No livro 'A velhice', publicado em 1970, Simone de Beauvoir é dura com as palavras. “Essa anomalia normal, a velhice, parece ser vivida, no plano da saúde, com uma mistura de indiferença e mal-estar. Conjunturamos a ideia de doença, invocando a idade; aludimos à noção de idade, invocando a doença, e, com esse ardil, conseguimos não acreditar nem em uma nem em outra.” Nessa confusão, aceitar a sexualidade na terceira idade é um desafio, ainda mais complexo quando está associada a problemas de saúde mental.
Da mesma forma que idosos com demência sofrem alterações na cognição, na memória e no julgamento, podem ter a sexualidade comprometida. “A existência da demência não exclui as necessidades e os desejos sexuais. Temos a percepção de que uma limitação física ou cognitiva impossibilita isso. Pelo contrário, dependendo do tipo de demência, pode aumentar o desejo sexual”, explica Valmari Cristina Aranha, psicóloga do Hospital de Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
Segundo Aranha, entre os principais aspectos a serem considerados, está a condição do cônjuge do paciente com deterioração cognitiva. “Falar em sexualidade é falar da construção dela e de como o casal a formou.” A psicóloga pondera ainda que existe também o comprometimento da intimidade. Dependendo do grau da doença, há, por exemplo, a presença de cuidadores e a realização de mudanças no espaço físico que podem levar à impossibilidade de um momento de troca efetiva.
Nessas condições, há o risco de declínio da relação e de aumento das insatisfações. “Muitos desses problemas não acontecem com casais que não têm a prática sexual ativa ou não tinham. Eles seguem com a vida naturalmente”, pondera. Quando há uma relação satisfatória e que vai sofrer interferência com as alterações cognitivas, os efeitos costumam ser maiores.
O declínio se dá também em função da sobrecarga de cuidados pelo parceiro, principalmente as mulheres, as que mais se responsabilizam pelo companheiro com demência. O cansaço físico acaba desviando o interesse pelo sexo. Outra reação é a mudança de papéis. O idoso com Alzheimer ou outras complicações cognitivas vira um filho para o cônjuge. “São atividades desde cuidar da higiene física até trocar fraldas. Fazer essa configuração para depois existir um desejo sexual é difícil”, observa Aranha.
Normalmente, a insatisfação do parceiro se mostra mais evidente quando há um problema de disfunção erétil ou de falta de confiança. Num cenário em que um dos idosos tem demência, o parceiro saudável pode se questionar se, quando inicia uma interação sexual, está “abusando” do outro e seu desejo sexual condiz com a sua idade, já que esses desejos durante a velhice são um tabu.
Cuidadores
Autor do trabalho A velha sexualidade nos idosos de hoje: quando surge a demência, José Augusto Simões, professor de mestrado em gerontologia da Universidade de Aveiro, em Portugal, observa que, no caso dos cuidadores, a convivência tende a se tornar ainda mais preocupante quanto maior for a tendência deles de ver o paciente não como um adulto dotado de identidade sexual, mas como um ser assexuado. “Assim, enquanto alguns concordam que o doente tem direito à expressão da sexualidade dentro de certos parâmetros, outros podem simplesmente ignorar o assunto ou, pelo menos, até sentir essas manifestações como uma afronta às crenças pessoais e aos códigos morais.”
Para o especialista, os profissionais que lidam diariamente com indivíduos com deficit cognitivo devem estar conscientes de que, à medida que a demência evolui, também as necessidades se modificam. As relações existentes podem sofrer alterações, surgem novos relacionamentos e o desejo sofre flutuações, tudo isso sem alterar o direito que cada adulto tem de permanecer sexualmente ativo. “Desde que assim ele deseje e não violente os direitos do outro, independentemente da idade, da capacidade ou da preferência sexual”, complementa.
Vontade constatada
Estudos realizados na década de 1960 já mensuravam a prevalência dos interesses sexuais na terceira idade. Entre 60 e 65 anos, estão presentes em 60% das mulheres e em 80% dos homens. Nos indivíduos com mais de 70, a porcentagem cai para 26% e 61%, respectivamente. Forma mais comum de demência, o Alzheimer atinge 1% das pessoas que estão na faixa etária de 60 a 65 anos. A partir dessa idade, a incidência praticamente duplica a cada cinco anos.
Difícil com limitações físicas
A dificuldade de estabelecer uma relação sexual com parceiros em estado de limitações físicas começa a intrigar especialistas. Um estudo publicado neste mês, na revista científica Parkinsonism & Related Disorders, buscou analisar a qualidade de vida sexual em pacientes com mal de Parkinson e cônjuges deles. O trabalho foi conduzido por Gila Bronner, do Centro de Medicina Sexual do Centro Médico Sheba, em Israel. A equipe comandada por ela avaliou dados de 89 parkinsonianos, sendo 66 homens. Os resultados indicam que pacientes do sexo masculino mostraram uma rejeição ao sexo significativamente menor do que as mulheres. Curiosamente, as pacientes relataram satisfação sexual mais elevada.
