A episiotomia é um corte que se faz entre a vagina e o ânus da mulher para, em tese, facilitar a saída do bebê durante o parto. No entanto, desde a década de 70, estudos clínicos começaram a questionar o uso rotineiro do procedimento. Hoje, já se sabe não apenas da inexistência de evidências científicas que comprovem a eficácia desse corte, mas também dos riscos que essa prática expõe às mulheres: dor perineal, edema, maior risco de infecção, hematoma e dispareunia (dor na relação sexual). Por isso, a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de restringir o uso da técnica para que as taxas não ultrapassem os 10%. Por aqui, ela ainda é feita rotineiramente e se soma a outros procedimentos que colocam o Brasil numa posição desconfortável diante do que é preconizado pela OMS como boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento, como a incidência altíssima de cesarianas (88% na rede privada, 46% na rede pública e média nacional de 52%, frente a uma recomendação de 15%) e o percentual de apenas 5% de parto natural (ou seja, sem nenhuma intervenção). A pesquisa ‘Nascer no Brasil’, divulgada em junho deste ano, revelou que 53,5% das mulheres que têm seus bebês via vaginal são submetidas à episiotomia. Ou seja, “quando não se corta por cima, se corta por baixo”. A conclusão é parte de um título do estudo das pesquisadoras Simone G. Diniz e Alessandra S. Chacham que analisaram o abuso das duas técnicas em São Paulo (leia a pesquisa completa aqui).
A episiotomia ainda é considerada uma subjugação da mulher e da sua sexualidade. Em 1999, o médico norte-americado Marsden Wagner classificou o procedimento como “mutilação genital feminina”. A médica Melania Amorim, uma das principais referências brasileiras na luta pela humanização do parto, tornou público em seu blog ‘Estuda, Melania, Estuda’ a história de uma mulher que sente dor na relação sexual há quase duas décadas e inspirou a campanha ‘Pelo fim do corte mutilador, episiotomia nunca mais!’. “Inauguro esta seção do meu blog com a foto da cicatriz de uma episiotomia realizada há 17 anos, no contexto de um parto violento. (...)Aos prantos, ela (a paciente) me contou que depois desse, que foi o seu primeiro parto, nunca mais teve relações sexuais sem sentir dor (dispareunia), e a dor não melhorou depois dos partos subsequentes, em que também teve o períneo cortado. A história me emocionou bastante e eu perguntei se poderia fotografar e divulgar a foto para a campanha que estamos fazendo. Choramos juntas e ela me disse que se a divulgação da foto pudesse ajudar a sensibilizar mentes e corações tanto de obstetras como das mulheres para evitar que outras venham a sofrer o mesmo problema, ela autorizaria a divulgação com muito gosto, porque isso traria uma espécie de compensação para todo o seu sofrimento”.
A OMS não indica em quais situações a episiotomia dever ser feita. Melania Amorim é categórica: “não há benefício nenhum no procedimento e nenhuma das indicações alegadas por quem faz têm respaldo científico”. Há 12 anos, a taxa da especialista é zero e ela, que é professora do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), hospital-escola da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS), sequer ensina a técnica aos alunos. A médica também já publicou um artigo em uma relevante publicação norte-americana de ginecologia e obstetrícia – a pesquisa ainda não está disponível em português – em que mostra que, em 400 partos assistidos por ela, nenhum teve episiotomia. “A minha opinião é de nunca realizar na obstetrícia moderna”, completa.
Para ela, as altas taxas de episiotomia no Brasil transcendem as evidências científicas. “Parte dos médicos pode desconhecer, outra parte está tão acostumada a fazer dessa maneira (com episiotomia) que não sabe fazer de outra forma, é como se a mão fosse sozinha. É difícil se desvencilhar de velhas práticas. Temos também o discurso daqueles que se baseiam na onipotência médica do ‘faço assim há 30 anos e sempre deu certo’ e na crença de que o corpo da mulher é essencialmente defeituoso e depende da intervenção médica para parir”, enumera. A especialista ressalta que não significa dizer que o médico está agindo por mal, mas que ele se acostumou a pensar que o corte é necessário e acredita nisto.
