Estima-se que apenas 10% dos casos de estupro e tentativas de estupro no Brasil sejam registrados. Em 2012, foram 50 mil ocorrências, que podem ser a ponta de um iceberg composto por mais de 500 mil casos/ano de agressão sexual ou tentativa de agressão.
Considerando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), o cenário torna-se mais detalhado:
-70% das vítimas têm até 17 anos,
-50,7% eram crianças de até 13 anos,
-88,5% são do sexo feminino,
-51% são da cor parda ou negra,
-46% não possuem ensino fundamental,
-em 24,1% dos casos, o agressor é o pai ou padrasto;
-em 32,2% é um amigo ou conhecido da família e da vítima.
Desde 2011, um grupo de mulheres – ativistas de movimentos específicos ou não – protesta contra o argumento de que essa violência seria de responsabilidade das vítimas. Seria fruto de seus hábitos, roupas e atitudes provocantes. A 4ª Marcha da Vadias será realizada em Belo Horizonte neste sábado (24), a partir das 13h.
Ainda hoje, as articuladoras do movimento recebem ameaças – anônimas ou não – por telefone e pela internet. Na quarta edição com o mesmo nome, o termo vadia é alvo de interpretações diversas daquelas apresentadas na manifestação. Questões raciais e vinculadas aos grupos LGBT também crescem dentro de uma manifestação que não pretende falar pelas mulheres, mas sim abrir um espaço para que elas sejam ouvidas.
O testemunho de seis mulheres que trouxeram as reivindicações da Marcha das Vadias para a lista de prioridades de suas vidas - ao mesmo tempo em que são profissionais, mães, estudantes, filhas, companheiras - estreia uma nova seção: Uma história em depoimentos. Aqui, o Saúde Plena apresenta o sentido de grandes reivindicações referentes à saúde, ao bem-estar e ao comportamento, sob a ótica de seus participantes ativos.
Cynthia Semíramis, pesquisadora/estudante de doutorado na Faculdade de Direito da UFMG
Participo desde a primeira Marcha, em 2011. Já fazia parte do movimento feminista e a Slut Walk canadense foi a faísca para protestar contra uma situação que é velha conhecida das mulheres. A identificação foi imediata. Daí pra nos organizarmos e irmos pra rua foi um caminho natural.
Sentido atual
O foco continua sendo a liberdade das mulheres e o direito a uma vida sem violência. Essa é uma questão fundamental para o movimento feminista. Outras causas são derivadas dessa, como o combate ao racismo (pois o discurso racista discrimina mulheres negras de forma mais intensa que mulheres brancas), à homofobia (especialmente dando visibilidade à lesbofobia), a transfobia, bem como a luta pelo respeito e a regulamentação da prostituição.
Radicalismo e ‘vadias’
O radicalismo da Marcha das Vadias está em considerar mulheres como seres humanos, em igualdade de condições e oportunidades com os homens. Por incrível que pareça, essa premissa feminista ainda é considerada radical para muitas pessoas. Quando uma mulher 'desobedece' a uma norma da sociedade, ela é chamada de vadia. Isso não deveria ser um insulto, mas o resultado do exercício de liberdade feminina, que precisa ser ressignificado para perder seu caráter pejorativo.
Vadia é a mulher que é livre para escolher o que fazer com seu corpo e sua vida. É a mulher que não se submete à pressão da sociedade quando ela considera que isso irá restringir sua vida ou prejudicá-la.
A perspectiva conservadora é de que vadia é um termo que é usado para punir, humilhar e associar a mulher a uma vida sexual considerada inadequada. Nossa crítica a esse termo aparece de várias formas - pode ser tanto formal (expondo a discriminação sexual que é imposta apenas às mulheres, ou demonstrando que o peso da palavra é maior para mulheres negras), como pode ser feita de forma debochada, ressignificando o termo (sou vadia, sim. E daí? Isso não é motivo pra me discriminar).
Em ambos os casos, o resultado é uma problematização que contribui para lembrar às pessoas que mulheres têm o direito de escolher o que desejam para suas vidas e não devem ser rotuladas por isso. Quem discorda do uso do termo 'vadia' no contexto da marcha não é necessariamente conservador. O conservador é quem acha que mulher não pode ter vida sexual, ou que qualquer coisa que ela faça deve ser criticado através de preconceitos relacionados à sexualidade. Pode ser simplesmente mal informado.
Homens, etnias, questões LGBT
As Marchas adquirem as cores locais. Há algumas manifestações que não têm homens na organização, outras os aceitam. Em Belo Horizonte, optamos por fazer um diálogo com homens também, e eles são bem-vindos à manifestação. Afinal, para mudar a situação das mulheres é importante também modificar as ações dos homens para que eles compreendam que rotular pessoas através de estereótipos relacionados à vida sexual prejudica a vida das mulheres e restringe qualquer possibilidade de igualdade de gênero.
Da mesma forma, há preocupação com questões raciais e LGBT, mas variam de cidade para cidade. A forma como elas se manifestam na Marcha em si varia bastante, e não é uma questão só da organização, mas principalmente dos grupos e coletivos que optam por se manifestar e realizar performances ao longo da manifestação.
Cada cidade acaba tendo, portanto, uma Marcha diferente, que reflete as discussões dos movimentos locais. Aqui em Belo Horizonte sempre houve parceria com a Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig). Consideramos que não há como dar novo sentido ao termo vadia sem considerar também as violências que as prostitutas sofrem por não terem a profissão regulamentada nem direitos reconhecidos. São duas faces da mesma moeda. A moeda da liberdade sexual.
Nathalia Duarte, cientista social
Comecei a participar da construção da marcha em 2013, por acreditar muito no potencial do movimento. Acho que o foco da marcha sempre foi e continua sendo um só: a autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos, sobre sua sexualidade e sua vida.
Dentro deste grande tema, há sim uma pluralidade de perspectivas e de formas e isso, na minha opinião, é muito positivo. A Marcha de Belo Horizonte amadureceu sim, não por ter um foco único, mas justamente por incorporar discussões que antes não eram muito fortes dentro da manifestação. O racismo, a lesbofobia e aspectos relativos à prostituição são bons exemplos disso.
Sentido hoje e radicalismo
Para mim, a importância é a de disseminar discussões que geralmente são feitas apenas pelas feministas. É um momento em que a grande mídia se volta para nós e divulga nossas reivindicações. Isso é muito valioso. Vejo que a Marcha consegue a cada ano mais adeptos. Mas o principal sentido continua sendo o de lutar por autonomia, liberdade e respeito, independentemente de quem somos, que roupas usamos, onde estamos.
Há espaços e eventos feministas bem mais radicais que a marcha, mas acredito que é da natureza do feminismo ser radical. Não há como ser feminista sem ser radical, na medida em que o machismo está na base de tudo, e romper com ele é, de certa forma, romper com tudo. Mas é óbvio que temos que dialogar e acho que a Marcha das Vadias é justamente esse espaço de diálogo.
