Apesar do pouco destaque durante a cerimônia, a abertura da Copa do Mundo exemplifica uma nova fronteira da ciência: Juliano Pinto, um paciente paraplégico, com a ajuda do exoesqueleto idealizado pelo neurocientista Miguel Nicolelis, levantou-se e chutou uma bola. Tal façanha tem por fundamento a neuroestimulação (ou neuromodulação). Como o termo sugere, o procedimento consiste em estimular, com eletricidade, circuitos nervosos que controlam funções do corpo. A estimulação pode ser feita em vários locais do sistema nervoso, como cérebro, nervos periféricos, medula e tronco cerebral. O procedimento não é recente. Em Brasília, a primeira cirurgia do gênero foi feita em 1996. Porém, as aplicações se expandiram muito de lá para cá.
Luiz Claudio Modesto Pereira é neurocirurgião da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal (SESDF), doutor em ciências da saúde pela Universidade de Brasília (UnB), especializado em neurocirurgia funcional e membro de diversas sociedades médicas, como a Sociedade Internacional de Movimentos Anormais e a Sociedade Internacional para Estudo da Dor. Ele explica que os neurônios, além de se comunicarem por meio de substâncias químicas, são células elétricas, ou seja, produzem impulsos elétricos. “O cérebro é como um computador que tem vários circuitos. Esses circuitos são especializados e independentes, embora interligados entre si”, compara.
A partir do quadro clínico e de exames de imagens, os médicos são capazes de detectar qual circuito está com problemas. Os especialistas, então, implantam microeletrodos no local em que o estímulo será mais proveitoso ao tratamento. Os eletrodos são ligados a um marca-passo. Dentro de cada aparelho, há vários componentes: gerador de estímulos elétricos, transmissores e receptores de ondas eletromagnéticas e chips de processamento de informações. Tudo isso em uma caixinha de até 3cm.
O efeito dos estímulos elétricos no corpo é similar ao de um medicamento. Um paciente com Parkinson, por exemplo, tem baixos níveis de dopamina no cérebro. Se ele toma o remédio, a substância é aumentada artificialmente e os sintomas melhoram. O mesmo ocorre quando o aparelho de estimulação elétrica é ligado. “O paciente volta a tremer quando o efeito do comprimido passa. Ou quando o estímulo cessa”, compara o médico. “A vantagem é que pode haver um efeito sinérgico ou somatório entre o medicamento oral e a estimulação”, acrescenta.
Há outros benefícios do procedimento em comparação com a abordagem medicamentosa. Por exemplo, os estímulos têm o poder de proporcionar alívio a pacientes em estágios avançados. A doença permanecerá seu curso, mas os sintomas poderão “estacionar” nas fases iniciais. Isso é particularmente relevante no caso de doenças degenerativas, como o Parkinson.
Jarbas Abreu Junior, 59 anos, descobriu que tinha Parkinson aos 43. Antes disso, havia recebido um diagnóstico de “tremores essenciais familiares”. “Esse é um termo para dizer que o sintoma não tinha explicação, devia ser de família”, explica. À época militar da Aeronáutica, ele achou melhor passar a realizar atividades civis. Foi aí que veio o diagnóstico oficial. No começo do tratamento, os medicamentos o ajudaram a voltar a escrever, da noite para o dia, em suas próprias palavras. “Foi quase como um milagre”, lembra. “Fui fazer um texto manuscrito e mostrei para minha mulher, chorando.”
Com o tempo, porém, o remédio perdeu o efeito. As doses foram elevada ao limite, mas causavam efeitos colaterais. Em julho do ano passado, Jarbas passou pela neuromodulação. “Quis fazer em função das câimbras — elas me tiravam o apoio das pernas e me faziam cair no chão, inerte”, descreve. A essa altura, outros comprometimentos incomodavam Jarbas: dificuldade de articular palavras, de escrever e de realizar movimentos mais detalhados com as mãos. Era preciso procurar uma alternativa.
