Publicada na revista Translational Psychiatry, a pesquisa, realizada em camundongos com sintomas semelhantes ao da doença, sugere que o autismo é consequência de uma anormalidade na comunicação celular. Os pesquisadores observaram que um medicamento quase centenário utilizado para tratar a doença do sono é capaz de reverter essa falha. De acordo com Robert K. Naviaux, líder do estudo, a descoberta reforça a teoria de que uma das principais causas do distúrbio é de origem metabólica. “Questões genéticas e ambientais interagem nas células, gerando o metabolismo”, explica. “Mas, quando se sentem ameaçadas, as células agem de forma defensiva, alterando processos internos.”
Com essa alteração, a comunicação entre as células acaba prejudicada, numa forma de mandar ao organismo um alerta de perigo. Se essa resposta persistir por muito tempo, os prejuízos podem ser duradouros. “Se isso ocorre durante a infância, por exemplo, o neurodesenvolvimento sofre um atraso”, comenta. Naviaux afirma que, no caso dos neurônios, a alteração leva ao estabelecimento de mais ou de menos conexões. “Uma outra maneira de explicar: quando as células param de falar umas com as outras, as crianças param de falar”, reforça.
A partir dessa constatação, a equipe focou em um sistema de sinalização celular responsável por transmitir essa mensagem de perigo: as citocinas (moléculas geradas pela mitocôndria e desencadeadas por respostas imunes). Elas possuem funções metabólicas fora das células, regulando receptores presentes em todas as células do corpo, chamados purinérgicos. De acordo com o pesquisador, esses receptores são conhecidos por controlar várias características biológicas relacionadas ao autismo, tais como deficiência de linguagem e capacidades sociais.
Em relação às possíveis alterações no funcionamento do metabolismo dos neurônios, Thiago Blanco, psiquiatra do Hospital de Base do Distrito Federal, concorda, em parte, com a equipe americana. “Alterações no metabolismo neuronal estão implicadas na manifestação do autismo, mas precisam ser investigadas com maior detalhamento, de preferência em associação com os estudos de genética e epidemiologia para determinar o poder de efeito de cada um desses elementos para a ocorrência do autismo”, argumenta.
Tratamento
Para combater a alteração celular, Naviaux e sua equipe decidiram testar um medicamento conhecido por seu efeito inibidor em receptores purinérgicos, a suramina. Essa droga foi criada em 1916 para tratar a doença do sono, também conhecida como tripanossomíase africana, causada por parasitas. Os pesquisadores observaram que a suramina bloqueia o caminho usado pelas citocinas para sinalizar o perigo eminente, interrompendo a resposta imune das células. Após essa interferência, as células voltam a se comportar de maneira normal, corrigindo os sintomas metabólicos e comportamentais identificados no autismo.
Naviaux ressalta, porém, que os efeitos obtidos pela suramina não são permanentes nem preventivos. “Uma única dose se manteve eficaz nos camundongos durante cerca de cinco semanas, e depois desapareceu do organismo”, explica. Além disso, o cientista chama a atenção para o fato de que a droga não deve ser usada como tratamento a longo prazo, pois pode trazer danos para a saúde, como anemia e anomalias nas funções das glândulas suprarrenais. “Obviamente, há um longo caminho entre corrigir anomalias em ratos e falar em uma cura para humanos, mas nós pensamos que essa abordagem é uma maneira nova para pensar e enfrentar o desafio do autismo”, reforça.
Na avaliação de Naviaux, a suramina remove um obstáculo que, se interrompido por drogas novas e mais seguras, deve favorecer o trabalho de psicólogos. “Uma nova classe de medicamentos pode ser dada apenas durante as janelas de desenvolvimento para desbloquear o metabolismo e permitir respostas melhores a vários tipos de terapias comportamentais e ocupacionais”, acredita. Nesse aspecto, Blanco concorda com o pesquisador, mas com ressalvas. “O estudo segue uma área com grande potencial para o manejo do autismo, mas ainda encontra-se numa fase muito inicial, contemplando apenas sugestões para explicar a manifestação do transtorno autístico. Cabem estudos mais aprofundados e mais específicos para reforçar os resultados e eventualmente determinar a possibilidade de um novo recurso terapêutico”, conclui.
No Brasil
A prevalência de autismo no Brasil não é muito diferente da maioria dos países no mundo, mas faltam estudos de prevalência nos países em desenvolvimento como um todo. Estima-se, por estudo nacional, que 0,3% das crianças apresentem o distúrbio, mas nas pesquisas internacionais esse percentual pode alcançar até 1%, considerando critérios diagnósticos mais amplos, explica o psiquiatra Thiago Blanco.