É radical e dialógico ao mesmo tempo, pois não há avanço sem diálogo, mas também não há avanço sem radicalidade. Se perdermos a radicalidade, somos mais uma vez engolidas pelo machismo.
Homens
Existem espaços feministas que precisam ser exclusivos para as mulheres, por uma questão de empoderamento e de protagonismo na luta, que é nossa e não dos homens. Mas momentos como a Marcha das Vadias são aqueles nos quais todo apoio é bem-vindo. Os homens pró-feministas que quiserem somar à nossa luta, podem e devem se juntar a nós.
É importante, no entanto, que eles compreendam que são apoiadores e que o protagonismo é nosso (afinal de contas, eles já são protagonistas em 99% dos espaços). Isso sendo respeitado, a presença deles é sim um fator positivo, afinal de contas, a sociedade não muda se os homens não mudarem.
Vadias
Vadia tem o sentido de mulher livre. Vadia pra nós tem mais ou menos o mesmo significado que para o resto da sociedade. O que muda é que consideramos positivo; e não negativo. Se exercer nossa sexualidade do jeito que quisermos, se usar a roupa que quisermos, se fazer o que quisermos com nosso corpo é ser vadia, então somos todas vadias e com muito orgulho.
As críticas ao termo estão aí, e não acho que quem critica é conservador necessariamente. Tudo depende de como a crítica é feita. Há críticas feministas à Marcha das Vadias que são muito válidas. A empreitada de ressignificar um termo é mesmo complicada, pois é uma palavra muito negativa para a maioria. Nesse percurso corremos sim alguns riscos, mas eu pessoalmente acredito muito nesta luta. Acho que quando reivindicamos a posição de sujeitos, de donas de nós mesmas, estamos indo justamente no caminho contrário da objetificação.
Minas Gerais
Em 2014, as discussões sobre questões raciais e LGBT estiveram bem mais presentes na construção da Marcha e esse amadurecimento tem sido muito importante para o movimento. Essas questões se incluem na medida em que mais mulheres negras e lésbicas integram-se à articulação. Há ainda um processo particular em Belo Horizonte que se relaciona com os movimentos de ocupação das ruas e de luta pelo direito à cidade. Movimentos como a Praia da Estação, o Tarifa Zero, o Espaço Comum Luiz Estrela, o Fica Ficus e o próprio carnaval de rua vêm colocando em pauta a questão da mobilidade, do acesso à cidade, da ocupação do espaço público, com a construção do comum.
Essa discussão tem tudo a ver com a Marcha das Vadias, porque estamos lutando pelo direito de ir e vir, de colocar nossos corpos na cidade do jeito que quisermos, de andarmos em qualquer lugar a qualquer hora sem sofrer assédio ou agressão. O espaço público e o transporte coletivo não são pensados para as mulheres, e o assédio se constitui, portanto, como mais uma catraca que precisamos enfrentar durante o deslocamento de cada dia.
Além disso, todos esses movimentos têm criado em BH uma cultura de ir pra rua e isso faz com que cada vez mais pessoas se disponham a sair de suas casas para marchar por uma causa em que acreditam.
Daniela Vaz, professora do Departamento de Fisioterapia da UFMG, filiada à rede feminista de saúde
A Marcha é democrática, não tem líderes ou organização central. A cada ano ela se autoorganiza, pela iniciativa de quem tiver disponibilidade. Dessa forma ela mantém o espírito original, com pautas também democráticas e plurais. O sentido não mudou, a manifestação tem ainda como papel principal chamar a atenção para a barbárie das opressões e violências motivadas por gênero.
Igualdade
A marcha é provavelmente vista como um movimento radical por muitos. O feminismo já foi definido como a ideia radical de que mulheres são gente. É um mundo muito doente esse em que o conceito de igualdade entre homens e mulheres e de que mulheres não podem ser culpabilizadas pela violência sejam vistas como radicais.
Por isso mesmo, os homens são bem-vindos à Marcha. Igualdade e fim da opressão devem ser lutas de todos para o beneficio de todos. Todos são bem vindos, independentemente de gênero.
Vadia, e daí?
Uma das propostas da marcha é ressignificar o termo vadia, normalmente usado para desqualificar a mulher quando ela diz sim e também quando ela diz não a um homem. Esse é, portanto, um xingamento machista, que pretende desvalorizar a mulher que exerce sua liberdade, com o objetivo de cercear essa mesma liberdade. A marcha quer denunciar esse machismo e empoderar mulheres: se ser vadia é ser livre, somos sim vadias, assumimos abertamente essa liberdade e não abrimos mão dela. Não nos intimidaremos com investidas de quem quer nos constranger.
Mas...
A discussão sobre o uso desse termo é importante. Privilégio não é uma coisa unidimensional, mas resulta da interação de muitos fatores como classe social, raça e etnia, gênero e orientação sexual, por exemplo. Uma das críticas mais importantes ao movimento é a de que a ressignificação do termo só pode ser proposta e praticada por mulheres que ocupam uma posição relativamente privilegiada, que vivem em um ambiente relativamente seguro - onde se vestir conforme o estereótipo e se intitular vadia não causará consequências drásticas.
Isso acontece porque a violência contra a mulher branca, hétero e rica é vista como mais ultrajante do que aquela contra a mulher negra, lésbica ou bi, e pobre. O peso do termo vadia não é o mesmo para todas as mulheres, e a expressão "somos todas vadias" pode mascarar essas diferenças. Eu acho que a marcha precisa ser um espaço de escuta. Ela já serviu para acordar muitas consciências e empoderar muitas mulheres. Se a escuta indicar que devemos abandonar o nome para que o movimento se torne mais inclusivo, eu, pessoalmente não tenho nenhum apego à nomenclatura.
Várias mulheres que participaram da organização da marcha são provenientes de coletivos do movimento negro e LGBT. Essas questões são centrais no movimento uma vez que essas mulheres são as maiores vítimas de violência simbólica e física.
Ameaças
A raiz das ameaças que algumas articulistas do movimento recebem é a mesma que sustenta o número assustador de cerca de 50 mil mulheres estupradas por ano - a cultura da opressão de gênero. Estamos gritando pra todo mundo ouvir que somos livres. Liberdade incomoda quem oprime. Essa reação é o que chamamos de backlash, um antagonismo à articulação e ao crescimento do feminismo.
Há quem esteja pessimista devido a essa onda reativa conservadora. Eu sou otimista. Enquanto mulheres estiveram confinadas à cozinhas, LGBTs aos armários e negras e negros às senzalas não havia motivo para desconforto daqueles que os mantinham ali, julgando natural e merecida a sua opressão. É por causa da crescente ascensão de grupos historicamente oprimidos, do vislumbre da igualdade e do empoderamento, que o conservadorismo está assustado, tentando nos intimidar.