Os tremores pararam imediatamente após a cirurgia. “Não digo que foi uma melhora de 100%, porque isso seria impossível. Mas 95% dos sintomas eu não sinto mais”, comemora. “É como se voltasse ao estágio zero da doença.” Jarbas ainda tem certa dificuldade para falar, tremores localizados e esporádicos, mas os sintomas mais fortes se foram.
Pesquisas promissoras
O neurocirurgião Luiz Claudio Pereira afirma que não há evidências de que a técnica faça mais do que apenas mudar funções neurológicas temporariamente. Porém, algumas pesquisas atuais já tentam descobrir se a neuromodulação pode, literalmente, mudar estruturas cerebrais. “Talvez, além de mudar a função, estejamos ajudando o cérebro”, frisa o especialista. Pesquisas incipientes sobre Alzheimer sugerem que a atrofia do órgão pode se reverter e até novos neurônios possam surgir com o uso da neuromodulação. A pesquisa ainda está sendo feita e só terminará em 2015, mas, caso os resultados preliminares se confirmem, a técnica pode ser encarada como método de reversão de doenças, em vez de paliativo de sintomas.
A lista de doenças e sintomas tratáveis com a neuroestimulação é extensa. No caso de problemas neurológicos, os eletrodos são implantados diretamente no cérebro. Para ajudar pacientes paraplégicos, como no experimento de Nicolelis, eles devem ser implantados na medula espinhal. No córtex cerebral, os estímulos elétricos podem captar a atividade elétrica do cérebro e até executar comandos em próteses. “Eles podem ser implantados para tratar sintomas como dor crônica, tremor, rigidez, lentidão de movimentos e espasmos involuntários”, enumera Luiz Claudio.
É possível ainda, segundo o médico, melhorar ou bloquear uma determinada função neurológica de um circuito neural. “Por exemplo, se colocarmos um eletrodo numa parte do circuito cerebral que capta a memória aguda, podemos amplificar esta captação de memória, ou, se desejado, bloquear a captação de novas memórias”, detalha o neurocirurgião. O mesmo acontece em relação aos movimentos do corpo: um eletrodo colocado em uma área relacionada aos movimentos pode fazer com que a mão do paciente se mova ou mesmo reduzir a habilidade da pessoa de contrair a mão.
A técnica também vem sendo estudada e aprimorada para tratar problemas psiquiátricos, já que, no cérebro, há circuitos específicos que controlam a felicidade e a tristeza, a compulsão e a recompensa. Funções cerebrais complexas, como sentimentos e o humor, podem ser modificadas ou equilibradas com os estímulos. “No futuro, praticamente todas as funções do sistema nervoso central serão passíveis de controle, mudança, ajuste ou auxílio”, resume o médico.
Candidatos ao procedimento
Embora a neuroestimulação seja extremamente eficaz em vários casos, nem todos os pacientes estão aptos a se submeter à cirurgia. Para que alguém seja candidato ao procedimento, é preciso que os sintomas sejam intratáveis por meio de terapias ou medicamentos, que a doença cause sofrimento considerável e que o indivíduo esteja com perdas significativas na qualidade de vida. A aposentada Nilta Cordeiro Pianeli, 52 anos, precisou passar por 43 cirurgias até ser indicada como candidata ao tratamento.
Em 1985, Nilta corria maratonas. Um dia, torceu o pé enquanto se exercitava e foi ao hospital. Foi informada de que precisaria de cirurgia e gesso. “Nessa primeira cirurgia, o médico fez uma ‘barbeiragem’ e ‘torceu’ meu nervo”, conta. O gesso que colocaram estava muito apertado e fazia Nilta sentir dor o tempo inteiro. Novas cirurgias foram feitas, no intuito de corrigir o erro médico do primeiro procedimento. Porém, quanto mais os médicos mexiam, mais os nervos da perna de Nilta doíam.
