Deixar tudo para trás. Abandonar o lar, bens, amigos, parentes, emprego, cultura, língua. Ganhar em troca o direito viver e, com sorte, estar junto da família. É essa a condição dos refugiados. “Quero esquecer tudo isso. Já era. Tenho casa, como uma vez por dia, minha família está junta”. A frase é de Wajeha*, 29 anos. Ela deixou o Sudão do Sul há quase três anos junto com o marido, Omar*, 39, e as filhas Nyaring*, 9, e Angelina*, 6. Cristãos em um país majoritariamente islâmico, eram vítimas constantes de agressões verbais e físicas decorrentes da intolerância religiosa. No país de origem, tinham uma vida confortável. Omar era dono de um mercado, a família tinha três carros, residência grande e empregados domésticos. “Meus parentes não sabem da condição que vivemos aqui”, confessa Wajeha. A situação no país de origem ficou insustentável quando Omar passou a ser obrigado a pagar propina para ter o direito de manter seu negócio. “Eles queriam nos expulsar de lá”, diz. Hoje, o sul-sudanês sustenta esposa e filhas com a venda de produtos eletrônicos como celulares e tablets para lojas em São Paulo.
São essas histórias de superação e busca por uma condição de vida melhor que a série de reportagens ‘Crianças refugiadas: o desafio do recomeço’ vai contar. O Saúde Plena conversou com membros de quatro famílias que relataram como estão tentando reconstruir a vida no Brasil. Você vai conhecer Ester, angolana, 4 anos, que insiste em voltar ao país de origem para encontrar o pai; Yazdan, um garoto iraniano de 8 anos apaixonado por futebol, filho de um médico afegão que sonha em exercer a profissão no programa Mais Médicos; Abbuh*, 6 anos, que fugiu do Paquistão sob ameaça terrorista do Taliban e saber mais sobre a adaptação de Nyaring e Angelina, atualmente bolsistas de um tradicional colégio católico na capital paulista. Refugiados são aqueles que são perseguidos em sua pátria e podem morrer se não deixarem sua nação. Ao receberem refúgio em um país, passam a ter garantidos os mesmos direitos que um cidadão naturalizado.
No final da tarde de um domingo, Rosina, 40 anos, saiu de casa para ir à igreja acompanhada de sua filha mais nova, Delfina, 1 ano. Elas nunca mais voltaram ao endereço da família. O sumiço fez com que o pai, preocupado com a vida de Ester e dos outros dois filhos, Francisco Efraim, 6 anos, e Daniel Amado, 2, retirasse as crianças da residência da família e as levasse para a casa de uma prima. Passaram-se três meses até o reencontro de mãe e filhos em uma igreja católica de Luanda e a partida para o Brasil em 5 de fevereiro deste ano. Nenhuma das crianças teve tempo de pegar o brinquedo favorito para colocar na bagagem ou separar as fotos dos bons momentos em família, não puderam sequer se despedir do pai. Na mala, quatro peças de roupa para cada um. “Estava tudo certo para que viéssemos todos”, afirma Rosina, sequestrada por quatro homens e ameaçada de morte após pregar a igualdade na igreja que frequentava.
Instalados em um abrigo que acolhe refugiados em São Paulo, a angolana não tem resposta para todas as perguntas que são feitas a ela desde que chegou ao país. A mãe de Ester não consegue sequer entender a razão de ter sido salva, junto com sua filha mais nova, por um de seus próprios sequestradores. “A gente estava em um sítio. Um padre chegou ao local junto com um dos homens que me levou para lá e nos tiraram do lugar. Fomos para uma igreja. Já estava tudo organizado para virmos ao Brasil”, relata. Rosina também não explica por que o marido não veio e se limita a dizer que o pai de seus quatro filhos sabe que a família está em São Paulo. O que ela conta também não é suficiente para aquietar o coração da pequena Ester que insiste em retornar a Angola para ver o pai. A cada tentativa da menina em encontrar uma justificativa para a mudança brusca de vida, a mãe interpela: “Se a gente voltar, vão me matar e vocês vão me perder”.