Caroline Botelho, graduanda em Biblioteconomia
O Bloco das Pretas nasceu em Março de 2013 com intuito de representar, diante da Marcha Mundial das Mulheres, as mulheres negras, periféricas e invisíveis diante da sociedade e dos movimentos sociais. No bloco temos mulheres negras, candomblecistas, funkeiras, homossexuais, oriundas de ocupações e outras minorias, de várias faixas etárias.
No ano de 2013, acompanhamos um retrocesso na Marcha das Vadias. As demandas das companheiras negras não eram contempladas nas reuniões. No dia da Marcha, sentimos a exclusão do Bloco. Nossos temas não tinham adesão da maioria das participantes, a exemplo da liberdade sexual da mulher negra, debatida e revelada por meio do funk, do rap e outros estilos musicais que têm origem na periferia.
É interessante lembrar que somos pioneiras nas lutas de emancipação desde a escravidão, como mais oprimidas e marginalizadas em diversas questões, como as creches, a educação e a descriminalização do aborto.
Pretas
Nós, pretas, não concordamos com o termo “vadia”. Constantemente, somos julgadas por meio desse termo, quando usamos nossas roupas curtas. São coisas que fazemos muito antes das feministas brancas militarem pela liberdade dos seus corpos, quando abortamos sem recursos de saúde, quando somos livres para nos relacionar com quantos quisermos ou quando dançamos e cantamos o funk - quando a mulher branca é para casar e a preta é para ‘trepar’!
Quando criticamos a palavra ‘vadia’, não é com conservadorismo. Existe uma falta de compreensão. Há coisas pelas quais as mulheres brancas lutam que muitas de nós, negras, já conquistamos, como a liberdade pelo corpo. E há demandas que não nos contemplam, e sim, nos tornam invisíveis. Somos a maioria dos casos de estupros, violências sexuais, abusos infantis e agressões domésticas.
Luta
A Marcha de BH se preocupou, sim, com a questão racial no ano de 2014, devido à luta, à insistência e à resistência das mulheres negras para conquistar um espaço neste movimento. Mas nossa realidade ainda é desconhecida, nossa fala é oprimida, nossas demandas não são abordadas nem discutidas.
Acredito que seja preciso haver menos brigas partidárias e mais ação, para uma discussão mais aprofundada a respeito da mulher negra. Lutamos ainda por coisas básicas, que as militantes brancas já têm como herança - saúde de qualidade, educação, creche, intolerância religiosa, fome. Na realidade, ainda somos nós que cuidamos de seus filhos, para que elas possam militar por uma emancipação que já temos reivindicado, mesmo que inconscientemente, há centenas de anos.
Míriam Alves, graduanda em Pedagogia
Participei da Marcha em 2012 e 2013. Em 2014, acompanhei algumas reuniões do coletivo, em um primeiro momento pra conhecer um pouco sobre as propostas e o que se debatia entre as feministas da cidade. Minha militância, no entanto, é no movimento negro, principalmente no Bloco das Pretas, frente Feminista do Coletivo de Estudantes Negros (CEN).
Para nós, mulheres negras, seja latino-americanas e estadunidenses ou canadenses, a Marcha das Vadias não têm nos contemplado. Demonstrou-se uma manifestação elitista, que não conseguiu evitar episódios de discriminação de cunho racial - seja pela não aceitação do nosso estereótipo, como no caso do morador de rua e portador de deficiência mental, em Brasília, até casos em que mulheres negras foram expulsas da organização.
Aqui em Belo Horizonte, nos momentos em que participei, o debate sobre a mulher negra foi secundarizado. Outro exemplo foi o momento da visita do Papa Francisco ao Brasil, na Jornada Mundial da Juventude. A prioridade foi debater o Estado Laico, tornando invisível o dia da Mulher Negra Latino Americana e Afro-Caribenha (25/7).
Percebemos que, mesmo estando presentes na construção do 8 de março, o movimento feminista não se solidariza com a organização do 25 de Julho. Em 2012, como bem ressaltou a Carol, enquanto integrantes do Bloco das Pretas cantavam nas ruas letras de funk e rap, que é parte da cultura negra, muitas mulheres que acompanhavam a marcha nos marginalizaram.
Cuidados – puta e vadia, não
Destaco a singularidades em relação à organização em BH. O trabalho desenvolvido com as prostitutas dá visibilidade a essas mulheres e insere o tema nas pautas de discussões feminista na cidade. Mas quando inserimos a questão racial, que tem sido, sim, discutida, são necessários alguns cuidados.
Não nos identificamos com o uso das palavras “puta” ou “vadia”. Esses termos são carregados por nós, mulheres negras, bem antes das mulheres brancas, por todo um histórico de comercialização dos nossos corpos, naturalizados na mentalidade do homem branco, além da hiperssexualização da mulher negra. Ainda hoje, estão bem presentes na nossa sociedade as figuras da mula de cama (mucama) ou da mula jovem (mulata).
Independentemente de estarmos vestidas ou não, os símbolos da opressão sofridos duplamente pela mulher negra, racismo e machismo, fazem parte do nosso cotidiano, e são ressaltados tanto por meios institucionais e principalmente pela mídia. Um exemplo é a Globeleza.
Não queremos carregar mais essa chaga de ser animalizada e subalternizada, queremos quebrar esse padrão presente na sociedade de que a mulher negra ocupa determinados cargos, como empregada doméstica, escrava ou prostituta. Somos símbolos da exploração sexual. Se nos afirmamos como ‘vadias’ ou ‘putas’, acredito que apenas reafirmamos essa posição em uma sociedade racista como a brasileira.
Embora o sentido da expressão tenha sido denunciar a banalização dos nossos corpos, ele não é adequado à realidade da mulher negra e toda violência simbólica que sofremos. O uso de roupa curta, por exemplo, como especificado pela Carol, foi sempre parte da nossa realidade. Não “queimamos o sutiã” como a mulher branca, até porque não tínhamos dinheiro para tal acessório. A nós, sempre foram dados os farrapos.
A mulher negra, favelada e de periferia, sempre teve a liberdade de usar roupa curta sem ser criminalizada - a não ser pelas religiões ocidentais cristãs que foram gerando todo um processo de alienação, por meio do conservadorismo, nos impondo uma cultura que não é nossa, uma realidade que não é nossa. Buscamos respeito, seja de nossos parceiros ou dos homens brancos, que na maioria das vezes só quer ‘comer’ a mulata boazuda, pois essa não é a mulher a ser respeitada, não é a mulher pra casar, é a mulher apenas para a cama. Por isso a importância do feminismo negro, pois temos nossas especificidades.
Diálogo
O diálogo, inclusive com a organização atual, existe, mas precisa ser aprofundado. Também existe a discussão sobre a prostituição, que é um grupo majoritariamente de mulheres negras, pela nossa realidade sócio-historica. Vejo a organização bastante aberta a essas questões e compreendo a dificuldade na estruturação do evento.