A dor transformou-se em crônica e se expandiu. Todo o nervo tibial posterior esquerdo, que vai do joelho ao tornozelo da perna esquerda, estava comprometido. A perna acabou ficando com fibrose e, consequentemente, mais e mais dolorida. Na última intervenção cirúrgica pré-neuromodulação, Nilta precisou tirar um enxerto das costas para criar uma espécie de acolchoamento do nervo — algo como colocar mais pele para protegê-lo, uma vez que, para ela, era como se ele estivesse, literalmente, à flor da pele.
Em 2002, finalmente, os problemas pareciam ter chegado ao fim. Com o implante do neuroestimulador (uma bomba de infusão de morfina), a dor não sumiu, mas melhorou significativamente. “O médico optou por colocar mais um aparelho, então fiquei usando dois”, detalha Nilta. Voltando de uma viagem de navio, Nilta cometeu um erro fatal para pacientes com marca-passo: atravessou um detector de metais. “Os dois deram um ‘tilt’, como se estivessem operando no máximo”, descreve. Por conta do episódio, Nilta teve um descontrole urinário e precisou usar fraldas por meses.
Os dois marca-passos defeituosos foram substituídos por uma bomba de morfina. Todos os dias, ela libera 1ml de morfina no corpo dela. A capacidade de armazenamento do aparelho é de 40ml, o que dá quase um mês e meio entre uma abastecida e outra. Além da bomba de morfina, ela continua com medicamentos analgésicos. Hidroterapia e fisioterapia também entram na lista de tratamentos obrigatórios. “Não acabou completamente com a dor, mas melhorou muito. Foi a melhor coisa que tentei”, diz Nilta.
Alívio imediato
Thiago Freitas, neurologista funcional e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Neuromodulação (SBNM), explica que, em alguns casos, os marca-passos são testados antes do procedimento definitivo. Pacientes com dor, como Nilta, ficam com o aparelho ligado à coluna e conectados a um gerador externo de teste por 7 a 10 dias antes do implante dos eletrodos. “O indivíduo vai avaliar o grau de melhora, como estão as atividades de vida dele e se gosta do estímulo”, enumera. A função do estimulador, segundo o médico, é enganar o cérebro, substituindo a sensação de dor por uma vibração.
No caso de doentes de Parkinson, não é preciso passar por testes — basta a análise do protocolo de indicação. No documento, há avaliações de memória, testes com remédios e o histórico do paciente. Os ajustes são feitos após a cirurgia: depois do procedimento, o paciente retorna para que o médico teste diferentes voltagens nos eletrodos implantados, até chegar à medida correta para amenizar os sintomas. O gerador tem prazo de validade. Se for de alta voltagem, dura de dois a três anos. “Hoje há geradores recarregáveis, que podem durar até nove anos”, completa Freitas.
Hélida Chalega Cassiano, 36 anos, passou praticamente 1 ano e meio sentindo dor crônica. Tudo começou quando a economista escorregou e caiu no trabalho, em junho de 2005. Na queda, torceu os dois pés. De lá para cá, sua odisseia passou por gesso, inchaço e cirurgias. “Eu sentia dor o dia inteiro, inclusive enquanto estava com o gesso”, descreve. Após 20 dias imobilizada, ela pode, finalmente, tirar o gesso. “O médico decidiu não colocar mais porque meu pé já estava duro, travado. Não movimentava mais.” A perna, por falta de uso, atrofiou-se. Hélida desenvolveu, além da dor crônica, osteoporose. “O gesso ‘comeu’ a pele, como se tivesse grudado”, relembra.
Na fisioterapia, cada movimento era um parto. Sem ter controle dos movimentos, mover a perna fina e atrofiada era um desafio. Hélida passou a se locomover com muletas e a tomar medicamentos cada vez mais fortes para controlar a dor. Foi preciso seis meses até que ela conseguisse colocar o pé no chão e voltar a trabalhar. Na época, contudo, uma caminhada de 100m era o máximo que ela conseguia percorrer. “A dor foi subindo para o joelho e para a perna inteira”, conta. “A parte ortopédica foi bem tratada, recuperei os movimentos. Mas a dor nunca passava.”
