A resposta pode ser negativa e positiva. Nesse ponto, a comunidade médica se divide. Pesquisadores da Universidade de Southern California mostram a primeira prova científica de que uma intervenção natural, como o jejum, pode disparar a regeneração celular de um sistema imunológico danificado ou envelhecido. Ao mesmo tempo e surpreendentemente, a prática reduz os níveis de colesterol em indivíduos pré-diabéticos por um período prolongado, de acordo com médicos do Instituto do Coração Intermountain. Na contramão desses animadores resultados, pesquisas de instituições brasileiras alertam para o perigo de alterações metabólicas, especialmente quando parar de comer tem como alvo o emagrecimento (leia Saiba Mais, logo abaixo).
Segundo José Alves Lara Neto, vice-presidente da Associação Brasileira de Nutrologia, ninguém pode jejuar sem causar novas reações nutroneuroquímicas no organismo. “Ao focar o jejum no emagrecimento, condenamos qualquer tipo de resposta futura. Quem define o quanto engordamos ao comer também é o cérebro ao determinar a taxa metabólica basal”, explica. Esse índice corresponde à quantidade calórica que o corpo necessita em 24 horas para se manter nutrido durante o decorrer das atividades diárias ou fazendo um jejum de pelo menos 12 horas em repouso sem prejudicar o funcionamento dos principais órgãos.
“Um religioso, ao fazer jejum, está imbuído de todo o sentimento de que o processo vale a pena porque ele vai estar espiritualizado e ter o aumento da imunidade. Ele está exemplarmente capacitado a reger uma situação de jejum. O que sente alguém que passa fome? Fica cada vez mais deprimido; portanto, a imunidade dele baixa”, diz o médico. A resposta pode estar nesse viés. O servidor público Carlos Vinícius Brito Reis, de 35 anos, conta que faz jejum há mais de 10 anos como prática espiritual. Segundo ele, há orientação e preparação específicas. Diferentemente do que é imaginado por quem não consegue conceber a ideia de ficar alguns dias sem comer, as refeições antes e depois do jejum precisam ser leves. A ideia é fazer uma transição tranquila para o organismo, que, depois de muito tempo sem receber alimento, não aguentará ser abarrotado de comida.
“Quem não tem o hábito de jejuar não deve entrar em uma abstinência total de alimentos por um prazo indeterminado. Ele pode ir diminuindo gradativamente a quantidade, fazer a mudança de sólidos para líquidos até chegar ao jejum”, dá a dica. Além de uma sensação de bem-estar única, Carlos Vinícius conta que percebe uma melhora da condição física em geral, como a interrupção de alergias.
Regeneração celular
A “limpeza” e a “renovação” do organismo são foco de pesquisa de Valter Longo, professor de gerontologia e ciências biológicas da Universidade de Southern California. Seu artigo publicado na revista Cell Stem Cell relatou que ciclos de jejum prolongado protegem contra danos ao sistema imunológico – um principal efeito colateral da quimioterapia – e induzem a regeneração dele, mudando as células-tronco de um estado dormente para de autorrenovação.
Tanto em camundongos quanto em um primeiro ensaio clínico com humanos, duradouros períodos sem se alimentar promoveram a redução significativa da contagem de células brancas do sangue. Nas cobaias, os ciclos tornaram-se, em seguida, “um interruptor de regeneração”: alterando as vias de sinalização para as células-tronco hematopoéticas, responsáveis pela geração de sangue e do sistema imunológico. “Quando você morre de fome, o sistema tenta economizar energia. E uma das coisas que pode fazer para poupar energia é reciclar muitas das células do sistema imunológico que não são necessárias, especialmente aquelas que podem estar danificadas”, explica Longo. A quantidade de células diminui, mas a produção dessas estruturas é retomada assim que a pessoa volta a se alimentar.
A pesquisa também tem implicações para a tolerância à quimioterapia e para pacientes com um vasta gama de anomalias do sistema imunitário, incluindo distúrbios autoimunes. Os resultados de um ensaio clínico com um pequeno grupo de pacientes em jejum por um período de 72 horas antes da quimioterapia mostrou que a interrupção da alimentação pode atenuar alguns dos efeitos nocivos do tratamento. Os pesquisadores alertam, no entanto, que ainda são necessários mais estudos sobre o tema e que qualquer intervenção nutricional deve ser realizada apenas sob orientação médica.
Quebrando as células de gordura
O relacionamento da servidora pública Lívia Carmem Ghesti Dias, de 40 anos, com o jejum é antigo. Ela iniciou o processo como parte dos cuidados espirituais, mas afirma que sente sempre um bem-estar físico também. As calças ficam mais largas, o sistema digestório funciona a pleno vapor e até o humor melhora. “O corpo não deve sofrer, a ideia não é passar mal. Fico sempre mais paciente com as pessoas, com os problemas. Quando termino o jejum, estou com menos vontade de comer, ajuda a ter um autocontrole dos alimentos.” A sensação de bem-estar geral faz com que a prática passe a figurar entre as mudanças de estilo de vida indicadas, por exemplo, aos pré-diabéticos, somada à realização de exercícios físicos e à alimentação balanceada.