A adaptação à vida no novo país é permeada por desafios práticos como moradia, renda e escola, mas são nos aspectos emocional e mental que se encontram talvez as maiores dificuldades de superação, destacadamente para as crianças. A rede de apoio ao refugiado no país não tem estrutura para uma intervenção preventiva. Qual é o estado de saúde mental de uma criança refugiada quando chega ao Brasil? Como essa criança vivencia a situação? O que é possível fazer para diminuir a dor que elas estão sentindo? Perguntas que precisariam de respostas se perdem no caminho da burocracia. Assistente social da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, Aline Tuller afirma que as intervenções terapêuticas ou médicas para avaliar a saúde emocional e psíquica dessas crianças só são feitas quando solicitadas às instituições que atendem os refugiados. “Geralmente a demanda chega para nós quando a família não deu conta”, explica.
Esse é o caso Abbuh, 6 anos. Há cerca de dois meses no Brasil, o garoto apresenta sinais de depressão. Ele, sua mãe Aisha*, 45 anos, e o pai Atif* fugiram do Paquistão ameaçados de morte pelo grupo terrorista Taliban. Para conseguir o dinheiro e partir, a família precisou se desfazer de tudo que tinha: joias, mobília, roupas e até brinquedos. Desde que chegaram, o garoto começou a fazer xixi na cama e tem demonstrado um comportamento agressivo. A família solicitou ajuda à assistente social do abrigo onde vivem para conseguir um acompanhamento médico.
Escassez de emprego e baixos salários no Paquistão levaram o pai de Abbuh a trabalhar no Afeganistão para o exército dos Estados Unidos. Aisha diz que o marido era coordenador de equipamentos na base militar dos EUA quando sofreu sua primeira ameaça. “Atif saiu da base dirigindo um carro que parou por problemas mecânicos em uma estrada no Afeganistão. Ele pediu para que a pessoa que estava com ele voltasse para relatar o problema. Durante a espera, apareceram dois homens em duas motos, com pistolas, para sequestrá-lo. Só que eles tinham um sinal de comunicação para situações de perigo: levantar o casaco. Um helicóptero da ronda americana avistou o gesto e os sequestradores fugiram”, conta a paquistanesa.
Desde o episódio, a família passou a viver sob medo constante e, na tentativa de proteger a vida do filho, Abbuh passou a ser escondido em casa e saía muito pouco. Atif contou que a esposa e o filho foram sequestrados e torturados. Aisha se incomoda em tocar no assunto e explica que usa a palavra incidente para resumir todo o trauma que marca a história de sua família.
A psicóloga e pesquisadora Lucienne Martins Borges desenvolveu em Quebec, Canadá, o Serviço de Atendimento Psicológico Especializado aos Imigrantes e Refugiados (SAPSIR). Em parceria com o pesquisador Jean-Bernard Pocreau o projeto foi criado em 2000 e adotado como modelo em toda a rede de saúde pública da cidade canadense. Ela alerta para o fato de as crianças refugiadas serem testemunhas de situações de perda, violência, estupro e assassinato. “Elas sabem o que é fome, o que é sofrimento físico. São marcas que ficam no psiquismo e no corpo, marcas que aparecem em somatizações, nos pesadelos, na desconfiança, no sentimento de perseguição. São eventos que colocam a criança em situação de vulnerabilidade de um quadro clínico de saúde mental”, diz. Para a presidente da Federação Latino-Americana de Psiquiatria da Infância e da Adolescência (FLAPIA), Ana Cristina Mageste, uma criança refugiada é uma criança em risco, com vulnerabilidade psíquica e que precisa de um acompanhamento terapêutico.
Quantos refugiados entraram no Brasil ainda crianças e cresceram aqui? Quem são eles e o que fazem? O país não tem essas repostas. O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão interministerial presidido pelo Ministério da Justiça, também não informa quantos dos 5.208 refugiados reconhecidos que vivem em território nacional são crianças. Os dados oficiais só mostram que das 5.256 solicitações de refúgio do ano passado no Brasil, 3% são menores; desses, 34% têm entre 0 e 5.
