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Leci Moreira tem 35 anos. Ela desconhece que nasceu com invejáveis olhos verdes. Nunca os viu, de fato, destacados quando passa lápis preto na linha d’água. A moça vaidosa só tem 5% da visão em ambos os olhos. Funcionalmente, é considerada cega. Assim como ela, Michelle, Regina e Aline não podem ver nada ou não enxergam quase nada.
A impossibilidade de se verem refletidas no espelho não as faz menos vaidosas. Em uma manhã de sexta-feira, elas se reúnem em um estúdio de maquiagem. Querem aprender a se maquiar sozinhas. De fato, elas não poderão ver o resultado, ou apenas identificarão as nuances da sombra e do batom. Mas todas se sentem mais belas quando maquiadas.
A ideia do curso para deficientes visuais é da maquiadora Andréa Andrade. O desafio surgiu quando foi procurada por uma jovem cega que a perguntou se poderia ensinar-lhe tal arte. Andréa não acreditou muito na proposta, mas decidiu ajudá-la. Foi quando começou ela própria a se pintar com os olhos fechados, para ter uma ideia das dificuldades que sua aluna enfrentaria. Depois de um ano, são quase 20 deficientes visuais que já aprenderam com ela. Andréa se emociona ao falar do projeto, batizado de Beleza que se vê. Ela lembra que muitas travam contato pela primeira vez com pincéis, curvex e delineadores. Pelo tato, com a ajuda da profissional, elas começaram a descobrir esses segredos de beleza.
Andréa orienta as alunas a conhecer o próprio rosto e a usar cores para deixá-lo mais bonito. Não é fácil, porém. A autonomia conquistada ao dominar pincéis e pós de maquiagem não dispensa a avaliação do olhar alheio. Quando a mulher tem um resquício desse sentido, tem mais noção do resultado ao aplicar o batom e as sombras, por exemplo. Mas se só enxerga a escuridão, é preciso contar com a sensibilidade dos dedos e com ajuda do outro para que a maquiagem saia o mais perfeita o possível.
A psicóloga Aline Wanderer, 29 anos, por exemplo, não pode ver absolutamente nada. Assim, não se arrisca a se pintar sozinha. O marido também é cego e, dessa maneira, não há quem a ajude na tarefa. Por isso, decidiu fazer o curso de Andréa. Não sabe como colocará em prática os ensinamentos, mas estava disposta a conquistar mais uma autonomia. Na hora de passar o rímel, sua mão estava gelada. “Vou borrar tudo”, comentou a moça, que nunca tinha tido contato com uma máscara de cílios antes. Uma dica da professora é colocar papel-toalha debaixo dos olhos na hora da aplicar. Isso evita que a tinta manche a pele e os pelos escapem das cerdas. As alunas tentam, acham difícil. Será questão de treino, de não ter medo de errar e se sujar nas primeiras vezes.
Para que as alunas se familiarizem com seus novos aliados, Andréa delicadamente pega na mão de cada uma delas e entrega um pincel: o de espuma para espalhar sombra, o mais fino para esfumá-la. Os mais cheios devem ser usados para o pó e o outro, um tantinho menor, para o blush. O tato é o segredo para quem não pode contar com a visão. Por isso, Andréa ensina a passar a sombra com a ponta dos dedos. Fica mais fácil controlar a quantidade de produto e a reconhecer os lugares onde eles serão aplicados.
Depois de espalhar o pó e a base, ela propõe que todas apliquem duas cores de sombra. “Vixi, vai ser difícil”, exclama uma delas. Um truque para que a pintura saia o mais uniforme possível, segundo a professora, é passar o dedo na sombra e contar quantas vezes ele vai ser aplicado em cada pálpebra. O resultado, claro, precisa contar com olhos de confiança. Quem não tem alguém que enxergue em casa, a maquiadora aconselha a sair sempre com uma nécessaire para que alguma amiga possa retocar os eventuais escorregões.