Porém, para que haja adesão por nossa parte é necessário haver uma ressignificação do nome que a Marcha leva, o que parece ser o complicador. Para a Marcha evoluir, deve contemplar todas as mulheres e suas especificidades. Diferentemente da impressão da Carol, para mim, um ponto positivo é justamente o apartidarismo que caracteriza o processo, pois as disputas classistas tendem a dividir ainda mais o gênero.
Há aspectos que precisam ser melhorados, como a invisibilização de nossas bandeiras de luta. Não lutamos simplesmente por direitos, mas pelo básico para sobrevivência - moradia, escola e saúde com qualidade, o direito de expressar nossa cultura, nossa identidade, ancestralidade e religiosidade (por meio das religiões de matrizes africana) e contra a precarização de nosso trabalho.
Adriana Torres, administradora de marketing e voluntária do Movimento Nossa BH
Sou uma das articuladoras da Marcha em Belo Horizonte. Comecei a participar logo no primeiro ano, mas fazendo a divulgação pelos canais de comunicação do Movimento Nossa BH (https://www.facebook.com/MovimentoNossaBH), pois só fiquei sabendo do evento quando as organizadoras divulgaram no Facebook. Após essa primeira edição, fui convidada para integrar o grupo de organização que foi criado no Google.
Como voluntária do Nossa BH, sou ativista pelos direitos humanos. Claro que a pauta das violências sofridas pelas mulheres fazem parte disso. Mas confesso que, nesse caso em especial, há ainda uma motivação pessoal. Eu já sofri diversas violências (veja aqui a história) e enxerguei uma forma de trabalhar melhor o que já tinha passado e, ao mesmo tempo, lutar contra esse sistema que nos oprime.
Mudanças, continuidade e radicalismo
A marcha continua sendo um coletivo plural, com reinvidicações diversas. Cada participante dará uma visão diferente e isso faz parte da riqueza desse coletivo. Somos vadias no sentido de sofrermos a opressão, mas não somos todas iguais. Cada grupo sofre violências em graus diferentes e violências diferentes.
O amadurecimento foi exatamente em direção a isso, de trazermos as diversas pautas para dentro do coletivo e debater a situação da outra - seja ela negra, pobre, transexual, prostituta. No início, muitas não se enxergavam na marcha e as críticas nos ajudaram a fazer novas reflexões em busca de maior empatia entre os grupos diversos.
Não percebo nenhum radicalismo na Marcha. Aliás, me incomoda profundamente esse termo, usualmente utilizado para desqualificar uma causa. Ativistas de direitos não humanos são chamados de zooxiitas ou ecoterroristas, feministas de feminazis, a esquerda de esquerdopatas. Por acaso é radicalismo lutar pelo fim da violência e pela liberdade da mulher? É radicalismo acreditar que nosso corpo nos pertence e que o sistema político e social atual é opressor e assassino? O que é radicalismo afinal?
Todos e todas são bem vindos à marcha, crianças, idosos, homens, trans, cis. Lutar por liberdade é dever de todos e todas também.
Liberdade vadia
O sentido da palavra vadia é Liberdade. Na ressignificação do termo, vadia é a mulher que se liberta dos padrões impostos e toma para si o protagonismo de seu corpo, de sua história, de sua vida. Todas, em algum momento, fomos chamadas de vadias por termos fugido desses padrões, ou apenas para ofender. Ao nos libertarmos do que nos oprime, temos também a liberdade de utilizar o termo vadia como símbolo dessa liberdade.
Em geral, as críticas ao termo contribuem para a reflexão e para o debate. Mas a objetificação existe, assim como coisificamos crianças e animais. No sistema de mais valia que nos estrutura, mulheres são consideradas seres inferiores. O termo "vadia" choca, chama atenção, porque ninguém quer ver sua irmã, sua mãe, sua tia serem chamadas de vadias. Mas é exatamente o que nos acontece. Chamar a atenção para o discurso, para as palavras que utilizamos no dia a dia é vital. O discurso não somente mostra o que somos, como ele nos faz sermos o que somos.
Existe também a ideia de que se a mulher vende seu corpo, ela está contribuindo para a objetificação. Isso é bobagem. Ela na verdade está usando as armas que tem, se empoderando por meio daquilo que a oprime. E isso é um chute fantástico no sistema patriarcal.
Preocupações
Sem dúvida, aspectos raciais e dos coletivos LGBT são algumas das maiores preocupações da Marcha. Esses grupos sofrem violências e repressões ainda maiores, em outros contextos. Inclusive uma das maiores críticas à marcha e aos grupos feministas vem dos coletivos de mulheres negras que, muitas vezes, não se sentem representadas nesses espaços.
É a mulher branca que oprime a mulher negra há séculos, desde a escravidão. Idem para a negação da identidade de gênero das LGBTs. Precisamos ter esse olhar para o outro, ao mesmo tempo em que reconhecemos, mesmo na violência que sofremos, os privilégios que alguns grupos detém sobre os demais.
Resolver o problema da violência exige um comprometimento de todos, desde o cidadão até a gestão pública, com a desconstrução de um processo social e político que hierarquiza pessoas por gênero, idade, raça, etnia, classe e orientação sexual; e que limita seus direitos e sua liberdade. É necessário revolucionar toda a nossa crença naquilo que nos estrutura hoje. As pessoas estão pouco dispostas a uma mudança tão grande.
Minas são muitas
Não posso avaliar o estado como um todo, mas, na capital, temos características semelhantes aos outros estados. A adesão aqui é menor do que no Rio e em São Paulo, onde o ativismo é mais forte. Já no interior, tenho a percepção de que demoraremos a atingir a maioria das cidades, pelo perfil conservador do mineiro.
Slut Walk
De origem canadense, a Marcha das Vadias (Slut Walk, em inglês) encontra representações em todos os continentes. Em 2011, a Universidade de Toronto, alarmada com diversos casos de abuso sexual na região, organizou uma palestra sobre segurança. O policial Michael Sanguinetti declarou que as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias para evitar o estupro. Cerca de três mil estudantes indignadas saíram ás ruas de Toronto na primeira Marcha, em abril de 2011.
Programação
A Marcha das Vadias é uma manifestação local, de organização descentralizada e horizontal. Em Belo Horizonte, a página é facebook.com/marchadasvadias. Para informações de outras cidades, vale acessar https://agendafeminista.wordpress.com/category/marcha-das-vadias/maio/ ou ainda lançar o termo 'marcha das vadias' no Google e nas redes sociais.
Considerando dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), o cenário torna-se mais detalhado:
-70% das vítimas têm até 17 anos,
-50,7% eram crianças de até 13 anos,
-88,5% são do sexo feminino,
-51% são da cor parda ou negra,
-46% não possuem ensino fundamental,
-em 24,1% dos casos, o agressor é o pai ou padrasto;
-em 32,2% é um amigo ou conhecido da família e da vítima.