Não zelar pela saúde mental das crianças refugiadas significa assumir o risco de desvios de conduta que podem aparecer na vida adulta. Considerar que ‘elas agora estão num lugar seguro’ não é suficiente para assegurar um desenvolvimento saudável para esses meninos e meninas. “A rede de apoio não está atenta às particularidades dos sintomas, mas o trauma se introduz no mundo interior do sujeito. O que percebi no projeto que desenvolvi no Canadá é que, quando chegam ao mundo adulto, essas crianças passam a ter transtornos de conduta como se estivessem reproduzindo o trauma vivenciado”, alerta a psicóloga Lucienne Martins Borges.
Como se não bastasse serem forçados a deixarem seus países por que a própria vida ou a vida de seus próximos estava ameaçada, os refugiados não puderam preparar a partida, não tiveram a chance de desejar e nem se projetar no futuro, não puderam se despedir ou levar consigo objetos que proporcionam segurança emocional. Além de tudo isso, quando chegam a um destino seguro precisam encarar o preconceito. A ideia equivocada de que "se saiu fugido do país é por que deve ter feito algo errado" ainda habita a mente de muitos brasileiros apesar de, no país, viverem refugiados de mais de 80 nacionalidades. Não é raro a criança refugiada ser vítima de bullying nas escolas públicas brasileiras, despreparadas para recebê-las.
Inversão de papeis
As sul-sudanesas Nyaring e Angelina falam português sem nenhum sotaque. A mãe das meninas, Wajeha, que ainda não domina o idioma, pede ajuda das filhas para algumas palavras e o pai, Omar, se expressa com muita dificuldade, optando por se comunicar em inglês quando pode. Um dos fenômenos da pós-migração, segundo Lucienne Martins Borges, que coordena uma clínica intercultural na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é a inversão de papeis entre a criança e o cuidador em função, principalmente, da facilidade que os pequenos têm em aprender um novo idioma. “As crianças se tornam adultos muito mais rápido e os pais ficam numa posição infantilizada de não conseguir entender a lógica institucional do país. Elas passam a conceber antes dos pais como as coisas acontecem”, aponta a psicóloga.
Para ela, a mudança de paradigma tem impacto direto na questão protetiva. “Os pais são aqueles que entendem e transmitem o conhecimento aos filhos e essa lógica comportamental dá segurança para criança”, reforça Lucienne.
Na impressão de um único encontro, esse não parece ser o caso de Yazdan, de 8 anos, um garoto iraniano alegre e comunicativo que está há 15 meses no Brasil e não esconde a paixão pelo futebol brasileiro. Filho do médico Wakil Tajik, que atualmente trabalha em uma oficina de costura para sustentar a família, e da iraniana Mahboubeh Khademalhoseini, 39 anos, ele aparenta aceitar com naturalidade a nova configuração de vida: menos dinheiro, menos brinquedo, menos conforto, mas a família unida. No entanto, não esconde o sonho de se tornar médico como pai.
“O governo do Irã não gosta de estrangeiros”, resume Mahboubeh para explicar o motivo que obrigou sua família a deixar o país. O marido dela, apesar de ter ido para lá ainda criança e de ter se tornado médico no país, nasceu no Afeganistão. Uma correspondência do governo proibindo que ele continuasse a trabalhar no Irã, seguida de uma batida policial na porta de sua clínica, obrigaram Wakil a fugir a pé para a Turquia sem passar em casa ou se despedir. A mãe de Yazdan conta que depois de uma semana de caminhada, ele conseguiu se comunicar com a família por telefone. Mahboubeh e Yazdan seguiram então para o novo país onde a família viveu por dois anos. Uma carta das Nações Unidas rejeitando o pedido de refúgio para os Estados Unidos alterou o projeto da família, que veio parar no Brasil. A esperança de que estão em uma situação provisória é o que move os esforços da família, que vive na expectativa de que Wakil possa exercer a medicina por aqui.
