Um recente estudo feito na Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, encontra pistas de por que as lembranças enganam: aparentemente, as recordações humanas se adaptam ao ambiente no qual a pessoa está inserida no momento. É como se a memória tentasse levar para o passado um pouco do presente. E, segundo os autores da pesquisa, essa mutação parece funcionar como uma estratégia de sobrevivência da espécie.
Donna Jo Bridge, uma das cientistas responsáveis pelo trabalho e professora da Faculdade de Medicina de Northwestern, explica que o experimento se baseou em trabalhos anteriores da mesma equipe, que já apontavam a existência de uma mudança da memória cada vez que uma situação específica do passado é lembrada. “Mostramos agora que a memória muda sempre que nos lembramos de um evento específico. E essa lembrança vem com influências do presente”, destaca.
Para comprovar essa intromissão do hoje no ontem, Bridge e colegas realizaram um experimento com 17 pessoas, tanto homens quanto mulheres. Os voluntários deviam estudar a posição em que alguns objetos apareciam em uma tela de computador. Ao fundo dessas figuras, eram mostradas diferentes paisagens, como o mar e uma vista aérea de terras agrícolas. Em seguida, os pesquisadores pediam aos participantes para indicarem onde os objetos tinham sido posicionados na tela quando mostrados pela primeira vez, mas o pano de fundo era alterado. Em todos os casos, os sujeitos erraram a posição, adaptando a figura ao novo cenário.
Em uma segunda parte do experimento, os objetos eram novamente mostrados em três posições: a original; aquela em que o voluntário os tinham colocado equivocadamente; e uma terceira, aleatória. “As pessoas sempre escolhiam o local que elas tinham apontado de maneira errada na parte anterior do estudo”, conta Bridge. “Isso mostra a sua memória original do local sendo alterada para atualizar as informações, inserindo novos dados”, analisa.
Imperfeita
Durante o experimento, os 17 participantes tiveram o cérebro monitorado por ressonância magnética funcional, o que permitiu aos cientistas apontarem o hipocampo como a região onde ocorre essa “edição” da memória. Para Bridge, longe de ser um defeito, a tendência de reescrever lembranças é uma estratégia de defesa do ser humano, que pode, assim, se manter focado no que realmente importa atualmente.
Joel Voss, autor sênior do artigo, publicado no Journal of Neuroscience, afirma que os resultados derrubam o mito de uma memória perfeita. “Todos gostam de pensar nas recordações como algo que nos permite reviver nossa infância ou o que fizemos na semana passada. Mas ela é feita para nos ajudar a tomar boas decisões no presente e, portanto, precisa se manter atualizada”, afirma, em um comunicado à imprensa. “A informação que é relevante agora pode se sobrepor ao que estava lá no começo”, completa.
Entre as implicações da descoberta, Bridge acrescenta, pode estar uma revisão da importância dada a testemunhas oculares em julgamentos. “Nossa memória é construída para mudar. Embora isso tenha ocorrido em um ambiente de laboratório, é razoável pensar que as lembranças surgem de forma semelhante no mundo real”, diz a professora. O psiquiatra brasileiro Paulo Mattos, do Instituto D’or de Pesquisa, concorda. “Os americanos possuem uma cultura de julgamentos em que dão total validade a testemunhos. Mas temos histórias de condenados por estupro com base em relatos e que, anos depois, foram inocentados graças a testes de DNA”, lembra o especialista, que não participou do estudo.
Confirmação
Para Sônia Brucki, coordenadora do Departamento Científico da Associação Brasileira de Neurologia (ABN), o experimento mostra uma suspeita que já existia na área da neurociência. “Havia a desconfiança de que a memória pode sofrer influências de outros fatores, como cargas emocionais, provocando visões diferentes do mesmo evento. Desta vez, temos esses indícios comprovados por meio de um experimento que apontou essas mudanças”, avalia. Brucki concorda que o fenômeno se trata de uma estratégia da mente. “As lembranças sofrem influência de fatos recentes, que podem ser usados para um futuro mais próximo. Essa informação atual pode ser mais necessária do que a antiga”, completa.
Paulo Mattos acrescenta que pesquisas sobre o funcionamento da mente podem ser úteis no entendimento de doenças cognitivas. “Podemos ter avanços importantes em relação a quadros de envelhecimento e a problemas que surgem na terceira idade, como o mal de Alzheimer.” O grupo da Universidade de Northwestern já trabalha na continuidade do estudo, buscando decifrar com mais precisão as áreas do cérebro relacionadas à memória. “Estamos estudando pacientes com danos seletivos no hipocampo. Examinamos a possibilidade de o dano nessa região influenciar a capacidade de modificar memórias”, adianta Bridge.