus e avaliar a resposta imune dos pacientes e obtiveram resultados positivos: apenas 44 das 225 crianças que receberam a dose da vacina Salk apresentavam traços do vírus nas fezes, em comparação com 100 participantes do grupo que não recebeu a vacina.

Queda expressiva
A Global Polio Eradication Initiative, criada em 1988, visa erradicar a paralisia infantil em todo o planeta. Na época, a doença acometia mais de 350 mil pessoas por ano. Desde 2000, as américas do Norte, Central e do Sul receberam certificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de que estão livres de novos casos da enfermidade. A Europa conseguiu em 2002, e o sudeste da Ásia, em 2014. As ocorrências da pólio reduziram 99% nas duas últimas décadas, sendo que apenas 406 casos foram registrados em 2013 no mundo. Atualmente, as incidências são em países com baixa acessibilidade aos tratamentos, como Iraque e Afeganistão, e em locais com estruturas precárias de saneamento básico, Somália e Etiópia, por exemplo.