Crianças refugiadas e o desafio para o Brasil
A rede de apoio ao refugiado está centrada no adulto e poderia ser resumida em oferecer a primeira moradia, garantir as refeições, expedir a documentação para dar início à busca por emprego, oferecer cursos profissionalizantes e de português.
Para as crianças, vaga em escola pública e vacinação. O acolhimento não contempla um acompanhamento sistemático – seja ele terapêutico ou médico - que ajude a superar os traumas. Além disso, a continuidade da educação formal é vista como uma forma de zelar pelo futuro de meninos e meninas. No entanto, o que deve ser entendido é que a criança é um ser completo no presente, que precisa que suas necessidades sejam atendidas. A psicóloga Lucienne Martins Borges é enfática ao dizer que o Brasil não tem uma política de acolhimento de refugiados para o cuidado com o sofrimento mental. “Todas as políticas pensam os refugiados a partir do trabalho, da justiça, do direito da cidadania e não da assistência em saúde”, diz.
No caso das crianças, segundo a especialista, aspectos como continuidade, proteção e sensação de segurança são determinantes nas etapas do desenvolvimento. “As crianças perdem tudo isso. Em muitos casos perdem aqueles que transmitem segurança, o pai, a mãe ou ambos. E o essencial: perdem a segurança interna que é o mecanismo de defesa do ser humano para enfrentar as situações adversas. Elas ficam vulneráveis aos eventos da vida cotidiana e passam a enfrentar tudo com muita ansiedade, têm dificuldade para concentrar, se isolam, choram com frequência, dormem mal, se alimentam mal. Tudo isso define o quadro de estresse pós-traumático”, explica. Outro sintoma significativo, apontado pela pesquisadora, é o transtorno de memória. “Algumas crianças desaprendem o que haviam aprendido”, observa.
Para as crianças que deixaram países em guerras – como os sírios que chegam cada vez mais ao Brasil –, o trauma é ainda maior. Lucienne Martins Borges diz que tanto o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), popularmente conhecido como a bíblia da psiquiatria, e a Classificação Internacional de Doenças (CID), organizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) classificam a guerra entre os eventos traumáticos com mais repercussões para a saúde mental.
* Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.
Refúgio no Brasil
Entre 2010 e 2013, segundo dados consolidados pelo CONARE, as solicitações de refúgio cresceram 800% no Brasil. O salto foi de 566 em 2010 para 5.256 no ano passado. “O que a guerra na Síria tem a ver comigo?”, podem ainda pensar muitos brasileiros, mas o país do oriente médio foi o que mais teve refugiados reconhecidos no país em 2013, seguido da República Democrática do Congo, Colômbia e Paquistão.
Esperança em Minas
No Brasil existe apenas uma organização não governamental com foco nas crianças solicitantes de refúgio, refugiadas e reassentadas que se encontram em território nacional. Com sede em Uberlândia, a IKMR - Eu Conheço Meus Direitos é colaboradora pró-ativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Entre os objetivos, a ONG brasileira defende o direito de brincar, o direito à educação e o direito à cultura.
Neste segundo ano de atuação, a IKMR tem promovido atividades culturais e de lazer com crianças refugiadas que vivem em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Atualmente, trabalha para o lançamento do programa ‘Cidadãos do Mundo’ que tem como proposta atuar nas instituições brasileiras que acolhem as crianças refugiadas.
À frente da articulação institucional e políticas públicas da IKMR, Clarissa Cruz lembra que a criança refugiada tem os mesmo direitos que uma criança brasileira. Para ela, a falta de preparo dos próprios brasileiros para conviver com o estrangeiro dificulta a inserção social do refugiado. “O Brasil tem excelentes leis, porém, não tem infraestrutura suficiente para recebê-los. Essas crianças precisam de uma moradia digna, de aprender nosso idioma, de frequentar a escola, de ter seus pais trabalhando para que tenham o que comer, o que vestir, com o que brincar, precisam de assistência médica. Elas chegam ao nosso país sem absolutamente nada”, defende. Para saber mais acesse ikmr.org.br.