Professora do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da UFMG, Andréia Moura diz que o médico tem a obrigação de se atualizar. “Não tem mais essa discussão, já está mais do que comprovado que não pode fazer em todo mundo”, reforça. A médica – que tem dez anos de formada -, diz que foi treinada para fazer episiotomia de rotina, mas não faz. “Agora, para quem está há muito tempo fazendo de um mesmo jeito, é um ritual. Não sei como seria o processo ideal, voltar a capacitar esse médico? Mostrar na prática que não é necessário? Realmente é muito difícil. Levam-se anos para se trocarem as gerações”, observa.
Para Melania Amorim, o que é indefensável é fazer o procedimento sem a autorização das mulheres. Infelizmente, no Brasil, é a maioria dos casos. “É uma questão ética, mas quem faz episiotomia de rotina, faz sem pedir licença. Na hora do parto, a mulher está fragilizada e não vai brigar com o médico. Ser ativista na hora do parto é muito difícil. Por isso, é preciso detalhar o plano de parto”. pondera. Clique aqui e saiba mais sobre o plano de parto, preconizado também pela OMS.
Andréia Moura ratifica que a literatura científica não é clara sobre quando a episiotomia deve ser realizada. “Não sabemos quais são as indicações precisas”, pondera. Para ela, comunicar a mulher antes de realizar o procedimento esbarra em até aonde vai a autonomia do paciente. “O obstetra está tomando uma decisão para o bem do feto e da paciente”, acredita.
Você já ouviu falar em ‘ponto do marido’?
Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo, Sonia Hotimsky é autora da pesquisa ‘A formação em obstetrícia: competência e cuidado na atenção ao parto’. Publicada em 2007, ela analisou, na graduação em medicina, a formação em obstetrícia em dois conceituados hospitais-escola no país. Os nomes das instituições não são citados no estudo. “Ponto do marido, no linguajar médico, significa um ponto que é dado durante a episiorrafia (costura da episiotomia) para 'apertar' a abertura da vagina um pouco mais do que estava antes de fazer o corte. É assim chamado, pois se baseia na crença, sem qualquer fundamentação científica, que a vagina se alargaria com a gestação e o parto e que, deixando-a mais apertada com este ponto, a vida sexual seria mais satisfatória para os homens”, define Sonia Hotimsky. Segundo ela, a prática era comum nos hospitais onde realizou o trabalho de campo. “Alguns preceptores e plantonistas incluíam explicações sobre essa prática e seus supostos benefícios em seus treinamentos”, completa.
Para Melania Amorim, o ‘ponto do marido’ é uma visão machista e preconceituosa que demonstra “a falta de fé na capacidade do corpo feminino para parir e ainda querer reconstituir a natureza para satisfação sexual do homem, como se essa fosse a única função da vagina”. A especialista diz que o procedimento é tão rotineiro que é praticamente invisível. “Muitos médicos sequer registram que fizeram episiotomia. A ‘prova’ de que é feito estão apenas nos relatos de maridos ou mulheres que ouviram, no trabalho de parto, que estavam dando um ponto-extra para deixar a vagina “mais apertadinha”, diz a médica.
Não é difícil encontrar na Internet depoimentos de mulheres que relatam a experiência com a episiotomia e o ponto do marido. Veja o que diz a autora do blog ‘Lookbebê’: “O que eu não sabia direito é que na hora da episiorrafia (sutura da episiotomia), o medico dá um pontinho a mais, conhecido como ponto do marido. No dia da minha consulta de 15 dias, comentei que no local daquele ponto estava uma pelotinha e o médico disse que era normal porque o ponto estava apertando a pele, mas que ela desapareceria, que era o ‘ponto do marido’. Ok, alguma vez eu já havia ouvido falar isso, mas sabe quando você sabe e não sabe? Corri pro Dr. Google depois e vi que era super normal eles fazerem esse pontinho”. O texto completo pode ser lido aqui.