Hélida foi aconselhada pelo ortopedista a procurar um especialista em dor. Finalmente, em dezembro de 2006, foi encaminhada para um neurologista de São Paulo, que indicou a neuromodulação como tratamento. O aparelho escolhido para resolver o problema dela foi implantado na coluna em 2007. Ele permanece ligado 24 horas por dia: hoje, ela sente somente vibrações na perna. “Quando saí do centro cirúrgico, já não sentia dor. Mudou a minha vida. Hoje caminho, durmo, tudo sem dor”, comemora.
As doenças a seguir já tiveram o tratamento via estimulação elétrica aprovado:
Dor após múltiplas cirurgias de coluna
Dor crônica, especialmente dor neuropática
Tremor severo incapacitante
Doença de Parkinson idiopática em estado moderado ou avançado
Distonia generalizada
Transtorno obsessivo compulsivo severo e incontrolável
Transtorno depressivo grave intratável
Epilepsia não controlada por medicações ou por cirurgia de ressecção
Paralisia respiratória por lesões da medula espinal, até abaixo do nível C4
Síndrome de Tourette
Daqui para frente
A neuromodulação é hoje considerada uma das maiores esperanças da medicina. Se as pesquisas atuais estiverem corretas, representará a cura de diversas doenças. Ao contrário de procedimentos anteriores, que lesionavam tecidos a fim de eliminar circuitos defeituosos, a neuromodulação tem a vantagem de ser reversível. Se a alteração não for satisfatória, basta retirar o marca-passo. “Antigamente, para Parkinson, os médicos queimavam o alvo: os neurônios. Não tinha volta”, compara o neurologista Thiago Freitas.
Atualmente, Thiago participa de uma equipe de médicos interessada na estimulação elétrica do pâncreas de pacientes diabéticos. O objetivo é fazer com que o órgão volte a produzir insulina. “Ainda não sabemos se vai funcionar, mas é algo que não se imaginava”, comenta. “Quem sabe a neuromodulação pode acabar com a diabetes. Não há limites”, especula.
Para o neurocirurgião Luiz Claudio Modesto Pereira, é possível pensar, inclusive, no uso da neuromodulação para pessoas saudáveis. Pesquisas voltadas para aumentar a inteligência, a resistência ou a precisão de movimentos, segundo o médico, podem começar a ser encomendadas por interessados na condição de “super-humano”. “Esse será um dilema ético que teremos que viver e que será discutido em um ambiente multidisciplinar”, avisa.
Em uma previsão mais imediata, o médico acredita que o aparelho dará mais autonomia ao paciente, evoluindo para um dispositivo semi-inteligente. Um paciente com convulsões, por exemplo, vai ter no cérebro um eletrodo e, no crânio, um marca-passo capazes de identificar quando uma crise está chegando. No momento certo, segundos antes da convulsão, poderá mandar um estímulo elétrico para impedir o problema. “Na próxima década, isso já vai estar disponível no mercado”, prevê o especialista.
Luiz Claudio Modesto Pereira é neurocirurgião da Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal (SESDF), doutor em ciências da saúde pela Universidade de Brasília (UnB), especializado em neurocirurgia funcional e membro de diversas sociedades médicas, como a Sociedade Internacional de Movimentos Anormais e a Sociedade Internacional para Estudo da Dor. Ele explica que os neurônios, além de se comunicarem por meio de substâncias químicas, são células elétricas, ou seja, produzem impulsos elétricos. “O cérebro é como um computador que tem vários circuitos. Esses circuitos são especializados e independentes, embora interligados entre si”, compara.
A partir do quadro clínico e de exames de imagens, os médicos são capazes de detectar qual circuito está com problemas. Os especialistas, então, implantam microeletrodos no local em que o estímulo será mais proveitoso ao tratamento. Os eletrodos são ligados a um marca-passo. Dentro de cada aparelho, há vários componentes: gerador de estímulos elétricos, transmissores e receptores de ondas eletromagnéticas e chips de processamento de informações. Tudo isso em uma caixinha de até 3cm.