Na reportagem de amanhã da série 'Crianças refugiadas: o desafio do recomeço', você vai saber mais sobre a história do garoto iraniano, Yazdan, e das irmãs sul-sudanesas Nyaring e Angelina. Qual o papel da escola para facilitar a adaptações dessas crianças que foram obrigadas a deixar seu país e recomeçar em outro lugar?
São essas histórias de superação e busca por uma condição de vida melhor que a série de reportagens ‘Crianças refugiadas: o desafio do recomeço’ vai contar. O Saúde Plena conversou com membros de quatro famílias que relataram como estão tentando reconstruir a vida no Brasil. Você vai conhecer Ester, angolana, 4 anos, que insiste em voltar ao país de origem para encontrar o pai; Yazdan, um garoto iraniano de 8 anos apaixonado por futebol, filho de um médico afegão que sonha em exercer a profissão no programa Mais Médicos; Abbuh*, 6 anos, que fugiu do Paquistão sob ameaça terrorista do Taliban e saber mais sobre a adaptação de Nyaring e Angelina, atualmente bolsistas de um tradicional colégio católico na capital paulista. Refugiados são aqueles que são perseguidos em sua pátria e podem morrer se não deixarem sua nação. Ao receberem refúgio em um país, passam a ter garantidos os mesmos direitos que um cidadão naturalizado.
No final da tarde de um domingo, Rosina, 40 anos, saiu de casa para ir à igreja acompanhada de sua filha mais nova, Delfina, 1 ano. Elas nunca mais voltaram ao endereço da família. O sumiço fez com que o pai, preocupado com a vida de Ester e dos outros dois filhos, Francisco Efraim, 6 anos, e Daniel Amado, 2, retirasse as crianças da residência da família e as levasse para a casa de uma prima. Passaram-se três meses até o reencontro de mãe e filhos em uma igreja católica de Luanda e a partida para o Brasil em 5 de fevereiro deste ano. Nenhuma das crianças teve tempo de pegar o brinquedo favorito para colocar na bagagem ou separar as fotos dos bons momentos em família, não puderam sequer se despedir do pai. Na mala, quatro peças de roupa para cada um. “Estava tudo certo para que viéssemos todos”, afirma Rosina, sequestrada por quatro homens e ameaçada de morte após pregar a igualdade na igreja que frequentava.
Instalados em um abrigo que acolhe refugiados em São Paulo, a angolana não tem resposta para todas as perguntas que são feitas a ela desde que chegou ao país. A mãe de Ester não consegue sequer entender a razão de ter sido salva, junto com sua filha mais nova, por um de seus próprios sequestradores. “A gente estava em um sítio. Um padre chegou ao local junto com um dos homens que me levou para lá e nos tiraram do lugar. Fomos para uma igreja. Já estava tudo organizado para virmos ao Brasil”, relata. Rosina também não explica por que o marido não veio e se limita a dizer que o pai de seus quatro filhos sabe que a família está em São Paulo. O que ela conta também não é suficiente para aquietar o coração da pequena Ester que insiste em retornar a Angola para ver o pai. A cada tentativa da menina em encontrar uma justificativa para a mudança brusca de vida, a mãe interpela: “Se a gente voltar, vão me matar e vocês vão me perder”.
A adaptação à vida no novo país é permeada por desafios práticos como moradia, renda e escola, mas são nos aspectos emocional e mental que se encontram talvez as maiores dificuldades de superação, destacadamente para as crianças. A rede de apoio ao refugiado no país não tem estrutura para uma intervenção preventiva. Qual é o estado de saúde mental de uma criança refugiada quando chega ao Brasil? Como essa criança vivencia a situação? O que é possível fazer para diminuir a dor que elas estão sentindo? Perguntas que precisariam de respostas se perdem no caminho da burocracia. Assistente social da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, Aline Tuller afirma que as intervenções terapêuticas ou médicas para avaliar a saúde emocional e psíquica dessas crianças só são feitas quando solicitadas às instituições que atendem os refugiados. “Geralmente a demanda chega para nós quando a família não deu conta”, explica.