Andréia Moura explica o termo de outra maneira: “Durante a episiotomia, faz-se o corte de alguns músculos da vagina. Assim, temos que unir de volta esses músculos no que é denominado episiorrafia. Unimos a mucosa, os músculos e a pele. Recebeu esse nome, mas é um ponto obrigatório, exatamente onde foi cortado. Tem que ser um ponto muito bem dado para o músculo não ficar alargado e acontecer a rotura perineal que leva a um relaxamento da vagina”, explica. Essa rotura (ou frouxidão), segundo a especialista, pode ser motivo de queixa sexual da paciente e do marido.
Se o ‘ponto do marido’ favorece ou não o prazer sexual do homem, Hotimsky diz não saber responder, mas observa que a tanto a episiotomia quanto a episiorrafia prejudicam a elasticidade do tecido e a enervação do períneo e pode tornar o ato sexual menos prazeroso para ambos e, em alguns casos, doloroso para a mulher. “O movimento de contração e descontração do períneo pode ser prazeroso para ambos. A episiotomia prejudica essa elasticidade”, explica.
Para Sonia Hotmiky, apesar de mulheres e homens estarem se informando mais sobre os cuidados que devem receber durante o trabalho de parto, existem ainda os que pouco sabem sobre as rotinas obstétricas, quais são bem fundamentadas do ponto de vista científico e quais não são. “Também há muitas mulheres que não sabem quais são os seus direitos em relação à assistência obstétrica e como proceder para buscar garantir que seus direitos sejam reconhecidos e respeitados ou como devem fazer para denunciar maus tratos”, pondera. Segundo ela, as mulheres assistidas na rede pública e aquelas com menos escolaridade são as principais vítimas, apesar de mulheres atendidas em hospitais conveniados ou privados e com nível alto de escolaridade também serem vítimas de violência obstétrica.
Para piorar, a pesquisadora diz que não é raro, inclusive em função da inexperiência dos que exercitam o treino da episiotomia nos corpos das parturientes, que a incisão cirúrgica seja maior do que precisaria e que atinja áreas que não deveriam. “Infelizmente, presenciei algumas episiotomias mal executadas e ouvi comentários de obstetras sobre episiotomias que poderiam resultar depois em incontinência fecal. Em mais de uma situação residentes tiveram de recorrer a obstetras mais experientes para fazer a episiorrafia e outras suturas que se fizeram necessárias. Evidentemente, estou falando de casos presenciados e não de um estudo quantitativo”, alerta.
Aspectos culturais
A questão não é apenas científica. O parto via vaginal – seja ele com ou sem episiotomia – ainda não superou aspectos culturais associados, por exemplo, a uma dor insuportável e à ideia de que o nascimento de uma criança alargaria a vagina da mulher e prejudicaria a vida sexual do casal. “Faz parte do treinamento do estágio em obstetrícia aprender a fazer episiotomias e episiorrafias. Era comum os internos serem instruídos a retirarem e refazerem pontos nos corpos de mulheres sob instrução dos obstetras de plantão nos hospitais-escola. Às vezes as mulheres gemiam de dor, mas o exercício da técnica era privilegiado nestas situações”, relata Sonia Hotimsky.
Hotmisky diz que existia uma “expectativa em aprender a fazer episiotomias”. Apesar de o trabalho de campo ter sido realizado em 2004 e 2005, esse treinamento ainda é realizado em várias universidades brasileiras, incluindo a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A professora da UFMG, Andréia Moura confirma que o procedimento é ensinado. No entanto, segundo ela, a orientação já foi atualizada. “Episiotomia de rotina não é mais aceitável, já adotamos a recomendação de episiotomia restritiva”, explica. Segundo ela, o procedimento era visto quase como um rito, fazia parte do parto vaginal. “É uma técnica que passou por várias gerações de médicos, era uma verdade incontestável que caiu por terra”, pontua.
Sobre o aspecto cultural de que a vida sexual do casal poderia ser prejudicada por um parto vaginal, Melania Amorim diz que a noção está sustentada em partos traumáticos do passado que, talvez, levaram a algum prejuízo do assoalho pélvico. “No novo modelo de parto já está demonstrado que não vai haver diferença para a vida sexual das mulheres”, explica.
