Saúde

Tecnologia em excesso afeta a saúde física e mental das crianças

As que passam mais de quatro horas conectadas diariamente são as que mais correm riscos, que vão desde problemas sociais, passando por depressão, ansiedade e baixa autoestima

Rafael Campos - Encontro BH

As mãos pequenas das crianças podem catar as letras miúdas das telas touchscreen de forma bem mais ágil que os dedos maiores dos adultos. Nascidos no período em que a internet é tão comum quanto a televisão — até mais, no universo de alguns deles —, os pequenos se assustam quanto algo não pode ser acionado apenas com o indicador e dão baile nos pais quando estes sofrem para conseguir encontrar alguma funcionalidade naquele aparelho de última geração. Eles usam Whatsapp para conversar com as mães, postam selfies no Instagram e a grande maioria está no Facebook — mesmo sendo, teoricamente, proibido para menores de 13 anos.


Vetar o uso é praticamente impossível. Afinal, até mesmo os pais estão aficionados pelo que tablets e smartphones são capazes de fazer. Porém, entre as vantagens e as possibilidades do meio virtual e de seus acessórios, há revezes que começam a ser contabilizados. Relatório divulgado no último dia 16 pela Public Health England, agência responsável por definir os parâmetros do sistema de saúde público britânico, apontou que crianças que passam muito tempo na internet estão desenvolvendo problemas de saúde mental.

Erika Garcia, com os filhos Joaquim e Nina: "O tablet é um apoio às vezes, mas temos de determinar quando podem usar"
De acordo com matéria publicada pelo site do jornal inglês The Telegraph, o relatório garante que aquelas que passam mais de quatro horas conectadas diariamente são as que mais correm riscos, que vão desde problemas sociais, passando por depressão, ansiedade e baixa autoestima. Os dados foram considerados alarmantes e reforçam o temor de pais e educadores quanto à dificuldade em fazer com que as crianças consigam se desligar desses aparelhos. “Não podemos privá-los desse contato porque essa é a realidade. Mas temos de criar regras para que isso não se torne um problema”, garante o analista de sistemas Claudeci Espeçamilha, 43 anos. Ele é pai de Vinícius, 7 anos. Com a mulher, a agente de viagens Carolina Hirata, 35 anos, Claudeci decidiu estabelecer regras quando percebeu que a rotina de estudos do filho já estava prejudicada. Agora, Vinícius só pode ligar o tablet quando ele termina as obrigações. “Esse é um problema pelo qual todas as mães passam atualmente. Sou mais liberal, mas quando senti que estava excedendo o limite, tive mais controle”, completa Carolina.

Esse é o caminho trilhado por muitas famílias. Elas concordam com a necessidade de que os filhos não cresçam à margem desse univerno, mas sabem que a tecnologia não pode ser a única fonte de diversão das crianças. Cinara Barbosa, professora de 40 anos, é mãe de Marina, 10 anos, e Davi, 6. Mesmo permitindo que eles façam uso de tablets e celulares, ela monitora tudo o que eles veem. “Com minha filha, é bem fácil. Já com o Davi tenho mais dificuldades, principalmente em relação aos jogos”, afirma. A professora diz não concordar com radicalismos, como cortar totalmente o uso. Apesar disso, não enxerga a tecnologia como simples brinquedo. “É preciso que a gente observe os filhos que tem. Se você tem um que adora esses aparelhos, use mais com ele, mas explique que não é saudável viver imerso nessa realidade. Tanto que os meus praticam atividade física, fazem leitura, brincam. Tudo em excesso é prejudicial.”

A pesquisa Digital Diares é realizada desde 2010, pela AVG Technologies, com mães de todo o mundo. Os últimos resultados, divulgados neste ano, mostraram que, na faixa etária entre 3 e 5 anos, 66% das crianças conseguem operar jogos de computador e 47% delas sabem usar um smartphone. Em contrapartida, somente 14% são capazes de amarrar os cadarços e só 23% sabem nadar.

Carolina e Claudeci limitaram o uso do tablet depois de verem que estava atrapalhando os estudos de Vinícius
Entre os entrevistados no Brasil, a pesquisa demonstrou que 97% das crianças entre 6 e 9 anos usam a internet. “Outro dado que chama a atenção no país é o uso do Facebook. Apesar da restrição de 13 anos, 54% das crianças têm perfil na rede social”, alerta Mariano Sumrell, diretor de Marketing da AVG Brasil. Como consequência direta desse uso desenfreado, 27% das crianças entre 6 e 9 anos já sofreram com o cyberbullying. “Os pais precisam estar mais atentos aos perigos. O conselho de que não se deve conversar com estranhos na rua deve ser seguido mais ainda na internet. A criança não sabe quem está do outro lado”, completa Mariano.

Em artigo publicado pelo site americano Huffington Post, a terapeuta ocupacional pediátrica Cris Rowan listou, depois de várias pesquisas, 10 razões que justificariam a proibição de aparelhos móveis para crianças de até 12 anos. Entre os motivos, que vão do atraso no desenvolvimento até a doença mental, alertado também pelo Public Health England, Rowan explica que a tecnologia tem causado mudanças significativas na capacidade de as crianças prestarem atenção. De acordo com a especialista, existem quatro fatores que melhoram o desenvolvimento dos pequenos: movimento, toque, conexão e natureza. “A tecnologia priva a criança do envolvimento com esses fatores. E, em algumas delas, isso tem retardado o desenvolvimento cerebral e físico.”