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Ainda hoje, as articuladoras do movimento recebem ameaças – anônimas ou não – por telefone e pela internet. Na quarta edição com o mesmo nome, o termo vadia é alvo de interpretações diversas daquelas apresentadas na manifestação. Questões raciais e vinculadas aos grupos LGBT também crescem dentro de uma manifestação que não pretende falar pelas mulheres, mas sim abrir um espaço para que elas sejam ouvidas.
Você já quebrou alguma regra imposta pela sociedade?
Por que a ofensa dirigida a uma mulher quase sempre tem tom sexual?
O termo vadia tem o mesmo peso para todas as mulheres – brancas, negras, hétero ou lésbicas, pobres ou ricas?
Por que a ofensa dirigida a uma mulher quase sempre tem tom sexual?
O termo vadia tem o mesmo peso para todas as mulheres – brancas, negras, hétero ou lésbicas, pobres ou ricas?
O testemunho de seis mulheres que trouxeram as reivindicações da Marcha das Vadias para a lista de prioridades de suas vidas - ao mesmo tempo em que são profissionais, mães, estudantes, filhas, companheiras - estreia uma nova seção: Uma história em depoimentos. Aqui, o Saúde Plena apresenta o sentido de grandes reivindicações referentes à saúde, ao bem-estar e ao comportamento, sob a ótica de seus participantes ativos.
Serviço:
Marcha das Vadias 2014 - Belo Horizonte
Data: 24 de maio
Concentração e oficina de cartazes a partir das 13h na Praça da Rodoviária
Saída às 14h em direção à Praça da Estação, passando pela Rua Guaicurus. Da Praça da Estação, a Marcha sobe a rua da Bahia em direção à Praça da Liberdade.
Marcha das Vadias 2014 - Belo Horizonte
Data: 24 de maio
Concentração e oficina de cartazes a partir das 13h na Praça da Rodoviária
Saída às 14h em direção à Praça da Estação, passando pela Rua Guaicurus. Da Praça da Estação, a Marcha sobe a rua da Bahia em direção à Praça da Liberdade.
Cynthia Semíramis, pesquisadora/estudante de doutorado na Faculdade de Direito da UFMG
Participo desde a primeira Marcha, em 2011. Já fazia parte do movimento feminista e a Slut Walk canadense foi a faísca para protestar contra uma situação que é velha conhecida das mulheres. A identificação foi imediata. Daí pra nos organizarmos e irmos pra rua foi um caminho natural.
Sentido atual
O foco continua sendo a liberdade das mulheres e o direito a uma vida sem violência. Essa é uma questão fundamental para o movimento feminista. Outras causas são derivadas dessa, como o combate ao racismo (pois o discurso racista discrimina mulheres negras de forma mais intensa que mulheres brancas), à homofobia (especialmente dando visibilidade à lesbofobia), a transfobia, bem como a luta pelo respeito e a regulamentação da prostituição.
Radicalismo e ‘vadias’
O radicalismo da Marcha das Vadias está em considerar mulheres como seres humanos, em igualdade de condições e oportunidades com os homens. Por incrível que pareça, essa premissa feminista ainda é considerada radical para muitas pessoas. Quando uma mulher 'desobedece' a uma norma da sociedade, ela é chamada de vadia. Isso não deveria ser um insulto, mas o resultado do exercício de liberdade feminina, que precisa ser ressignificado para perder seu caráter pejorativo.
Vadia é a mulher que é livre para escolher o que fazer com seu corpo e sua vida. É a mulher que não se submete à pressão da sociedade quando ela considera que isso irá restringir sua vida ou prejudicá-la.
A perspectiva conservadora é de que vadia é um termo que é usado para punir, humilhar e associar a mulher a uma vida sexual considerada inadequada. Nossa crítica a esse termo aparece de várias formas - pode ser tanto formal (expondo a discriminação sexual que é imposta apenas às mulheres, ou demonstrando que o peso da palavra é maior para mulheres negras), como pode ser feita de forma debochada, ressignificando o termo (sou vadia, sim. E daí? Isso não é motivo pra me discriminar).
Em ambos os casos, o resultado é uma problematização que contribui para lembrar às pessoas que mulheres têm o direito de escolher o que desejam para suas vidas e não devem ser rotuladas por isso. Quem discorda do uso do termo 'vadia' no contexto da marcha não é necessariamente conservador. O conservador é quem acha que mulher não pode ter vida sexual, ou que qualquer coisa que ela faça deve ser criticado através de preconceitos relacionados à sexualidade. Pode ser simplesmente mal informado.
Homens, etnias, questões LGBT
As Marchas adquirem as cores locais. Há algumas manifestações que não têm homens na organização, outras os aceitam. Em Belo Horizonte, optamos por fazer um diálogo com homens também, e eles são bem-vindos à manifestação. Afinal, para mudar a situação das mulheres é importante também modificar as ações dos homens para que eles compreendam que rotular pessoas através de estereótipos relacionados à vida sexual prejudica a vida das mulheres e restringe qualquer possibilidade de igualdade de gênero.
Da mesma forma, há preocupação com questões raciais e LGBT, mas variam de cidade para cidade. A forma como elas se manifestam na Marcha em si varia bastante, e não é uma questão só da organização, mas principalmente dos grupos e coletivos que optam por se manifestar e realizar performances ao longo da manifestação.
Cada cidade acaba tendo, portanto, uma Marcha diferente, que reflete as discussões dos movimentos locais. Aqui em Belo Horizonte sempre houve parceria com a Associação de Prostitutas de Minas Gerais (Aprosmig). Consideramos que não há como dar novo sentido ao termo vadia sem considerar também as violências que as prostitutas sofrem por não terem a profissão regulamentada nem direitos reconhecidos. São duas faces da mesma moeda. A moeda da liberdade sexual.
Nathalia Duarte, cientista social
Comecei a participar da construção da marcha em 2013, por acreditar muito no potencial do movimento. Acho que o foco da marcha sempre foi e continua sendo um só: a autonomia das mulheres sobre seus próprios corpos, sobre sua sexualidade e sua vida.
Dentro deste grande tema, há sim uma pluralidade de perspectivas e de formas e isso, na minha opinião, é muito positivo. A Marcha de Belo Horizonte amadureceu sim, não por ter um foco único, mas justamente por incorporar discussões que antes não eram muito fortes dentro da manifestação. O racismo, a lesbofobia e aspectos relativos à prostituição são bons exemplos disso.
Sentido hoje e radicalismo
Para mim, a importância é a de disseminar discussões que geralmente são feitas apenas pelas feministas. É um momento em que a grande mídia se volta para nós e divulga nossas reivindicações. Isso é muito valioso. Vejo que a Marcha consegue a cada ano mais adeptos. Mas o principal sentido continua sendo o de lutar por autonomia, liberdade e respeito, independentemente de quem somos, que roupas usamos, onde estamos.