A professora da UFMG Andréia Moura reforça que algumas crenças ainda não foram superadas. “O ‘alargamento’ da vagina é uma dúvida frequente das mulheres, assim como o medo da dor, mas são ‘preocupações’ que não são indicações de cesariana”, diz. A especialista acredita que, apesar de a incidência de episiotomia ser muito alta no Brasil, a taxa vai cair: “Começou como uma exigência das mulheres - que cada vez mais assumem uma posição ativa no parto - e é algo que será mudado”.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) também não recomenda a episiotomia de rotina. Presidente da Comissão de Parto da insituição, João Alfredo Steibel é otimista: “essa estatística vai cair rapidamente”. Para ele, o Brasil alcançará a taxa de 10%, recomendada pela OMS com facilidade. O especialista explica que, há cinco anos, acreditava-se que a episiotomia protegia contra a queda da bexiga e, por isso, o procedimento era realizado em todas as mulheres que tinham seus bebês de parto vaginal. “Sabemos que não é verdade, a bexiga cai por que existe gravidez”, diz. Para Melania Amorim, a verdadeira mudança virá das mulheres quando elas disserem ‘não queremos esse corte mutilador’.
‘Não conseguia sentar’
“Pesquisem também sobre o que pode acontecer de ruim. Esse é o meu conselho às mulheres grávidas. Retomei minha vida sexual um ano depois do nascimento da minha filha. Eu sempre quis parto normal, tenho pavor de pensar em cirurgia. Meu pré-natal foi todo feito pelo SUS e os médicos eram muito competentes. Só que, na hora do parto, comecei a ter problemas. Como já estava com mais de 41 semanas fizeram a indução (a OMS classifica a idade gestacional de duas maneiras: a ‘pré-termo’, com menos de 37 semanas, e ‘a termo’, até 42 semanas). Fiquei 28 horas em trabalho de parto e eles faziam exame de toque toda hora. Na época, eu sequer sabia que esse procedimento não era necessário.
Após a medicação no colo do útero, comecei a ter contração. Colocaram o soro com ocitocina em mim (esse hormônio agiliza o trabalho de parto) e a dor das contrações aumentou. Quando o soro acabava, percebia que a dor ficava suportável e tive que brigar com as enfermeiras para não colocarem a ocitocina de novo. Não adiantou. Meu marido me acompanhou o tempo inteiro. Não me deram comida em nenhum momento. Fui para sala de parto com 9cm de dilatação e duas enfermeiras empurraram minha filha para fora (a técnica conhecia como Manobra de Kristeller é proibida em diversos países e consiste em empurrar o fundo do útero, ou seja, fazer pressão de qualquer intensidade sobre a barriga da mulher para empurrar o bebê. Dentre os riscos associados estão: trauma perineal, trauma nos esfíncteres anais, ruptura uterina, dano e paralisia dos nervos, danos cerebrais). Nessa hora, a pele rasgou e tive uma laceração. Eu não queria que a episiotomia fosse feita. A médica cortou do lado oposto à laceração. Senti a picada, mas resolvi abstrair. A laceração natural não foi muito grande, mas do outro lado da vagina recebi 12 pontos no corte da episiotomia. Sofri muito na minha recuperação, fiquei duas semanas debilitada, sangrava muito, não conseguir sentar, tive que usar aquela bóia pós-cirurgia de hemorroida. Fiquei estressada e, para piorar, minha filha teve dificuldade com pega do peito. Fiquei com tanta raiva, tão magoada. Sempre via as experiências boas de outras mulheres e comigo não tinha sido... Sinto-me incompetente de não ter pesquisado, não pensava que podiam acontecer coisas ruins comigo. Eu não achei essas informações, a própria mídia não fala sobre isso. Estou terminando meu tratamento agora. Quando as enfermeiras empurram a minha filha, deslocaram alguns órgãos meus (bexiga, intestino e pâncreas), tive que tomar remédio para controlar a hemorragia, precisei usar uma cinta para acomodar meus órgãos e só agora estou diminuindo a intensidade da cinta” - Carla Lima, 30 anos, arquiteta e mãe de Mariana, de 2.
Se você foi vítima de violência obstétrica, dê seu depoimento. Acesse o documento ‘Violência no Parto em Minas Gerais – Denúncia à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa” e conheça a história de outras mulheres.