O efeito dos estímulos elétricos no corpo é similar ao de um medicamento. Um paciente com Parkinson, por exemplo, tem baixos níveis de dopamina no cérebro. Se ele toma o remédio, a substância é aumentada artificialmente e os sintomas melhoram. O mesmo ocorre quando o aparelho de estimulação elétrica é ligado. “O paciente volta a tremer quando o efeito do comprimido passa. Ou quando o estímulo cessa”, compara o médico. “A vantagem é que pode haver um efeito sinérgico ou somatório entre o medicamento oral e a estimulação”, acrescenta.
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Com o tempo, porém, o remédio perdeu o efeito. As doses foram elevada ao limite, mas causavam efeitos colaterais. Em julho do ano passado, Jarbas passou pela neuromodulação. “Quis fazer em função das câimbras — elas me tiravam o apoio das pernas e me faziam cair no chão, inerte”, descreve. A essa altura, outros comprometimentos incomodavam Jarbas: dificuldade de articular palavras, de escrever e de realizar movimentos mais detalhados com as mãos. Era preciso procurar uma alternativa.
Os tremores pararam imediatamente após a cirurgia. “Não digo que foi uma melhora de 100%, porque isso seria impossível. Mas 95% dos sintomas eu não sinto mais”, comemora. “É como se voltasse ao estágio zero da doença.” Jarbas ainda tem certa dificuldade para falar, tremores localizados e esporádicos, mas os sintomas mais fortes se foram.
Pesquisas promissoras
O neurocirurgião Luiz Claudio Pereira afirma que não há evidências de que a técnica faça mais do que apenas mudar funções neurológicas temporariamente. Porém, algumas pesquisas atuais já tentam descobrir se a neuromodulação pode, literalmente, mudar estruturas cerebrais. “Talvez, além de mudar a função, estejamos ajudando o cérebro”, frisa o especialista. Pesquisas incipientes sobre Alzheimer sugerem que a atrofia do órgão pode se reverter e até novos neurônios possam surgir com o uso da neuromodulação. A pesquisa ainda está sendo feita e só terminará em 2015, mas, caso os resultados preliminares se confirmem, a técnica pode ser encarada como método de reversão de doenças, em vez de paliativo de sintomas.
A lista de doenças e sintomas tratáveis com a neuroestimulação é extensa. No caso de problemas neurológicos, os eletrodos são implantados diretamente no cérebro. Para ajudar pacientes paraplégicos, como no experimento de Nicolelis, eles devem ser implantados na medula espinhal. No córtex cerebral, os estímulos elétricos podem captar a atividade elétrica do cérebro e até executar comandos em próteses. “Eles podem ser implantados para tratar sintomas como dor crônica, tremor, rigidez, lentidão de movimentos e espasmos involuntários”, enumera Luiz Claudio.
É possível ainda, segundo o médico, melhorar ou bloquear uma determinada função neurológica de um circuito neural. “Por exemplo, se colocarmos um eletrodo numa parte do circuito cerebral que capta a memória aguda, podemos amplificar esta captação de memória, ou, se desejado, bloquear a captação de novas memórias”, detalha o neurocirurgião. O mesmo acontece em relação aos movimentos do corpo: um eletrodo colocado em uma área relacionada aos movimentos pode fazer com que a mão do paciente se mova ou mesmo reduzir a habilidade da pessoa de contrair a mão.
A técnica também vem sendo estudada e aprimorada para tratar problemas psiquiátricos, já que, no cérebro, há circuitos específicos que controlam a felicidade e a tristeza, a compulsão e a recompensa. Funções cerebrais complexas, como sentimentos e o humor, podem ser modificadas ou equilibradas com os estímulos. “No futuro, praticamente todas as funções do sistema nervoso central serão passíveis de controle, mudança, ajuste ou auxílio”, resume o médico.