Há espaços e eventos feministas bem mais radicais que a marcha, mas acredito que é da natureza do feminismo ser radical. Não há como ser feminista sem ser radical, na medida em que o machismo está na base de tudo, e romper com ele é, de certa forma, romper com tudo. Mas é óbvio que temos que dialogar e acho que a Marcha das Vadias é justamente esse espaço de diálogo.
É radical e dialógico ao mesmo tempo, pois não há avanço sem diálogo, mas também não há avanço sem radicalidade. Se perdermos a radicalidade, somos mais uma vez engolidas pelo machismo.
Homens
Existem espaços feministas que precisam ser exclusivos para as mulheres, por uma questão de empoderamento e de protagonismo na luta, que é nossa e não dos homens. Mas momentos como a Marcha das Vadias são aqueles nos quais todo apoio é bem-vindo. Os homens pró-feministas que quiserem somar à nossa luta, podem e devem se juntar a nós.
É importante, no entanto, que eles compreendam que são apoiadores e que o protagonismo é nosso (afinal de contas, eles já são protagonistas em 99% dos espaços). Isso sendo respeitado, a presença deles é sim um fator positivo, afinal de contas, a sociedade não muda se os homens não mudarem.
Vadias
Vadia tem o sentido de mulher livre. Vadia pra nós tem mais ou menos o mesmo significado que para o resto da sociedade. O que muda é que consideramos positivo; e não negativo. Se exercer nossa sexualidade do jeito que quisermos, se usar a roupa que quisermos, se fazer o que quisermos com nosso corpo é ser vadia, então somos todas vadias e com muito orgulho.
As críticas ao termo estão aí, e não acho que quem critica é conservador necessariamente. Tudo depende de como a crítica é feita. Há críticas feministas à Marcha das Vadias que são muito válidas. A empreitada de ressignificar um termo é mesmo complicada, pois é uma palavra muito negativa para a maioria. Nesse percurso corremos sim alguns riscos, mas eu pessoalmente acredito muito nesta luta. Acho que quando reivindicamos a posição de sujeitos, de donas de nós mesmas, estamos indo justamente no caminho contrário da objetificação.
Minas Gerais
Em 2014, as discussões sobre questões raciais e LGBT estiveram bem mais presentes na construção da Marcha e esse amadurecimento tem sido muito importante para o movimento. Essas questões se incluem na medida em que mais mulheres negras e lésbicas integram-se à articulação. Há ainda um processo particular em Belo Horizonte que se relaciona com os movimentos de ocupação das ruas e de luta pelo direito à cidade. Movimentos como a Praia da Estação, o Tarifa Zero, o Espaço Comum Luiz Estrela, o Fica Ficus e o próprio carnaval de rua vêm colocando em pauta a questão da mobilidade, do acesso à cidade, da ocupação do espaço público, com a construção do comum.
Essa discussão tem tudo a ver com a Marcha das Vadias, porque estamos lutando pelo direito de ir e vir, de colocar nossos corpos na cidade do jeito que quisermos, de andarmos em qualquer lugar a qualquer hora sem sofrer assédio ou agressão. O espaço público e o transporte coletivo não são pensados para as mulheres, e o assédio se constitui, portanto, como mais uma catraca que precisamos enfrentar durante o deslocamento de cada dia.
Além disso, todos esses movimentos têm criado em BH uma cultura de ir pra rua e isso faz com que cada vez mais pessoas se disponham a sair de suas casas para marchar por uma causa em que acreditam.
Daniela Vaz, professora do Departamento de Fisioterapia da UFMG, filiada à rede feminista de saúde
A Marcha é democrática, não tem líderes ou organização central. A cada ano ela se autoorganiza, pela iniciativa de quem tiver disponibilidade. Dessa forma ela mantém o espírito original, com pautas também democráticas e plurais. O sentido não mudou, a manifestação tem ainda como papel principal chamar a atenção para a barbárie das opressões e violências motivadas por gênero.
Igualdade
A marcha é provavelmente vista como um movimento radical por muitos. O feminismo já foi definido como a ideia radical de que mulheres são gente. É um mundo muito doente esse em que o conceito de igualdade entre homens e mulheres e de que mulheres não podem ser culpabilizadas pela violência sejam vistas como radicais.
Por isso mesmo, os homens são bem-vindos à Marcha. Igualdade e fim da opressão devem ser lutas de todos para o beneficio de todos. Todos são bem vindos, independentemente de gênero.
Vadia, e daí?
Uma das propostas da marcha é ressignificar o termo vadia, normalmente usado para desqualificar a mulher quando ela diz sim e também quando ela diz não a um homem. Esse é, portanto, um xingamento machista, que pretende desvalorizar a mulher que exerce sua liberdade, com o objetivo de cercear essa mesma liberdade. A marcha quer denunciar esse machismo e empoderar mulheres: se ser vadia é ser livre, somos sim vadias, assumimos abertamente essa liberdade e não abrimos mão dela. Não nos intimidaremos com investidas de quem quer nos constranger.
Mas...
A discussão sobre o uso desse termo é importante. Privilégio não é uma coisa unidimensional, mas resulta da interação de muitos fatores como classe social, raça e etnia, gênero e orientação sexual, por exemplo. Uma das críticas mais importantes ao movimento é a de que a ressignificação do termo só pode ser proposta e praticada por mulheres que ocupam uma posição relativamente privilegiada, que vivem em um ambiente relativamente seguro - onde se vestir conforme o estereótipo e se intitular vadia não causará consequências drásticas.
Isso acontece porque a violência contra a mulher branca, hétero e rica é vista como mais ultrajante do que aquela contra a mulher negra, lésbica ou bi, e pobre. O peso do termo vadia não é o mesmo para todas as mulheres, e a expressão "somos todas vadias" pode mascarar essas diferenças. Eu acho que a marcha precisa ser um espaço de escuta. Ela já serviu para acordar muitas consciências e empoderar muitas mulheres. Se a escuta indicar que devemos abandonar o nome para que o movimento se torne mais inclusivo, eu, pessoalmente não tenho nenhum apego à nomenclatura.
Várias mulheres que participaram da organização da marcha são provenientes de coletivos do movimento negro e LGBT. Essas questões são centrais no movimento uma vez que essas mulheres são as maiores vítimas de violência simbólica e física.
Ameaças
A raiz das ameaças que algumas articulistas do movimento recebem é a mesma que sustenta o número assustador de cerca de 50 mil mulheres estupradas por ano - a cultura da opressão de gênero. Estamos gritando pra todo mundo ouvir que somos livres. Liberdade incomoda quem oprime. Essa reação é o que chamamos de backlash, um antagonismo à articulação e ao crescimento do feminismo.