“Notei que, depois de 10 ou 12 horas, o corpo começa uma limpeza geral em busca de outras fontes de energia para se sustentar. Começa a usar o colesterol LDL das células de gordura, por exemplo”, detalha Benjamin Horne, diretor de epidemiologia cardiovascular e genética no Instituto do Coração Intermountain e principal autor de um pesquisa apresentada durante a 74ª Sessão Científica da Associação Americana de Diabetes.
O LDL é conhecido como o colesterol ruim e tratado como um dos fatores de risco para o diabetes. Em pesquisa prévia para o estudo, em 2011, Horne mostrou que pessoas saudáveis sob um jejum com acesso apenas à água durante 24 horas tiveram níveis de glicose inferiores e perda de peso. “O colesterol subiu ligeiramente, como ocorreu em nosso estudo prévio das pessoas saudáveis, mas notei que, ao longo de seis semanas, os níveis de colesterol diminuíram em cerca de 12%, além de uma perda de peso.”
Isso porque, provavelmente, a energia usada para sustentar o organismo começou a ser tirada de células de gordura. Esse processo de extração deve ajudar a evitar a resistência à insulina – quando o pâncreas produz muito hormônio, mas as células do organismo não respondem mais a ele. Como é responsável pela regulação de açúcar no sangue, as taxas deixam de ser controladas. “As células de gordura são um dos principais contribuintes para a resistência à insulina. Já que o jejum pode ajudar a eliminar e quebrar as células de gordura, a resistência à insulina pode ser frustrada por ele.”
Na visão da endocrinologista Cintia Cercato, da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), estudos com jejum intermitente levaram a uma maior perda de peso e, por isso, a melhores índices de glicemia, controle metabólico e as demais taxas que dependem do peso corporal. “O grande problema dessa dieta é não ter estudos a longo prazo que mostrem a manutenção das vantagens encontradas na prática a curto prazo”, observa. Um dos receios de indicar a interrupção da alimentação está em, por exemplo, levar o paciente a um consumo muito alto de calorias quando ele puder voltar a comer. “A princípio, os trabalhos mostraram uma baixa no peso, mas sem saber se depois haverá algum tipo de adaptação do corpo quando a alimentação for regularizada”, argumenta.
Alterações no cérebro
No jejum intermitente, são alternados ciclos de alimentação normal e de jejum. A prática tem sido usada como estratégia de emagrecimento, embora sejam desconhecidos os efeitos que possam ter para a saúde. Um trabalho liderado pelo estudante de mestrado Bruno Chausse, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, mostrou que alterações no hipotálamo podem explicar alguns efeitos da dieta, como redução do ganho de massa corporal e baixa conversão energética. Ao analisar amostras do hipotálamo de cobaias submetidas a um regime de 24 horas de alimentação à vontade por 24 horas de jejum, ele detectou aumento na expressão dos neurotransmissores que estimulam o apetite e a conservação de energia. Segundo o pesquisador, embora esse tipo de dieta possa promover redução no ganho de peso e trazer alguns benefícios para a saúde, há também consequências indesejáveis. Uma delas é a alteração do controle do apetite no hipotálamo, o que levou os ratos a ter fome o tempo todo, mesmo quando comiam. Nos dias em que os ratos submetidos ao jejum intermitente puderam se alimentar, ingeriram cerca de 53% da porção diária nas primeiras duas horas do dia e apresentaram taxas metabólicas aumentadas.
As inspirações
Existem diversos motivos que levam uma pessoa a fazer jejum. Confira os dois principais:
MÉDICA
Algumas cirurgias eletivas requerem um mínimo de oito horas de jejum pré-operatório absoluto, idealmente 12 horas
O jejum pode ser necessário também após os procedimentos cirúrgicos por um tempo variável. Nesses casos, pode ser necessária a nutrição enteral ou a parenteral para suprir as necessidades do doente
RELIGIOSA
Católicos: A abstinência total ou parcial de comida e bebida (com exceção da água) não é proposta a pessoas em condições especiais de vulnerabilidade, como crianças, enfermos, viajantes, idosos e grávidas
Evangélicos: Creem que, jejuando, a pessoa fica mais forte espiritualmente e resistente ao inimigo e às tentações carnais
Muçulmanos: É praticado durante todo o mês do Ramadã. Da alvorada ao pôr do sol eles não comem e não bebem nada, nem mesmo água
Judeus: Fazem jejum no Dia do Perdão (Yom Kippur). Do pôr do sol de um dia ao do outro, não comem e não bebem nada, nem mesmo água
Budismo (Buddha Dharma): É muitas vezes um ato de sacrifício pessoal em respeito ao alimento e uma forma de refletir a importância dos alimentos e vícios