No DNA, estão todas as informações de um indivíduo. Cor de cabelo, tom de voz, altura, predisposição a doenças. Da mesma forma, o genoma poderia carregar a marca da maldade. É o que sustentam alguns criminólogos. Baseado em pesquisas que sugerem um componente genético na violência, há quem defenda que cometer atos criminosos é uma característica herdada, com a qual se nasce, querendo ou não.
Em textos publicados na internet, entusiastas do mapeamento dos genes da violência defendem que, um dia, o conto Minority Report de alguma forma se transforme em realidade: “sabendo” quem vai cometer um crime, seria possível encarcerar essas pessoas de forma preventiva. Os criminólogos sérios não respaldam essa ideia, ressalta Paul S. Appelbahu, pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova York. Mas, para o especialista, que publicou um artigo sobre o assunto na edição de junho da revista Neuron, a abordagem genética nos tribunais é uma estratégia perigosa e não científica.
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Usos consolidados
Lentamente, o DNA tem se tornado um aliado das investigações criminais, influenciando as decisões de juízes. Graças ao exame genético, é possível determinar a autoria de estupros, assassinatos, filiações não reconhecidas… Sem falar em condenados injustamente que tiveram as penas revogadas após o DNA inocentá-los. O código genético, aliás, não chega a ser uma novidade para criminólogos. No fim da década de 1960, pouco tempo depois da descoberta da estrutura de dupla hélice, testes ainda rudimentares começaram a ser usados nos EUA para tentar associar a violência e à hereditariedade.
Contudo, o que Appelbahu teme é que, um dia, se escaneie o genoma de um ser humano para confirmar ou descartar a participação dele em um delito, baseado na probabilidade biológica de essa pessoa ser criminosa. “À medida que a genética se tornar um visitante cada vez mais frequente nos tribunais, o risco das informações sobre o DNA serem interpretadas de forma errada serão reais. De forma extrema, podemos imaginar juízes presumindo bases genéticas para o comportamento criminoso na ausência de qualquer evidência confiável”, alerta.
Além dos questionamentos jurídicos e éticos, há um problema grave em se incorporar o sequenciamento do DNA nos manuais de direito penal. “Sequer existe um consenso sobre a influência da genética no comportamento. Hoje, a maior parte dos neurocientistas concorda que os genes desempenham um papel, mas não se sabe exatamente qual e nem a extensão disso”, argumenta Catherine Tublad, psiquiatra do Instituto Karolinska, na Suécia.
Para comparar, no ano passado, um estudo publicado na revista médica The Lancet mostrou que, só no caso dos cânceres de mama, próstata e ovário, existem mais de 80 marcadores genéticos herdados. Ainda assim, portar essas variantes não significa necessariamente que a pessoa terá a doença. No caso de criminalidade e violência, é mais complicado ainda porque, além de se tratar de conceitos subjetivos, os estudos neurobiológicos, que combinam testes de imagem com análises moleculares, são bem mais recentes que os oncológicos.
“À medida que a genética se tornar um visitante cada vez mais frequente nos tribunais, o risco das informações sobre o DNA serem interpretadas de forma errada serão reais”
Paul S. Appelbahu, pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Estado de Nova York
Adotados versus gêmeos separados
Os debates sobre a mente criminosa são frequentes entre cientistas, com diferentes resultados encontrados, dependendo da investigação. Enquanto estudos com gêmeos criados separados ressaltam a força dos fatores ambientais no comportamento violento, pesquisas com crianças adotadas sugerem uma influência maior da hereditariedade. Laura A. Baker, do Departamento de Psicologia da Universidade de Southern California e especialista em genética comportamental, conta que os primeiros estudos do tipo surgiram na década de 1970, na Escandinávia. Ao longo dos anos, foram replicados em países nórdicos e nos Estados Unidos. A ideia é analisar a ficha criminal dos pais biológicos e o comportamento dos filhos, criados longe deles, por famílias adotivas.
Essas pesquisas sugerem que a genética pode influenciar no crime, mas não descartam a influência de fatores externos. Em uma meta-análise conduzida em 2002 pelo Departamento de Psicologia da Universidade de Emory, os cientistas combinaram dados de 51 pesquisas de gêmeos e adotivos, chegando à conclusão de que a hereditariedade é responsável por 41% do comportamento antissocial. O restante é consequência de questões ambientais, como a forma de criação.
“Uma coisa intrigante é que a genética parece influenciar crimes contra o patrimônio, mas não os violentos, como estupro e homicídio”, diz Baker. A neuropsiquiatra Catherine Tublad ressalta que as pesquisas sobre criminalidade e neurobiologia estão, cada vez mais, casando hereditariedade e experiência de vida. “Os estudos atuais sobre comportamento antissocial, incluindo o cometimento de crimes, estão levando em consideração a influência dos genes e do ambiente”, afirma. (PO)
Decisão polêmica
Nascido na Argélia, Abdelmalek Bayout morava na Itália desde 1993. Em 2007, esfaqueou e matou Walter Felipe Novoa Perez, um peruano que também vivia no país europeu. O motivo do crime foi Perez ter feito uma brincadeira com uma maquiagem que Bayout, muçulmano, fez nos olhos para participar de uma cerimônia religiosa.
Durante o julgamento, Tania Cattarossi, advogada de Bayout, pediu à Corte que se levasse em consideração que seu cliente sofria de distúrbios mentais. A solicitação foi acatada pelo juiz Paolo Alessio Vernì, que sentenciou o argelino a 9 anos e 2 meses de prisão, 3 anos a menos do que o esperado. A surpresa, porém, foi que, em maio de 2009, o juiz Pier Valerio Reinotti, da Corte de Apelação de Trieste, pediu novos laudos e, baseado em testes genéticos, reduziu ainda mais a punição. Ele entendeu que Bayout era portador de uma variante associada à agressividade e à criminalidade.
Na época, a decisão judicial foi criticada por psiquiatras forenses e geneticistas. “Noventa por cento dos homicídios de todo o mundo são cometidos por pessoas com um cromossomo Y — homens. Então, deveríamos, por isso, dar a eles sempre uma sentença menor?”, questionou, em entrevista à revista Nature, o geneticista Steve Jones, da University College Londres. O cientista afirmou que, inclusive, também é portador da mutação identificada em Abdelmalek Bayout. “Mas não saio por aí atacando as pessoas”, alegou. (PO)