Isso acontece porque, se os homossexuais ou bissexuais são presos ou perseguidos, evitam submeter-se a testes de HIV ou buscar tratamento quando estão infectados. A francesa Françoise Barré-Sinoussi, prêmio Nobel de Medicina, alertou, na abertura do evento, que em "todas as regiões do mundo o estigma e a discriminação seguem sendo os principais obstáculos para o acesso efetivo à saúde".
"Não ficaremos de braços cruzados enquanto governos, em violação de todos os princípios dos direitos humanos, aplicam leis monstruosas, que apenas marginalizam as pessoas mais vulneráveis da sociedade", acrescentou a médica, uma das responsáveis pela descoberta do HIV. Enquanto cada vez mais países ocidentais aprovam projetos sobre a igualdade de direitos no matrimônio, saúde, e pensões a homossexuais, outros países endurecem suas legislações contra o grupo LGBT.
Segundo relatório publicado na semana passada pelo Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids, 79 países contam com leis que penalizam as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Em sete deles está prevista a pena de morte como punição. Nigéria, Uganda e Índia são alguns dos países que adotam leis desse tipo. Na Rússia está proibida até mesmo a distribuição de informação sobre a sexualidade.
Doadores impacientes
Kene Esom, ativista nigeriano que trabalha na África do Sul em um grupo de defesa dos direitos dos gays, afirmou que as leis dificultam a difusão de informações sobre sexo seguro e acesso a medicamentos contra o HIV. "Algumas leis proíbem a liberdade de reunião e a liberdade de associação para os homossexuais", explicou Esom, fazendo com que grupos como o seu não possam se reunir ou receber fundos.
Os países ocidentais doaram US$ 19 bilhões para a luta contra a Aids nos países em desenvolvimento em 2013, mas estão começando a perder a paciência, de acordo com Michael Kirby, ex-juiz do Tribunal Supremo da Austrália, que discursou na conferência.
As autoridades dos países com leis homofóbicas "não podem esperar que os contribuintes de outros países continuem pagando indefinidamente", acrescentou, "enquanto eles se recusam a reformar suas leis para ajudar seus próprios cidadãos".
O maior e mais importante encontro sobre HIV/Aids quer reconfigurar e fortalecer os programas de combate à epidemia para que os benefícios dos avanços científicos sejam alcançados globalmente. Apesar dos progressos registrados mundialmente, o estilo de vida e os comportamentos marginalizados deixam profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens, transgêneros, usuários de drogas injetáveis e população carcerária – as cinco populações-chave – em condição de maior exposição ao perigoso micro-organismo. Um agravante é percebido: a estigmatização faz com que enfrentem também grandes barreiras para o acesso aos serviços de prevenção, diagnóstico e tratamento.
Larga escala
O resultado dessa discriminação, por outro lado, não é restrito. O não fornecimento de assistência básica a essas populações atinge indireta e diretamente o bem-estar de todos os outros indivíduos. “Nenhuma dessas pessoas vive em isolamento”, ressalta o diretor do Departamento de HIV da Organização Mundial da Saúde (OMS), Gottfried Hirnschall. “Trabalhadores do sexo e seus clientes têm maridos, esposas e parceiros. Alguns usam drogas injetáveis. Muitos têm filhos.” Em particular, a OMS focou sua participação na renovação das medidas em grande escala, encarando os desafios que devem ser enfrentados para alcançar movimentos globais de resposta à epidemia. O objetivo? O fim da Aids.
O representante brasileiro nessa reformulação é o diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, Fábio Mesquita. Segundo ele, a importância dessa atitude está em adequar as diretrizes mundiais aos novos instrumentos de prevenção, ampliando as opções para além da camisinha e do uso descartável de seringas. “Essa mudança significa uma atenção maior para o que é considerado epidemia concentrada no restante do mundo. Até pela questão do volume de pacientes, a OMS, durante anos, dedicou muito esforço para a epidemia africana generalizada e, pela primeira vez, ela vai para a conferência dando um grande realce para essas epidemias do tipo concentrada, como é a do Brasil.”
A revisão científica defendida pelo brasileiro apoia medidas preventivas medicamentosas direcionadas à populações-chave, como a profilaxia pré-exposição (Prep), já sob implementação aqui. Essa estratégia refere-se à medicação diária com antirretroviral antes do contato com o vírus, de modo que, caso ele ocorra, não haja tempo para se estabelecer.
O diretor explica que as principais evidências mostram uma grande efetividade do método para homens que fazem sexo com homens e apenas uma plausibilidade biológica para outros grupos. “Podemos estimar que, talvez, valha para outras populações de risco acrescido, como profissionais do sexo e transgêneros, mas a evidência não é suficiente pela ausência de estudos”, pondera. Por esse motivo, a recomendação desse método adicional de prevenção se restringiria, pelo menos em um primeiro momento, a esse conjunto de pessoas.
Estratégias polêmicas Para a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), é preciso considerar a heterogeneidade entre os homens que fazem sexo com homens, uma vez que se trata de um grupo formado por gays, bissexuais, garotos de programa, transgêneros e ainda homens que não se identificam como gays ou homossexuais.
Dessa forma, agregá-los pode reproduzir a ideia de “grupo de risco” e uma certa distorção nas diferenças sociais dessas subpopulações. Mais uma vez, entra em discussão a divisão do que seria a população altamente exposta ao vírus e por que deve ser ela a única atingida pela política de prevenção. Segundo a Abia, todas as novas formas de prevenção são bem-vindas, desde que componham o leque de possibilidades e escolhas do sujeito, seja ou não pertencente a grupos vulneráveis. Mesquita rebate as críticas e explica que o “tratamento como prevenção” vem em três frentes no novo guia.
As medidas incluem o tratamento precoce, a Prep e a profilaxia pós-exposição (Pep), oferecida amplamente à população brasileira desde 2012. Trata-se de tratamento antirretroviral imediato, no máximo 72 horas, caso tenha ocorrido comportamento de risco, como sexo sem preservativo com sorodiscordante e exposição a material infectado. (Com agências)
Consternação
Durante todo o dia de ontem, participantes da conferência e também quem passava pelo local continuaram a depositar flores em memória das vítimas do ataque ao avião da Malaysia Airlines, onde viajavam pelo menos seis especialistas já reconhecidos, num total de 298 mortos. Segundo a presidenta da Sociedade Internacional da Aids, Françoise Barre-Sinoussi, pode até haver um número maior de vítimas entre os cientistas mas não chega a 100, conforme anunciado. Representantes de 200 países participam da conferência internacional.