Esse é o caso Abbuh, 6 anos. Há cerca de dois meses no Brasil, o garoto apresenta sinais de depressão. Ele, sua mãe Aisha*, 45 anos, e o pai Atif* fugiram do Paquistão ameaçados de morte pelo grupo terrorista Taliban. Para conseguir o dinheiro e partir, a família precisou se desfazer de tudo que tinha: joias, mobília, roupas e até brinquedos. Desde que chegaram, o garoto começou a fazer xixi na cama e tem demonstrado um comportamento agressivo. A família solicitou ajuda à assistente social do abrigo onde vivem para conseguir um acompanhamento médico.
Escassez de emprego e baixos salários no Paquistão levaram o pai de Abbuh a trabalhar no Afeganistão para o exército dos Estados Unidos. Aisha diz que o marido era coordenador de equipamentos na base militar dos EUA quando sofreu sua primeira ameaça. “Atif saiu da base dirigindo um carro que parou por problemas mecânicos em uma estrada no Afeganistão. Ele pediu para que a pessoa que estava com ele voltasse para relatar o problema. Durante a espera, apareceram dois homens em duas motos, com pistolas, para sequestrá-lo. Só que eles tinham um sinal de comunicação para situações de perigo: levantar o casaco. Um helicóptero da ronda americana avistou o gesto e os sequestradores fugiram”, conta a paquistanesa.
Desde o episódio, a família passou a viver sob medo constante e, na tentativa de proteger a vida do filho, Abbuh passou a ser escondido em casa e saía muito pouco. Atif contou que a esposa e o filho foram sequestrados e torturados. Aisha se incomoda em tocar no assunto e explica que usa a palavra incidente para resumir todo o trauma que marca a história de sua família.
A psicóloga e pesquisadora Lucienne Martins Borges desenvolveu em Quebec, Canadá, o Serviço de Atendimento Psicológico Especializado aos Imigrantes e Refugiados (SAPSIR). Em parceria com o pesquisador Jean-Bernard Pocreau o projeto foi criado em 2000 e adotado como modelo em toda a rede de saúde pública da cidade canadense. Ela alerta para o fato de as crianças refugiadas serem testemunhas de situações de perda, violência, estupro e assassinato. “Elas sabem o que é fome, o que é sofrimento físico. São marcas que ficam no psiquismo e no corpo, marcas que aparecem em somatizações, nos pesadelos, na desconfiança, no sentimento de perseguição. São eventos que colocam a criança em situação de vulnerabilidade de um quadro clínico de saúde mental”, diz. Para a presidente da Federação Latino-Americana de Psiquiatria da Infância e da Adolescência (FLAPIA), Ana Cristina Mageste, uma criança refugiada é uma criança em risco, com vulnerabilidade psíquica e que precisa de um acompanhamento terapêutico.
Quantos refugiados entraram no Brasil ainda crianças e cresceram aqui? Quem são eles e o que fazem? O país não tem essas repostas. O Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão interministerial presidido pelo Ministério da Justiça, também não informa quantos dos 5.208 refugiados reconhecidos que vivem em território nacional são crianças. Os dados oficiais só mostram que das 5.256 solicitações de refúgio do ano passado no Brasil, 3% são menores; desses, 34% têm entre 0 e 5.
Não zelar pela saúde mental das crianças refugiadas significa assumir o risco de desvios de conduta que podem aparecer na vida adulta. Considerar que ‘elas agora estão num lugar seguro’ não é suficiente para assegurar um desenvolvimento saudável para esses meninos e meninas. “A rede de apoio não está atenta às particularidades dos sintomas, mas o trauma se introduz no mundo interior do sujeito. O que percebi no projeto que desenvolvi no Canadá é que, quando chegam ao mundo adulto, essas crianças passam a ter transtornos de conduta como se estivessem reproduzindo o trauma vivenciado”, alerta a psicóloga Lucienne Martins Borges.
