Numa das cenas finais do filme 'O amor nos tempos do cólera', adaptação do livro homônimo de Gabriel García Marquez para o cinema, a atriz Fernanda Montenegro, que vive o papel da octogenária Fermina Daza, tira sua roupa aos poucos e se prepara para dormir pela primeira vez com o também octogenário Florentino Ariza, namorado que abandonara na juventude. O romance, o preferido do autor, conta a belíssima história de um amor tardio. Em 1985, ao publicá-lo, talvez Gabo não imaginasse que de alguma forma estava escrevendo sobre o futuro. Como os protagonistas do livro, um batalhão de homens e mulheres que entraram na terceira idade estão quebrando tabus ao descobrir e redescobrir o amor. O movimento se acentuou nos últimos 20 anos, derrubando o mito da velhice assexuada.
Para Guita Grin Debert, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora do estudo “Velhice, violência e sexualidade”, isso se deu em muitos campos. “Estudos de várias áreas comprovaram que a sexualidade não se esgota com o passar dos anos. É indiscutível o declínio da frequência das relações sexuais, mas emerge, por outro lado, a percepção de que a qualidade dessas relações pode aumentar”, sustenta. O trabalho aponta que nessa faixa estária os encontros podem ser mais livres e afetuosos. Além disso, os papéis tradicionais de gênero tendem a se inverter. “As mulheres passam a ser menos recatadas e os homens, mais afetuosos. Nas sensações também há mudanças. O prazer estaria espalhado pelo corpo, ocorrendo um processo de desgenitalização”, explica.
A nova realidade pode ser facilmente comprovada na prática. Às quartas-feiras à tarde e aos sábados de noitinha, associados do Clube da Maturidade, criado em Belo Horizonte exatamente no ano em que García Marquez lançava O amor nos tempos do cólera, reúnem-e para dançar e se divertir num salão de festas. O chão, quadriculado em preto e branco, empresta charme ao local. À esquerda, dançam luzes e casais. À frente, o que se vê são mesas e, nelas, mais casais.
Alguns, como Maria Aparecida Costa, de 84 anos, e Antônio Mário da Costa, de 92, são companheiros de vida inteira e passaram a frequentar o local porque sentiram necessidade de voltar a fazer coisas juntos, independentemente da família e dos antigos amigos. Outros, como José Alves Cardoso, de 75, e Maria Eugênia Pessoa, que não revela a idade, conheceram-se ali depois de quase uma vida inteira e hoje experimentam uma nova história de amor.
Sim. Ao chegar à terceira idade, é cada vez maior o número de pessoas que namoram, descobrem um velho amor ou um novo amor, casam-se novamente, fazem novas amizades e levam uma vida social intensa para jovem nenhum botar defeito. Fato que confirma a suspeita do comandante do barco que levou Fermina Daza e Florentino Ariza a subir e descer o rio para sempre em O amor nos tempos do cólera: “É a vida, mais do que a morte, que não tem limites”.
GRANDES DESCOBERTAS
Amor à primeira vista, as descobertas sexuais e repactuação dos laços amorosos são situações comuns entre idosos do século 21 que optam por não ficar sozinhos
Grisalho, alto, bonito e simpático, o dentista aposentado José Alves Cardoso, de 75 anos, há cinco anos é presidente do Clube da Maturidade, entidade sem fins lucrativos na qual todas as atividades são dirigidas aos idosos. Depois de se divorciar em 2005, teve namoros esporádicos e não imaginava a possibilidade de se casar outra vez. Até que um ano depois de assumir a presidência do clube surgiu em sua vida um amor à primeira vista. A musa inspiradora é loira, alta, bonita, refinada e simpática. Seu nome é Maria Eugênia Pessoa.