Candidatos ao procedimento
Embora a neuroestimulação seja extremamente eficaz em vários casos, nem todos os pacientes estão aptos a se submeter à cirurgia. Para que alguém seja candidato ao procedimento, é preciso que os sintomas sejam intratáveis por meio de terapias ou medicamentos, que a doença cause sofrimento considerável e que o indivíduo esteja com perdas significativas na qualidade de vida. A aposentada Nilta Cordeiro Pianeli, 52 anos, precisou passar por 43 cirurgias até ser indicada como candidata ao tratamento.
Em 1985, Nilta corria maratonas. Um dia, torceu o pé enquanto se exercitava e foi ao hospital. Foi informada de que precisaria de cirurgia e gesso. “Nessa primeira cirurgia, o médico fez uma ‘barbeiragem’ e ‘torceu’ meu nervo”, conta. O gesso que colocaram estava muito apertado e fazia Nilta sentir dor o tempo inteiro. Novas cirurgias foram feitas, no intuito de corrigir o erro médico do primeiro procedimento. Porém, quanto mais os médicos mexiam, mais os nervos da perna de Nilta doíam.
A dor transformou-se em crônica e se expandiu. Todo o nervo tibial posterior esquerdo, que vai do joelho ao tornozelo da perna esquerda, estava comprometido. A perna acabou ficando com fibrose e, consequentemente, mais e mais dolorida. Na última intervenção cirúrgica pré-neuromodulação, Nilta precisou tirar um enxerto das costas para criar uma espécie de acolchoamento do nervo — algo como colocar mais pele para protegê-lo, uma vez que, para ela, era como se ele estivesse, literalmente, à flor da pele.
Em 2002, finalmente, os problemas pareciam ter chegado ao fim. Com o implante do neuroestimulador (uma bomba de infusão de morfina), a dor não sumiu, mas melhorou significativamente. “O médico optou por colocar mais um aparelho, então fiquei usando dois”, detalha Nilta. Voltando de uma viagem de navio, Nilta cometeu um erro fatal para pacientes com marca-passo: atravessou um detector de metais. “Os dois deram um ‘tilt’, como se estivessem operando no máximo”, descreve. Por conta do episódio, Nilta teve um descontrole urinário e precisou usar fraldas por meses.
Os dois marca-passos defeituosos foram substituídos por uma bomba de morfina. Todos os dias, ela libera 1ml de morfina no corpo dela. A capacidade de armazenamento do aparelho é de 40ml, o que dá quase um mês e meio entre uma abastecida e outra. Além da bomba de morfina, ela continua com medicamentos analgésicos. Hidroterapia e fisioterapia também entram na lista de tratamentos obrigatórios. “Não acabou completamente com a dor, mas melhorou muito. Foi a melhor coisa que tentei”, diz Nilta.
Alívio imediato
Thiago Freitas, neurologista funcional e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Neuromodulação (SBNM), explica que, em alguns casos, os marca-passos são testados antes do procedimento definitivo. Pacientes com dor, como Nilta, ficam com o aparelho ligado à coluna e conectados a um gerador externo de teste por 7 a 10 dias antes do implante dos eletrodos. “O indivíduo vai avaliar o grau de melhora, como estão as atividades de vida dele e se gosta do estímulo”, enumera. A função do estimulador, segundo o médico, é enganar o cérebro, substituindo a sensação de dor por uma vibração.
No caso de doentes de Parkinson, não é preciso passar por testes — basta a análise do protocolo de indicação. No documento, há avaliações de memória, testes com remédios e o histórico do paciente. Os ajustes são feitos após a cirurgia: depois do procedimento, o paciente retorna para que o médico teste diferentes voltagens nos eletrodos implantados, até chegar à medida correta para amenizar os sintomas. O gerador tem prazo de validade. Se for de alta voltagem, dura de dois a três anos. “Hoje há geradores recarregáveis, que podem durar até nove anos”, completa Freitas.