Michelle Rabello tem um namorado que não tem a deficiência, mas nunca pediu a ele ajuda na hora de se maquiar. Foi só ali, durante a aula, que ela se deu conta de que ele poderia dar uma forcinha quando quisesse se enfeitar sem errar. “E se ele tiver pena de me corrigir?”, diz. “Mas ele vai deixar você sair com o rosto manchado?”, alguém questiona. Pensando bem, ela acha que não.
Essa servidora pública pôde ver até os 17 anos, mas uma doença inflamatória, chamada uveite, aos poucos foi tornando essa tarefa quase impossível. Hoje, aos 32 anos, ela não enxerga nada no olho esquerdo e só tem 10% de visão no direito. É justamente essa pequena porcentagem que lhe garante um mínimo de independência. Com a ajuda de um espelho, que aos olhos saudáveis parece fora de foco, ela tem noção do contorno do rosto. Na memória, carrega com nitidez os tons e isso facilita na hora de comprar a maquiagem. Mas não se arrisca a aplicá-la sozinha. Um de seus olhos ficou menor por causa da atrofia muscular. Para ela, é difícil deixá-los simétricos, ainda mais com as sombras escuras que tanto gosta. Andréa ajuda. Ela tenta e fica ainda mais linda com a sombra grafite.
Agora chegou a hora de aplicar o desejado batom vermelho. Michelle só tinge os lábios de tons fortes quando conta com a ajuda da mãe. Durante o curso, tentou. Com a visão que ainda resta, tem uma noção da forma dos lábios, mas desconhece os contornos que devem limitar até onde o batom deve ser aplicado. A professora sugere que, em vez de usar a bala do produto, ela aplique com os dedos. Talvez facilite tatear o desenho da própria boca. Ela se arrisca e acha que a tarefa, tão simples para outras mulheres, é uma verdadeira superação. O tom rubro extrapola. Michelle aplica com cotonete, por sugestão da maquiadora. Considera mais fácil. E agora, está segura? “Não, ainda não sei se tenho coragem de passar sozinha e sair na rua.”
Pedir a opinião alheia não é um problema. As deficientes visuais estão acostumadas a contar com os outros. A falante Regina é a que mais pode usufruir do que resta da sua visão. “Essa criatura pode usar um espelho. Que inveja! Sinta-se feliz por isso”, diz Leci para ela. Ainda assim se sente incapaz de dar acabamento às sombras e ao resto da maquiagem nos olhos. Despachada, chama sempre as amigas para maquiá-las. Se, em dia de evento, a agenda de todas estiver apertada, não se faz de rogada. Leva as maquiagens para a festa e pede que alguma mais prendada a produza nem que seja no carro, a caminho da festa.
Naquela aula, Regina levou um arsenal de produtos que mantém em casa. Queria aprender a usar o que já tinha. Borrou os olhos. Tentou limpá-los. Com ajuda de Andréa, retocou. Desistiu de fazer sozinha o tão sonhado olho de gatinha. A professora disse que esse é mesmo um dos passos mais difíceis até para quem tem a visão 100%. Aplicou a sombra verde de um lado e um verde de tom diferente no outro. Não diferenciou as cores tão parecidas. Mesmo assim, ao fim, olhou-se no espelho e, com o resultado que pôde conferir com 25% da visão, declarou: “Tá tão bonito o meu olho. Tá tão legal!”
Ao lado dela, Leci achou difícil passar o lápis na linha d’água. Era o que desejava aprender. Apesar de não ter noção de como a maquiagem destaca o verde dos seus olhos, confia na opinião das amigas. Ao término da aula, não sabia se iria aventurar-se na maquiagem em voo solo, mas gostou da experiência. Para finalizar, o batom. Perguntou à professora qual tom combinaria mais com o resto das cores que já tinham sido usadas. Andréa escolheu uma cor discreta, como Leci disse gostar. A moça precisou confiar que a escolha era a mais acertada. Coloriu os lábios sozinha e isso já era uma enorme vitória.