Saúde

Mais de cinco mil embriões foram doados para pesquisa em sete anos no Brasil

Especialistas e Anvisa não souberam dizer, com certeza, para onde foram todos esses embriões ou o que foi feito deles

Agência Estado

A maioria das pesquisas com células-tronco no Brasil é feita com células adultas - obtidas, por exemplo, da medula óssea ou de tecido adiposo - ou com células de pluripotência induzida (iPS) - geneticamente reprogramadas para se comportarem como células embrionárias
Mais de 5 mil embriões humanos foram doados para pesquisa com células-tronco embrionárias (CTEs) no Brasil nos últimos sete anos, segundo um relatório divulgado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nenhum especialista ouvido pelo Estado nem a própria Anvisa, porém, soube dizer com certeza para onde foram todos esses embriões ou o que foi feito deles.


Só no ano passado, 1.231 embriões teriam sido doados por clínicas de fertilidade para projetos de pesquisa com CTEs em todo o País; a maior parte nos Estados de São Paulo (913), Rio Grande do Sul (91) e Rio de Janeiro (87). Os números constam do sétimo relatório do Sistema Nacional de Produção de Embriões (SisEmbrio), que é compilado anualmente pela Anvisa com base em informações fornecidas pelas clínicas de reprodução humana.

Desde 2007, segundo esse acompanhamento, 5.131 embriões teriam sido doados. Um número muito maior do que seria esperado com base no volume de pesquisas com células-tronco embrionárias humanas realizadas no Brasil, que é extremamente pequeno. "Seguramente, esses números do SisEmbrio não são corretos", avalia Edson Borges, médico da clínica Fertility e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida. "É um relatório importante, mas que precisa ser melhorado."

Procurada pela reportagem, a Anvisa não soube informar o que está sendo feito com os embriões nem explicar a razão de as estatísticas de doação variarem tanto de um ano para outro. Em 2010, por exemplo, o número de embriões doados no País foi de 748. No ano seguinte, aumentou para 1.322. Depois, caiu para 315. E agora aumentou de novo, para 1.231.

"Não tenho nenhuma hipótese para explicar isso", disse a especialista em vigilância sanitária Renata Parca, responsável pela elaboração do relatório. Segundo ela, a Anvisa apenas compila os dados que lhe são enviados pelas clínicas de fertilidade, e cabe às vigilâncias sanitárias locais fazer a verificação dos dados junto a esses serviços.

Uma explicação, levantada pela reportagem, seria haver uma falha de comunicação entre a Anvisa e os serviços de reprodução humana no que diz respeito à interpretação dos dados de doação. A agência informou ao Estado que os números do relatório representam embriões "que já foram utilizados em pesquisa". Na interpretação de algumas clínicas, porém, eles representam embriões cujos donos assinaram um consentimento de doação - o que não significa que eles tenham sido doados na prática.

"Os casais assinam a doação e nós informamos a Anvisa, mas isso não quer dizer que os embriões saíram da clínica. Na prática, eles continuam congelados", diz o médico Eduardo Motta, da Huntington Medicina Reprodutiva, em São Paulo. A demanda de embriões humanos para pesquisa no Brasil, segundo ele, é "ínfima".

Uma hipótese mais preocupante seria a possibilidade de clínicas de fertilidade estarem reportando como doados embriões que, na verdade, foram descartados. "Pode até ser que isso aconteça por má fé, mas as vigilâncias locais podem detectar facilmente esse tipo de problema", avalia Renata. "Isso é investigado", garantiu ela.

No Rio Grande do Sul, a presidente da Sociedade Brasileira de Reprodução Humana, Mariangela Badalotti, diz que é "extremamente incomum" os casais de sua clínica (Fertilitat) optarem por doar embriões excedentes. Ela também não soube explicar as estatísticas do SisEmbrio.

USP
A cientista Lygia Pereira, da Universidade de São Paulo, uma das únicas no Brasil que desenvolve pesquisas com CTEs humanas, disse ter recebido cerca de 250 embriões em 2013 - menos de 30% dos embriões que constam como doados no SisEmbrio para o Estado de São Paulo naquele ano. "Não conheço mais ninguém que esteja desenvolvendo linhagens desse tipo de célula no País", diz ela.

Maioria das pesquisas usa células adultas depois do iPS
A maioria das pesquisas com células-tronco no Brasil é feita com células adultas - obtidas, por exemplo, da medula óssea ou de tecido adiposo - ou com células de pluripotência induzida (iPS) - geneticamente reprogramadas para se comportarem como células embrionárias, com capacidade para se diferenciar em qualquer tipo de tecido do organismo. São alternativas que evitam as complicações éticas de trabalhar com células de embriões humanos cuja demanda foi bastante reduzida nos últimos sete anos, após a invenção das iPS.

"Não trabalho com células embrionárias", diz a geneticista Mayana Zatz, pesquisadora do Instituto de Biociências da USP e coordenadora do Instituto Nacional de Células-tronco em Doenças Genéticas Humanas, que trabalha principalmente com células-tronco adultas.

"Desconheço laboratórios de pesquisa no Rio que tenham usado embriões humanos para pesquisa", disse Stevens Rehen, pesquisador da UFRJ e coordenador da Rede Nacional de Terapia Celular do Ministério da Saúde.

Interesse
As células-tronco de embriões humanos continuam sendo de grande interesse para a ciência, principalmente para pesquisas básicas sobre diferenciação celular e desenvolvimento embrionário. Elas ainda são consideradas as células "padrão ouro", usadas como referência para pesquisas com iPS e outros tipos de células pluripotentes. Para fins de aplicação em terapia celular, porém, as iPS são as mais promissoras atualmente.