Há quem esteja pessimista devido a essa onda reativa conservadora. Eu sou otimista. Enquanto mulheres estiveram confinadas à cozinhas, LGBTs aos armários e negras e negros às senzalas não havia motivo para desconforto daqueles que os mantinham ali, julgando natural e merecida a sua opressão. É por causa da crescente ascensão de grupos historicamente oprimidos, do vislumbre da igualdade e do empoderamento, que o conservadorismo está assustado, tentando nos intimidar.
Caroline Botelho, graduanda em Biblioteconomia
O Bloco das Pretas nasceu em Março de 2013 com intuito de representar, diante da Marcha Mundial das Mulheres, as mulheres negras, periféricas e invisíveis diante da sociedade e dos movimentos sociais. No bloco temos mulheres negras, candomblecistas, funkeiras, homossexuais, oriundas de ocupações e outras minorias, de várias faixas etárias.
No ano de 2013, acompanhamos um retrocesso na Marcha das Vadias. As demandas das companheiras negras não eram contempladas nas reuniões. No dia da Marcha, sentimos a exclusão do Bloco. Nossos temas não tinham adesão da maioria das participantes, a exemplo da liberdade sexual da mulher negra, debatida e revelada por meio do funk, do rap e outros estilos musicais que têm origem na periferia.
É interessante lembrar que somos pioneiras nas lutas de emancipação desde a escravidão, como mais oprimidas e marginalizadas em diversas questões, como as creches, a educação e a descriminalização do aborto.
Pretas
Nós, pretas, não concordamos com o termo “vadia”. Constantemente, somos julgadas por meio desse termo, quando usamos nossas roupas curtas. São coisas que fazemos muito antes das feministas brancas militarem pela liberdade dos seus corpos, quando abortamos sem recursos de saúde, quando somos livres para nos relacionar com quantos quisermos ou quando dançamos e cantamos o funk - quando a mulher branca é para casar e a preta é para ‘trepar’!
Quando criticamos a palavra ‘vadia’, não é com conservadorismo. Existe uma falta de compreensão. Há coisas pelas quais as mulheres brancas lutam que muitas de nós, negras, já conquistamos, como a liberdade pelo corpo. E há demandas que não nos contemplam, e sim, nos tornam invisíveis. Somos a maioria dos casos de estupros, violências sexuais, abusos infantis e agressões domésticas.
Luta
A Marcha de BH se preocupou, sim, com a questão racial no ano de 2014, devido à luta, à insistência e à resistência das mulheres negras para conquistar um espaço neste movimento. Mas nossa realidade ainda é desconhecida, nossa fala é oprimida, nossas demandas não são abordadas nem discutidas.
Acredito que seja preciso haver menos brigas partidárias e mais ação, para uma discussão mais aprofundada a respeito da mulher negra. Lutamos ainda por coisas básicas, que as militantes brancas já têm como herança - saúde de qualidade, educação, creche, intolerância religiosa, fome. Na realidade, ainda somos nós que cuidamos de seus filhos, para que elas possam militar por uma emancipação que já temos reivindicado, mesmo que inconscientemente, há centenas de anos.
Míriam Alves, graduanda em Pedagogia
Participei da Marcha em 2012 e 2013. Em 2014, acompanhei algumas reuniões do coletivo, em um primeiro momento pra conhecer um pouco sobre as propostas e o que se debatia entre as feministas da cidade. Minha militância, no entanto, é no movimento negro, principalmente no Bloco das Pretas, frente Feminista do Coletivo de Estudantes Negros (CEN).
Para nós, mulheres negras, seja latino-americanas e estadunidenses ou canadenses, a Marcha das Vadias não têm nos contemplado. Demonstrou-se uma manifestação elitista, que não conseguiu evitar episódios de discriminação de cunho racial - seja pela não aceitação do nosso estereótipo, como no caso do morador de rua e portador de deficiência mental, em Brasília, até casos em que mulheres negras foram expulsas da organização.
Aqui em Belo Horizonte, nos momentos em que participei, o debate sobre a mulher negra foi secundarizado. Outro exemplo foi o momento da visita do Papa Francisco ao Brasil, na Jornada Mundial da Juventude. A prioridade foi debater o Estado Laico, tornando invisível o dia da Mulher Negra Latino Americana e Afro-Caribenha (25/7).
Percebemos que, mesmo estando presentes na construção do 8 de março, o movimento feminista não se solidariza com a organização do 25 de Julho. Em 2012, como bem ressaltou a Carol, enquanto integrantes do Bloco das Pretas cantavam nas ruas letras de funk e rap, que é parte da cultura negra, muitas mulheres que acompanhavam a marcha nos marginalizaram.
Cuidados – puta e vadia, não
Destaco a singularidades em relação à organização em BH. O trabalho desenvolvido com as prostitutas dá visibilidade a essas mulheres e insere o tema nas pautas de discussões feminista na cidade. Mas quando inserimos a questão racial, que tem sido, sim, discutida, são necessários alguns cuidados.
Não nos identificamos com o uso das palavras “puta” ou “vadia”. Esses termos são carregados por nós, mulheres negras, bem antes das mulheres brancas, por todo um histórico de comercialização dos nossos corpos, naturalizados na mentalidade do homem branco, além da hiperssexualização da mulher negra. Ainda hoje, estão bem presentes na nossa sociedade as figuras da mula de cama (mucama) ou da mula jovem (mulata).
Independentemente de estarmos vestidas ou não, os símbolos da opressão sofridos duplamente pela mulher negra, racismo e machismo, fazem parte do nosso cotidiano, e são ressaltados tanto por meios institucionais e principalmente pela mídia. Um exemplo é a Globeleza.
Não queremos carregar mais essa chaga de ser animalizada e subalternizada, queremos quebrar esse padrão presente na sociedade de que a mulher negra ocupa determinados cargos, como empregada doméstica, escrava ou prostituta. Somos símbolos da exploração sexual. Se nos afirmamos como ‘vadias’ ou ‘putas’, acredito que apenas reafirmamos essa posição em uma sociedade racista como a brasileira.
Embora o sentido da expressão tenha sido denunciar a banalização dos nossos corpos, ele não é adequado à realidade da mulher negra e toda violência simbólica que sofremos. O uso de roupa curta, por exemplo, como especificado pela Carol, foi sempre parte da nossa realidade. Não “queimamos o sutiã” como a mulher branca, até porque não tínhamos dinheiro para tal acessório. A nós, sempre foram dados os farrapos.
A mulher negra, favelada e de periferia, sempre teve a liberdade de usar roupa curta sem ser criminalizada - a não ser pelas religiões ocidentais cristãs que foram gerando todo um processo de alienação, por meio do conservadorismo, nos impondo uma cultura que não é nossa, uma realidade que não é nossa. Buscamos respeito, seja de nossos parceiros ou dos homens brancos, que na maioria das vezes só quer ‘comer’ a mulata boazuda, pois essa não é a mulher a ser respeitada, não é a mulher pra casar, é a mulher apenas para a cama. Por isso a importância do feminismo negro, pois temos nossas especificidades.