De acordo com os pesquisadores, estudos anteriores indicaram que a necessidade de intimidade e de expressão sexual são importantes dimensões da qualidade de vida para as pessoas com mal de Parkinson, correlacionando-se com satisfação geral pela vida. “Para as pessoas com essa doença, que têm de lidar com mudanças substanciais na função sexual, alcançar uma relação íntima e sexual satisfatória é um desafio. Esses resultados sugerem que os profissionais de saúde devem se concentrar nas necessidades de parceiros e planejar intervenções específicas que melhorem a condição geral do parceiro”, resume Bronner.
Leia também:Idoso sofre menos para se assumir gay
Da mesma forma que idosos com demência sofrem alterações na cognição, na memória e no julgamento, podem ter a sexualidade comprometida. “A existência da demência não exclui as necessidades e os desejos sexuais. Temos a percepção de que uma limitação física ou cognitiva impossibilita isso. Pelo contrário, dependendo do tipo de demência, pode aumentar o desejo sexual”, explica Valmari Cristina Aranha, psicóloga do Hospital de Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP).
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Nessas condições, há o risco de declínio da relação e de aumento das insatisfações. “Muitos desses problemas não acontecem com casais que não têm a prática sexual ativa ou não tinham. Eles seguem com a vida naturalmente”, pondera. Quando há uma relação satisfatória e que vai sofrer interferência com as alterações cognitivas, os efeitos costumam ser maiores.
O declínio se dá também em função da sobrecarga de cuidados pelo parceiro, principalmente as mulheres, as que mais se responsabilizam pelo companheiro com demência. O cansaço físico acaba desviando o interesse pelo sexo. Outra reação é a mudança de papéis. O idoso com Alzheimer ou outras complicações cognitivas vira um filho para o cônjuge. “São atividades desde cuidar da higiene física até trocar fraldas. Fazer essa configuração para depois existir um desejo sexual é difícil”, observa Aranha.
Normalmente, a insatisfação do parceiro se mostra mais evidente quando há um problema de disfunção erétil ou de falta de confiança. Num cenário em que um dos idosos tem demência, o parceiro saudável pode se questionar se, quando inicia uma interação sexual, está “abusando” do outro e seu desejo sexual condiz com a sua idade, já que esses desejos durante a velhice são um tabu.
Cuidadores
Autor do trabalho A velha sexualidade nos idosos de hoje: quando surge a demência, José Augusto Simões, professor de mestrado em gerontologia da Universidade de Aveiro, em Portugal, observa que, no caso dos cuidadores, a convivência tende a se tornar ainda mais preocupante quanto maior for a tendência deles de ver o paciente não como um adulto dotado de identidade sexual, mas como um ser assexuado. “Assim, enquanto alguns concordam que o doente tem direito à expressão da sexualidade dentro de certos parâmetros, outros podem simplesmente ignorar o assunto ou, pelo menos, até sentir essas manifestações como uma afronta às crenças pessoais e aos códigos morais.”
Para o especialista, os profissionais que lidam diariamente com indivíduos com deficit cognitivo devem estar conscientes de que, à medida que a demência evolui, também as necessidades se modificam. As relações existentes podem sofrer alterações, surgem novos relacionamentos e o desejo sofre flutuações, tudo isso sem alterar o direito que cada adulto tem de permanecer sexualmente ativo. “Desde que assim ele deseje e não violente os direitos do outro, independentemente da idade, da capacidade ou da preferência sexual”, complementa.
Vontade constatada
Estudos realizados na década de 1960 já mensuravam a prevalência dos interesses sexuais na terceira idade. Entre 60 e 65 anos, estão presentes em 60% das mulheres e em 80% dos homens. Nos indivíduos com mais de 70, a porcentagem cai para 26% e 61%, respectivamente. Forma mais comum de demência, o Alzheimer atinge 1% das pessoas que estão na faixa etária de 60 a 65 anos. A partir dessa idade, a incidência praticamente duplica a cada cinco anos.
Difícil com limitações físicas
A dificuldade de estabelecer uma relação sexual com parceiros em estado de limitações físicas começa a intrigar especialistas. Um estudo publicado neste mês, na revista científica Parkinsonism & Related Disorders, buscou analisar a qualidade de vida sexual em pacientes com mal de Parkinson e cônjuges deles. O trabalho foi conduzido por Gila Bronner, do Centro de Medicina Sexual do Centro Médico Sheba, em Israel. A equipe comandada por ela avaliou dados de 89 parkinsonianos, sendo 66 homens. Os resultados indicam que pacientes do sexo masculino mostraram uma rejeição ao sexo significativamente menor do que as mulheres. Curiosamente, as pacientes relataram satisfação sexual mais elevada.
De acordo com os pesquisadores, estudos anteriores indicaram que a necessidade de intimidade e de expressão sexual são importantes dimensões da qualidade de vida para as pessoas com mal de Parkinson, correlacionando-se com satisfação geral pela vida. “Para as pessoas com essa doença, que têm de lidar com mudanças substanciais na função sexual, alcançar uma relação íntima e sexual satisfatória é um desafio. Esses resultados sugerem que os profissionais de saúde devem se concentrar nas necessidades de parceiros e planejar intervenções específicas que melhorem a condição geral do parceiro”, resume Bronner.