Hélida Chalega Cassiano, 36 anos, passou praticamente 1 ano e meio sentindo dor crônica. Tudo começou quando a economista escorregou e caiu no trabalho, em junho de 2005. Na queda, torceu os dois pés. De lá para cá, sua odisseia passou por gesso, inchaço e cirurgias. “Eu sentia dor o dia inteiro, inclusive enquanto estava com o gesso”, descreve. Após 20 dias imobilizada, ela pode, finalmente, tirar o gesso. “O médico decidiu não colocar mais porque meu pé já estava duro, travado. Não movimentava mais.” A perna, por falta de uso, atrofiou-se. Hélida desenvolveu, além da dor crônica, osteoporose. “O gesso ‘comeu’ a pele, como se tivesse grudado”, relembra.
Na fisioterapia, cada movimento era um parto. Sem ter controle dos movimentos, mover a perna fina e atrofiada era um desafio. Hélida passou a se locomover com muletas e a tomar medicamentos cada vez mais fortes para controlar a dor. Foi preciso seis meses até que ela conseguisse colocar o pé no chão e voltar a trabalhar. Na época, contudo, uma caminhada de 100m era o máximo que ela conseguia percorrer. “A dor foi subindo para o joelho e para a perna inteira”, conta. “A parte ortopédica foi bem tratada, recuperei os movimentos. Mas a dor nunca passava.”
Hélida foi aconselhada pelo ortopedista a procurar um especialista em dor. Finalmente, em dezembro de 2006, foi encaminhada para um neurologista de São Paulo, que indicou a neuromodulação como tratamento. O aparelho escolhido para resolver o problema dela foi implantado na coluna em 2007. Ele permanece ligado 24 horas por dia: hoje, ela sente somente vibrações na perna. “Quando saí do centro cirúrgico, já não sentia dor. Mudou a minha vida. Hoje caminho, durmo, tudo sem dor”, comemora.
As doenças a seguir já tiveram o tratamento via estimulação elétrica aprovado:
Dor após múltiplas cirurgias de coluna
Dor crônica, especialmente dor neuropática
Tremor severo incapacitante
Doença de Parkinson idiopática em estado moderado ou avançado
Distonia generalizada
Transtorno obsessivo compulsivo severo e incontrolável
Transtorno depressivo grave intratável
Epilepsia não controlada por medicações ou por cirurgia de ressecção
Paralisia respiratória por lesões da medula espinal, até abaixo do nível C4
Síndrome de Tourette
Daqui para frente
A neuromodulação é hoje considerada uma das maiores esperanças da medicina. Se as pesquisas atuais estiverem corretas, representará a cura de diversas doenças. Ao contrário de procedimentos anteriores, que lesionavam tecidos a fim de eliminar circuitos defeituosos, a neuromodulação tem a vantagem de ser reversível. Se a alteração não for satisfatória, basta retirar o marca-passo. “Antigamente, para Parkinson, os médicos queimavam o alvo: os neurônios. Não tinha volta”, compara o neurologista Thiago Freitas.
Atualmente, Thiago participa de uma equipe de médicos interessada na estimulação elétrica do pâncreas de pacientes diabéticos. O objetivo é fazer com que o órgão volte a produzir insulina. “Ainda não sabemos se vai funcionar, mas é algo que não se imaginava”, comenta. “Quem sabe a neuromodulação pode acabar com a diabetes. Não há limites”, especula.
Para o neurocirurgião Luiz Claudio Modesto Pereira, é possível pensar, inclusive, no uso da neuromodulação para pessoas saudáveis. Pesquisas voltadas para aumentar a inteligência, a resistência ou a precisão de movimentos, segundo o médico, podem começar a ser encomendadas por interessados na condição de “super-humano”. “Esse será um dilema ético que teremos que viver e que será discutido em um ambiente multidisciplinar”, avisa.
Em uma previsão mais imediata, o médico acredita que o aparelho dará mais autonomia ao paciente, evoluindo para um dispositivo semi-inteligente. Um paciente com convulsões, por exemplo, vai ter no cérebro um eletrodo e, no crânio, um marca-passo capazes de identificar quando uma crise está chegando. No momento certo, segundos antes da convulsão, poderá mandar um estímulo elétrico para impedir o problema. “Na próxima década, isso já vai estar disponível no mercado”, prevê o especialista.