Diálogo
O diálogo, inclusive com a organização atual, existe, mas precisa ser aprofundado. Também existe a discussão sobre a prostituição, que é um grupo majoritariamente de mulheres negras, pela nossa realidade sócio-historica. Vejo a organização bastante aberta a essas questões e compreendo a dificuldade na estruturação do evento.
Porém, para que haja adesão por nossa parte é necessário haver uma ressignificação do nome que a Marcha leva, o que parece ser o complicador. Para a Marcha evoluir, deve contemplar todas as mulheres e suas especificidades. Diferentemente da impressão da Carol, para mim, um ponto positivo é justamente o apartidarismo que caracteriza o processo, pois as disputas classistas tendem a dividir ainda mais o gênero.
Há aspectos que precisam ser melhorados, como a invisibilização de nossas bandeiras de luta. Não lutamos simplesmente por direitos, mas pelo básico para sobrevivência - moradia, escola e saúde com qualidade, o direito de expressar nossa cultura, nossa identidade, ancestralidade e religiosidade (por meio das religiões de matrizes africana) e contra a precarização de nosso trabalho.
Adriana Torres, administradora de marketing e voluntária do Movimento Nossa BH
Sou uma das articuladoras da Marcha em Belo Horizonte. Comecei a participar logo no primeiro ano, mas fazendo a divulgação pelos canais de comunicação do Movimento Nossa BH (https://www.facebook.com/MovimentoNossaBH), pois só fiquei sabendo do evento quando as organizadoras divulgaram no Facebook. Após essa primeira edição, fui convidada para integrar o grupo de organização que foi criado no Google.
Como voluntária do Nossa BH, sou ativista pelos direitos humanos. Claro que a pauta das violências sofridas pelas mulheres fazem parte disso. Mas confesso que, nesse caso em especial, há ainda uma motivação pessoal. Eu já sofri diversas violências (veja aqui a história) e enxerguei uma forma de trabalhar melhor o que já tinha passado e, ao mesmo tempo, lutar contra esse sistema que nos oprime.
Mudanças, continuidade e radicalismo
A marcha continua sendo um coletivo plural, com reinvidicações diversas. Cada participante dará uma visão diferente e isso faz parte da riqueza desse coletivo. Somos vadias no sentido de sofrermos a opressão, mas não somos todas iguais. Cada grupo sofre violências em graus diferentes e violências diferentes.
O amadurecimento foi exatamente em direção a isso, de trazermos as diversas pautas para dentro do coletivo e debater a situação da outra - seja ela negra, pobre, transexual, prostituta. No início, muitas não se enxergavam na marcha e as críticas nos ajudaram a fazer novas reflexões em busca de maior empatia entre os grupos diversos.
Não percebo nenhum radicalismo na Marcha. Aliás, me incomoda profundamente esse termo, usualmente utilizado para desqualificar uma causa. Ativistas de direitos não humanos são chamados de zooxiitas ou ecoterroristas, feministas de feminazis, a esquerda de esquerdopatas. Por acaso é radicalismo lutar pelo fim da violência e pela liberdade da mulher? É radicalismo acreditar que nosso corpo nos pertence e que o sistema político e social atual é opressor e assassino? O que é radicalismo afinal?
Todos e todas são bem vindos à marcha, crianças, idosos, homens, trans, cis. Lutar por liberdade é dever de todos e todas também.
Liberdade vadia
O sentido da palavra vadia é Liberdade. Na ressignificação do termo, vadia é a mulher que se liberta dos padrões impostos e toma para si o protagonismo de seu corpo, de sua história, de sua vida. Todas, em algum momento, fomos chamadas de vadias por termos fugido desses padrões, ou apenas para ofender. Ao nos libertarmos do que nos oprime, temos também a liberdade de utilizar o termo vadia como símbolo dessa liberdade.
Em geral, as críticas ao termo contribuem para a reflexão e para o debate. Mas a objetificação existe, assim como coisificamos crianças e animais. No sistema de mais valia que nos estrutura, mulheres são consideradas seres inferiores. O termo "vadia" choca, chama atenção, porque ninguém quer ver sua irmã, sua mãe, sua tia serem chamadas de vadias. Mas é exatamente o que nos acontece. Chamar a atenção para o discurso, para as palavras que utilizamos no dia a dia é vital. O discurso não somente mostra o que somos, como ele nos faz sermos o que somos.
Existe também a ideia de que se a mulher vende seu corpo, ela está contribuindo para a objetificação. Isso é bobagem. Ela na verdade está usando as armas que tem, se empoderando por meio daquilo que a oprime. E isso é um chute fantástico no sistema patriarcal.
Preocupações
Sem dúvida, aspectos raciais e dos coletivos LGBT são algumas das maiores preocupações da Marcha. Esses grupos sofrem violências e repressões ainda maiores, em outros contextos. Inclusive uma das maiores críticas à marcha e aos grupos feministas vem dos coletivos de mulheres negras que, muitas vezes, não se sentem representadas nesses espaços.
É a mulher branca que oprime a mulher negra há séculos, desde a escravidão. Idem para a negação da identidade de gênero das LGBTs. Precisamos ter esse olhar para o outro, ao mesmo tempo em que reconhecemos, mesmo na violência que sofremos, os privilégios que alguns grupos detém sobre os demais.
Resolver o problema da violência exige um comprometimento de todos, desde o cidadão até a gestão pública, com a desconstrução de um processo social e político que hierarquiza pessoas por gênero, idade, raça, etnia, classe e orientação sexual; e que limita seus direitos e sua liberdade. É necessário revolucionar toda a nossa crença naquilo que nos estrutura hoje. As pessoas estão pouco dispostas a uma mudança tão grande.
Minas são muitas
Não posso avaliar o estado como um todo, mas, na capital, temos características semelhantes aos outros estados. A adesão aqui é menor do que no Rio e em São Paulo, onde o ativismo é mais forte. Já no interior, tenho a percepção de que demoraremos a atingir a maioria das cidades, pelo perfil conservador do mineiro.
Slut Walk
De origem canadense, a Marcha das Vadias (Slut Walk, em inglês) encontra representações em todos os continentes. Em 2011, a Universidade de Toronto, alarmada com diversos casos de abuso sexual na região, organizou uma palestra sobre segurança. O policial Michael Sanguinetti declarou que as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias para evitar o estupro. Cerca de três mil estudantes indignadas saíram ás ruas de Toronto na primeira Marcha, em abril de 2011.
Programação
A Marcha das Vadias é uma manifestação local, de organização descentralizada e horizontal. Em Belo Horizonte, a página é facebook.com/marchadasvadias. Para informações de outras cidades, vale acessar https://agendafeminista.wordpress.com/category/marcha-das-vadias/maio/ ou ainda lançar o termo 'marcha das vadias' no Google e nas redes sociais.