Os dois se conheceram num dos bailes organizados na Avenida Prudente de Morais, 901, Região Centro-Sul, quando ele a chamou para dançar. Casaram-se cinco meses depois daquela noite. “Ela não prestava atenção em mim”, reconhece José Cardoso. “Fiquei sozinha por 14 anos e sempre fugi de relacionamentos que não valiam a pena. Não imaginava nem pretendia me casar de novo, mas a gente se entendeu muito bem”, explica Maria Eugênia. Quatro anos depois do casamento, os dois continuam felizes e levam uma vida sexual ativa. “Não há nenhuma dificuldade em nosso relacionamento, somos pessoas saudáveis”, explica ela. “Se a gente tem saúde, a questão sexual não é muito afetada. Claro que, dependendo da faixa etária, o desempenho é menor, mas nunca usei o comprimido azul”, diz ele.
De acordo com a geriatra Karla Giacomin, encontros felizes como o do casal ocorrem hoje de forma muito mais frequente do que há algum tempo, facilitados pela maior possibilidade de encontro e convivência entre pessoas maiores de 60 anos. Tudo depende, porém, da maneira como cada pessoa encara essa fase da vida. “Há mulheres que saem de um casamento ou ficam viúvas e se dispõem a encontrar outras pessoas, e outras não. Do lado dos homens, existem aqueles que não suportam ficar sozinhos e os que, apesar da solidão, não se dispõem a ter um novo relacionamento”, diz.
Segundo a pesquisa Mosaico Brasil, do Programa de Estudos da Sexualidade da Universidade de São Paulo (ProSex), coordenada pela psiquiatra Carmita Abdo, 87,1% dos homens e 51,2% das mulheres no Brasil com idade acima de 61 anos consideram que são sexualmente ativos. O levantamento foi feito em 2008, mas o ProSex já tem outra pesquisa sobre o assunto saindo do forno. “Estamos em fase de coleta de dados. Em seguida, faremos a tabulação. Mas tudo indica que a nova pesquisa vai apontar uma mudança positiva no comportamento das mulheres sobre essa questão”, observa, levando em conta os relatos que ouve em seu consultório.
REATAR
A aposentada M. L. G., de 74, que pediu para não se identificar, ficou viúva, casou-se novamente com um senhor que conheceu num centro de convivência para idosos, separou-se dele, mas acaba de reatar o relacionamento com o marido, que tem 78. “Depois que fiquei viúva, namorei muito até me casar de novo. Brigamos, ficamos um pouco mais de um ano separados, mas voltamos”, conta. Ela admite que não gosta de viver sozinha e que o marido sente mais desejo do que ela. “Gosto muito de fazer carinho e ele fica logo animado. Para o desejo aflorar preciso estar relaxada, mas isso ocorre também quando se é jovem. A sexualidade muda com o tempo, mas continua existindo”, revela. M. G. L. admite que com o primeiro marido nunca chegou ao clímax. “Só fui descobrir o que é isso depois dos 60”, revela.
Maria Aparecida Costa, de 84, e Antônio Mário da Costa, de 92, que já fizeram bodas de ouro, são sócios do Clube da Maturidade há 16 anos e garantem que a convivência com outros idosos modificou completamente suas vidas. E para melhor. “Tomamos a decisão de parar de viver em função da família, dos filhos e dos netos, e voltamos a pensar no casal. Depois disso, começamos a viajar, passamos a conviver com pessoas diferentes e fizemos muitos amigos. É meio diferente do que era antes, mas continuamos a namorar”, reconhece Maria Aparecida.
ENQUANTO ISSO...
...Aids entre idosos
Relatório divulgado pela Unaids, programa da Organização das Nações Unidas para a Aids, mostra que a incidência da doença entre idosos no Brasil está crescendo. Além disso, nos últimos 27 anos, o número de mulheres infectadas pelo vírus HIV aumentou em 54%. Parte do avanço da doença pode ser atribuída ao uso de estimulantes sexuais pelos homens acima de 65 anos, já que eles mostram resistência ao uso de preservativos. A situação é um desafio para o Brasil e pede a criação de políticas públicas para conter o avanço das doenças sexualmente transmissíveis (DST) para atender às necessidades dessa camada da população.
