A pesquisa liderada por Kenneth Sherman, autor-sênior do estudo, indica que o tratamento antirretroviral contra HIV em pacientes infectados também pelo VHC tem efeito contrário do imaginado: não só combate o primeiro vírus, como reduz a replicação do segundo. Os resultados foram publicados nesta quinta-feira (24) na revista Science Translational Medicine. Investigações sobre o assunto ganharam força no início da década de 2000 e a maior parte deles apoiava a suposição de que é impossível controlar simultaneamente os dois micro-organismos sem gerar prejuízos ao corpo coinfectado.
“Na época, especulamos que o fenômeno poderia ter base em alterações nas respostas imunes inatas e específicas associadas à supressão do HIV”, diz Sherman. Ele decidiu investigar mais a fundo a reação do organismo de 17 pacientes coinfectados submetidos à terapia recente com antirretrovirais. Os voluntários foram submetidos a avaliações periódicas de sangue para que fosse possível monitorar as mais sutis mudanças na resposta imune e na carga viral. Um subgrupo de pacientes registrou aumento inicial dos níveis de um marcador de lesão hepática, o ALT, nas primeiras 16 semanas de tratamento. No entanto, ao longo de um período de 18 meses, as cargas virais de VHC foram reduzidas a níveis desejados para um paciente infectado apenas com hepatite C.
Ainda não há uma explicação para o resultado inesperado, mas muitas teorias. Pode ser, por exemplo, que a supressão completa do HIV com antirretrovirais gere uma regulação defeituosa dos genes que são estimulados com interferons — componentes críticos do sistema da proteção imune inata, isto é, aquela que não age contra um patógeno específico. Essa falha na regulação promove uma explosão de replicações do VHC, elevando a carga viral da hepatite. “No entanto, a reconstituição imune melhora os processos de defesa que ‘limpam’ as células infectadas do fígado. Com o tempo, a replicação do VHC é controlada e reduzida”, explica Sherman.
Até a descoberta dessa mecânica do corpo, segundo ele, qualquer sinal de aumento do ALT era considerado um alerta para que a medicação fosse suspensa. Nesse caso, muitos especialistas param de prescrever os antirretrovirais ou alteram o esquema dos medicamentos acreditando evitar o aumento da lesão hepática relacionada às drogas. “Mas nossos dados mostram que um mecanismo diferente é responsável pela explosão na replicação do VHC e que a medicação não deve ser interrompida. O uso de antirretrovirais a longo prazo reduz os níveis dos vírus e diminui as lesões, tornando o tratamento da doença mais fácil.”
Outros avanços
Essa não é a única novidade sobre a coinfecção de HIV e hepatite anunciada nos últimos dias. Duas universidades também norte-americanas divulgaram resultados promissores nesse sentido. Pesquisadores do Hospital Geralo de Massachusetts detectaram que a única droga com aprovação do governo dos EUA para reduzir os depósitos de gordura abdominal em soropostivos sob terapia antirretroviral pode também diminuir a incidência de doenças hepáticas. Já cientistas da Universidade Johns Hopkins mostraram que um conjunto de medicamentos pode não apenas tratar, mas também curar a hepatite C em coinfectados. O novo remédio combina as drogas sofosbuvir e ribavirin e aguarda aprovação para ser comercializado.
Sharon Lewin, um dos copresidentes da 20ª Conferência Internacional Aids 2014, realizada desde domingo na Austrália, comemora os resultados. “Estou muito contente que, nesta semana, vamos ouvir falar de alguns avanços verdadeiramente inovadores nos tratamentos de hepatite C e tuberculose, duas coinfecções mais significativas em pessoas com HIV. Como cientista, continuo apaixonada pela busca de uma vacina e cura”, disse.
Benefícios a longo prazo
Alguns medicamentos são hepatotóxicos, isto é, muito tóxicos para o fígado. Quando está muito alto, mudamos o esquema de medicamentos. No entanto, apesar disso, é possível tratar a hepatite simultaneamente com o HIV. Há muitos pacientes tratados e vários são curados. Os antivirais que existem hoje têm um índice de cura que beira 90%, inclusive nos pacientes coinfectados. Mesmo nos esquemas antigos, a taxa de cura alcançava os 40%. Nunca deixamos de tratar por medo. O estudo da Universidade de Cincinnati não foi com pacientes diretamente, mas de observação. Há outros mais interessantes do ponto de vista clínico. Já sabemos que mesmo que exista essa primeira explosão da replicação do vírus, a terapia traz muitos benefícios em longo prazo.
Alexandre Cunha, médico infectologista do Laboratório Sabin e coordenador de comunicação da Sociedade Brasileira de Infectologia