Segundo Rowan, antes dos smartphones, as crianças já usavam as tecnologias quatro a cinco vezes mais que o recomendado pelos pediatras. “Pesquisas estimam que esses modelos de celulares levaram a um aumento de 30%. É óbvio que pais e professores não estão interessados em seguir as orientações de especialistas pediátricos. O que mais fazer a não ser pressionar por uma proibição?” Entretanto, várias escolas já têm percebido que o uso das tecnologias para melhorar o ensino não é o mesmo que permitir aos seus alunos ficarem conectados o tempo inteiro em seus tablets e smartphones.

A diretora pedagógica do colégio Seriös, Andrea Bichara, garante: a melhor decisão ainda é restringir o uso. “Do sexto ao nono ano, fizemos uma experiência em 2014: eles puderam acessar nos intervalos e no horário de almoço. Foi desastrosa. Ninguém conversava com mais ninguém. Havia um isolamento que contrariava o que a escola acreditava, que são as relações interpessoais.” Agora, os alunos podem usar seus aparelhos durante 15 minutos após o almoço e mesmo essa decisão está sendo repensada. “Eles deixam de interagir entre si para focar em uma tela. Acabam crescendo sem conseguir desenvolver a capacidade de lidar com o outro. Isso dificulta a capacidade de trabalhar os conflitos. Com o celular, basta desligá-lo”, avalia Andrea.

Apesar de ter consciência que esse cenário compõe o retrato de uma geração, Andrea acredita ser papel da escola traçar estratégias para garantir uma interação real entre os alunos. “Eles precisam aprender a gerenciar os problemas, pedir desculpas.” Na escola, a tecnologia é trabalhada como recurso didático. Lousas touchscreen conectadas à internet, aulas de robótica e laboratório de informática são ferramentas usadas para pesquisa, dando aos alunos acesso a softwares que facilitam a compreensão do conteúdo.

Uso da internet por crianças no Brasil

Entre 6 e 9 anos:

62% participam do mundo digital (Ex: Club Penguin, Webkinz etc.)
54% estão no Facebook, mesmo que a idade mínima seja de 13 anos
15% se comunicam por meio de mensagens instantâneas
21% usam e-mail


Entre 3 e 5 anos:

76% sabem ligar um computador ou tablet
73% jogam on-line
42% sabem abrir um navegador
42% sabem usar um smartphone
43% conseguem escrever o próprio nome
31% sabem o endereço de casa
15% sabem nadar

Fonte: Digital Diaries — AVG Technologies


A busca do equilíbrio
O fato é que muitos pais, mesmo os mais rígidos, não imaginavam o quão complicado seria estabelecer limites para o acesso à tecnologia. “Achei que meus filhos poderiam ter uma infância como a que tive. Mas acho que as crianças trocaram o contato pelo tablet”, afirma Erika Garcia, 35 anos, que, atualmente, dedica o tempo para cuidar dos filhos Nina, 6 anos, e Joaquim, 2. Ela considera correta a decisão de as escolas trabalharem com os pais na tentativa de estalebecer limites às crianças. “Confesso que o tablet é um apoio em certos momentos, como, por exemplo, quando vou fazer o almoço deles. Mas é preciso mostrar que somos nós, adultos, que temos autoridade para determinar quando eles vão usá-lo. Porém, ainda busco o ponto de equilíbrio”, explica Erika. Ela surpreendeu Nina quando a menina perguntou como era o iPad da época da mãe e teve como resposta que não existia.

O neuropediatra Christian Müller, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), também é partidário do controle. Ele alerta que já existem riscos físicos e comportamentais comprovados devido ao uso excessivo de tablets e smartphones por crianças. “Dores de cabeça, alterações posturais, prejuízos na visão, tudo isso já foi pesquisado. Sem falar no prejuízo na hora de dormir, já que a luz emitida por eles altera a liberação da melatonina, hormônio que regula o sono e que só é liberado no escuro.”

Müller não é a favor de que eles sejam banidos, mas garante que o uso indiscriminado tem trazido muito mais problemas do que benefícios, e isso precisa ser reavaliado. Entre aqueles que adotam os gadgets como babás eletrônicas, vai o alerta: “Um tablet ou um smartphone jamais vai excluir a necessidade de os pais exercerem as suas funções”.

A psicóloga Sandra Férrer vai além. Para ela, as tecnologias atuais não podem ser consideradas vilãs isoladas. “Basta lembrar de como eram feitos os alertas em relação a crianças que assistiam à televisão demais. Como podemos proibir nossos filhos de usarem se estamos usando toda hora?”, questiona.

Muito mais do que olhar para os filhos usando os equipamentos, os pais precisam, no entendimento de Sandra, mirar a relação que estabelecem com suas crianças. “Mesmo sabendo que a criança de hoje é diferente da que fomos, o que questiono é a convivência entre pais e filhos. Será que os pais não entendem o relacionamento dos filhos com a tecnologia ou não compreendem a tecnologia? O que vai importar, sempre, é a qualidade da presença que está sendo oferecida a essas crianças.” Seja com tablet ou não.

"Dores de cabeça, alterações posturais, prejuízos na visão, tudo isso já foi pesquisado. Sem falar no prejuízo na hora de dormir, já que a luz emitida por eles altera a liberação da melatonina, hormônio que regula o sono e que só é liberado no escuro. - Christian Müller, neuropediatra, membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)