UMA VIDA COM MAIS PRAZER
Idosos enfrentam desafios de manter a sexualidade ativa. Elas tentam vencer os efeitos da queda de hormônios; eles precisam controlar as doenças que surgem depois dos 50
Dias antes do carnaval de 2014, os idosos do grupo Ativa Idade, ligados ao Centro de Convivência do Idoso em Conceição das Alagoas, no Triângulo Mineiro, participaram de uma palestra sobre saúde e sexualidade na terceira idade, ministrada por um médico do município. Antes que a apresentação começasse, os participantes foram avisados de que em cima da mesa havia uma cesta com cerca de 300 preservativos e que eles poderiam pegá-los se quisessem. Em 20 minutos as camisinhas desapareceram. A animação pré-carnavalesca do grupo é uma mostra da disposição para a vida durante a velhice e da mudança de comportamento de uma sociedade que há poucas décadas acreditava que os velhos estavam condenados à decadência física e a perder o seu papel social.
Apesar da evolução do pensamento, porém, envelhecer continua não sendo fácil. No país do culto à beleza, da jovialidade e da sensualidade, a chegada da menopausa causa um considerável impacto físico e psicológico nas mulheres. Nos homens, que não perdem a fertilidade e nem sofrem com a queda drástica dos níveis hormonais, a preocupação a partir dos 50 anos é com os problemas de saúde que comprometem a potência sexual. “Em ambos os casos, porém, o desejo continua a existir”, diz a psiquiatra e coordenadora do Programa de Estudos da Sexualidade da Universidade de São Paulo (ProSex/USP), Carmita Abdo.
TEMA NATURAL
Para o geriatra Ramon Fernando Gual, a principal mudança ocorrida no modo de viver dessa faixa da população foi a abertura um pouco maior das pessoas em relação à própria sexualidade. “Nas gerações mais antigas, nas quais as pessoas estão com 80, 90 anos, o sexo ainda costuma ser um assunto difícil. Entre os mais novos, porém, a sexualidade já é um tema natural, algo normal na vida e que o indivíduo quer manter em dia”, observa. De acordo com ele, essa é uma preocupação que aflige principalmente os homens. “Para eles, a vida sexual é mais prazerosa do que a da mulher. Muitas vezes ela vem de um casamento no qual não descobriu sua sexualidade, já que antes a ideia era satisfazer o marido. “A maior parte de minhas pacientes idosas veio de atividades sexuais nas quais quase nunca sentia prazer”, revela o geriatra.
Maria do Amparo Caldeira Campos, de 67, e Geraldo Líbero Horta Filho, de 77, namoram há cinco anos. Ela, que estudou e se formou num colégio de freiras, ficou viúva e conta que enquanto durou o seu casamento nunca ficou nua diante do marido. “Hoje, já me permito isso. Mas só agora vim a aceitar essa situação do orgasmo. Quando era casada eu sentia, mas morria de vergonha”, reconhece. Hoje, ela diz estar muito mais assumida porque descobriu que “a velhice não é o fim”. Ela e o namorado são atletas de natação, ambos medalhistas. “Nossa vida sexual é ativa e maravilhosa. Ele é muito atuante e não usa estimulante. Eu o faço muito feliz e ele me faz muito feliz”, declara.
A psicóloga Ana Teresa de Abreu Ramos Cerqueira, professora do departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria e da Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual Paulista (Unesp), trabalha com grupos de idosos. Na semana que passou, conversou com mulheres da terceira idade. “O que me surpreende é que elas já conseguem falar dos seus desejos, das perspectivas que têm em relação à sexualidade e também de suas limitações e as dos companheiros”, afirma. Outra surpresa fica por conta da atitude dessas idosas diante das restrições que a idade impõe ao sexo. “Elas estão mais ativas e positivas, dispostas a tentar resolver e a compartilhar sentimentos”, revela. No fim das contas, segundo a psicóloga, o conceito de sexualidade vai muito além do ato sexual em si. “Trata-se de proximidade, de tudo que seja fonte de prazer e realização para o casal.”