Como se não bastasse serem forçados a deixarem seus países por que a própria vida ou a vida de seus próximos estava ameaçada, os refugiados não puderam preparar a partida, não tiveram a chance de desejar e nem se projetar no futuro, não puderam se despedir ou levar consigo objetos que proporcionam segurança emocional. Além de tudo isso, quando chegam a um destino seguro precisam encarar o preconceito. A ideia equivocada de que "se saiu fugido do país é por que deve ter feito algo errado" ainda habita a mente de muitos brasileiros apesar de, no país, viverem refugiados de mais de 80 nacionalidades. Não é raro a criança refugiada ser vítima de bullying nas escolas públicas brasileiras, despreparadas para recebê-las.
Inversão de papeis
As sul-sudanesas Nyaring e Angelina falam português sem nenhum sotaque. A mãe das meninas, Wajeha, que ainda não domina o idioma, pede ajuda das filhas para algumas palavras e o pai, Omar, se expressa com muita dificuldade, optando por se comunicar em inglês quando pode. Um dos fenômenos da pós-migração, segundo Lucienne Martins Borges, que coordena uma clínica intercultural na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), é a inversão de papeis entre a criança e o cuidador em função, principalmente, da facilidade que os pequenos têm em aprender um novo idioma. “As crianças se tornam adultos muito mais rápido e os pais ficam numa posição infantilizada de não conseguir entender a lógica institucional do país. Elas passam a conceber antes dos pais como as coisas acontecem”, aponta a psicóloga.
Para ela, a mudança de paradigma tem impacto direto na questão protetiva. “Os pais são aqueles que entendem e transmitem o conhecimento aos filhos e essa lógica comportamental dá segurança para criança”, reforça Lucienne.
Na impressão de um único encontro, esse não parece ser o caso de Yazdan, de 8 anos, um garoto iraniano alegre e comunicativo que está há 15 meses no Brasil e não esconde a paixão pelo futebol brasileiro. Filho do médico Wakil Tajik, que atualmente trabalha em uma oficina de costura para sustentar a família, e da iraniana Mahboubeh Khademalhoseini, 39 anos, ele aparenta aceitar com naturalidade a nova configuração de vida: menos dinheiro, menos brinquedo, menos conforto, mas a família unida. No entanto, não esconde o sonho de se tornar médico como pai.
“O governo do Irã não gosta de estrangeiros”, resume Mahboubeh para explicar o motivo que obrigou sua família a deixar o país. O marido dela, apesar de ter ido para lá ainda criança e de ter se tornado médico no país, nasceu no Afeganistão. Uma correspondência do governo proibindo que ele continuasse a trabalhar no Irã, seguida de uma batida policial na porta de sua clínica, obrigaram Wakil a fugir a pé para a Turquia sem passar em casa ou se despedir. A mãe de Yazdan conta que depois de uma semana de caminhada, ele conseguiu se comunicar com a família por telefone. Mahboubeh e Yazdan seguiram então para o novo país onde a família viveu por dois anos. Uma carta das Nações Unidas rejeitando o pedido de refúgio para os Estados Unidos alterou o projeto da família, que veio parar no Brasil. A esperança de que estão em uma situação provisória é o que move os esforços da família, que vive na expectativa de que Wakil possa exercer a medicina por aqui.
Crianças refugiadas e o desafio para o Brasil
A rede de apoio ao refugiado está centrada no adulto e poderia ser resumida em oferecer a primeira moradia, garantir as refeições, expedir a documentação para dar início à busca por emprego, oferecer cursos profissionalizantes e de português.
Para as crianças, vaga em escola pública e vacinação. O acolhimento não contempla um acompanhamento sistemático – seja ele terapêutico ou médico - que ajude a superar os traumas. Além disso, a continuidade da educação formal é vista como uma forma de zelar pelo futuro de meninos e meninas. No entanto, o que deve ser entendido é que a criança é um ser completo no presente, que precisa que suas necessidades sejam atendidas. A psicóloga Lucienne Martins Borges é enfática ao dizer que o Brasil não tem uma política de acolhimento de refugiados para o cuidado com o sofrimento mental. “Todas as políticas pensam os refugiados a partir do trabalho, da justiça, do direito da cidadania e não da assistência em saúde”, diz.
No caso das crianças, segundo a especialista, aspectos como continuidade, proteção e sensação de segurança são determinantes nas etapas do desenvolvimento. “As crianças perdem tudo isso. Em muitos casos perdem aqueles que transmitem segurança, o pai, a mãe ou ambos. E o essencial: perdem a segurança interna que é o mecanismo de defesa do ser humano para enfrentar as situações adversas. Elas ficam vulneráveis aos eventos da vida cotidiana e passam a enfrentar tudo com muita ansiedade, têm dificuldade para concentrar, se isolam, choram com frequência, dormem mal, se alimentam mal. Tudo isso define o quadro de estresse pós-traumático”, explica. Outro sintoma significativo, apontado pela pesquisadora, é o transtorno de memória. “Algumas crianças desaprendem o que haviam aprendido”, observa.
Para as crianças que deixaram países em guerras – como os sírios que chegam cada vez mais ao Brasil –, o trauma é ainda maior. Lucienne Martins Borges diz que tanto o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), popularmente conhecido como a bíblia da psiquiatria, e a Classificação Internacional de Doenças (CID), organizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) classificam a guerra entre os eventos traumáticos com mais repercussões para a saúde mental.
* Os nomes foram trocados a pedido dos entrevistados.
Refúgio no Brasil
Entre 2010 e 2013, segundo dados consolidados pelo CONARE, as solicitações de refúgio cresceram 800% no Brasil. O salto foi de 566 em 2010 para 5.256 no ano passado. “O que a guerra na Síria tem a ver comigo?”, podem ainda pensar muitos brasileiros, mas o país do oriente médio foi o que mais teve refugiados reconhecidos no país em 2013, seguido da República Democrática do Congo, Colômbia e Paquistão.
Esperança em Minas
No Brasil existe apenas uma organização não governamental com foco nas crianças solicitantes de refúgio, refugiadas e reassentadas que se encontram em território nacional. Com sede em Uberlândia, a IKMR - Eu Conheço Meus Direitos é colaboradora pró-ativa do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Entre os objetivos, a ONG brasileira defende o direito de brincar, o direito à educação e o direito à cultura.
Neste segundo ano de atuação, a IKMR tem promovido atividades culturais e de lazer com crianças refugiadas que vivem em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Atualmente, trabalha para o lançamento do programa ‘Cidadãos do Mundo’ que tem como proposta atuar nas instituições brasileiras que acolhem as crianças refugiadas.
À frente da articulação institucional e políticas públicas da IKMR, Clarissa Cruz lembra que a criança refugiada tem os mesmo direitos que uma criança brasileira. Para ela, a falta de preparo dos próprios brasileiros para conviver com o estrangeiro dificulta a inserção social do refugiado. “O Brasil tem excelentes leis, porém, não tem infraestrutura suficiente para recebê-los. Essas crianças precisam de uma moradia digna, de aprender nosso idioma, de frequentar a escola, de ter seus pais trabalhando para que tenham o que comer, o que vestir, com o que brincar, precisam de assistência médica. Elas chegam ao nosso país sem absolutamente nada”, defende. Para saber mais acesse ikmr.org.br.
Na reportagem de amanhã da série 'Crianças refugiadas: o desafio do recomeço', você vai saber mais sobre a história do garoto iraniano, Yazdan, e das irmãs sul-sudanesas Nyaring e Angelina. Qual o papel da escola para facilitar a adaptações dessas crianças que foram obrigadas a deixar seu país e recomeçar em outro lugar?