Saúde

Entenda o peso da vida urbana para o coração

Para evitar a previsão das mais de 23 milhões de mortes por causa de doenças cardiovasculares nos próximos 16 anos, segundo dados da OMS, é preciso mudar os hábitos: manter dieta saudável, fazer exercícios, controlar as taxas, reduzir o álcool e livrar-se do cigarro, para falar o mínimo

Revista do CB

O que muitos desconhecem, porém, é que o coração sente os efeitos da vida moderna. “O que as pessoas não têm noção é de que o estresse, a poluição, o fato de pegarem um ônibus lotado, por exemplo, aumentam o risco de doença cardiovascular”, acrescenta doutor Fernando Alves. A relação entre a rotina que se leva e a saúde do coração, se é desconhecida por quem enfrenta um dia a dia arriscado, há tempos já foi definida como um moderno fator de risco pelos especialistas.


A pesquisa canadense, batizada de Interheart, foi um dos maiores estudos feitos na tentativa de identificar as principais razões que potencializam em 90% a chance de ter um infarto agudo no miocárdio. Para o estudo, entrevistaram mais de 12 mil pessoas com histórico familiar de infarto, e mais de 14 mil que não contavam com a mesma sorte, em 52 países, no período de 1999 e 2003. Foram analisados fatores de risco óbvios, como tabagismo, colesterol, diabetes, obesidade, alimentação e consumo de bebida alcoólica, para avaliar quais hábitos tornavam as pessoas mais vulneráveis aos problemas cardíacos.

O diferencial, no entanto, ficou por conta dos pontos psicossociais considerados arriscados. Ocupação profissional, renda, níveis de estresse foram levados em conta. “O Interheart mostra que, até mesmo quando o indivíduo casa-se duas vezes, aumenta o risco de ele ter um infarto”, conclui o cardiologista Fernando Alves.

Reconhecendo-se então o perigo, a primeira medida a fazer é amenizá-lo. A questão é que tanto a população minimiza o alerta quanto as autoridades negligenciam as medidas de prevenção. Os números mostram que para evitar a previsão das mais de 23 milhões de mortes por causa de doenças cardiovasculares nos próximos 16 anos, segundo dados da OMS, é preciso mudar os hábitos: manter dieta saudável, fazer exercícios, controlar as taxas, reduzir o álcool e livrar-se do cigarro, para falar o mínimo.

O que se coloca no prato, aliás, tem poder de prevenção. O cardiologista Wing Carvalho Lima, do Hospital do Coração do Brasil, garante que só a escolha dos alimentos certos — e aí compreende-se com menos sal, açúcar e gordura saturada — já reduz em 30% as chances de ter um infarto.

Mas o caminho ainda parece ser longo: de 15% a 20% dos brasileiros são fumantes; 12% têm diabetes; mais de 80% da população ainda é sedentária; cerca de 4% a 7% das crianças têm hipertensão e mais ou menos 18% delas estão com sobrepeso. Isso sem falar que entre os adultos hipertensos, apenas 20% fazem controle efetivo do problema. O restante ou não adere ao tratamento ou desconhece que tem o mal.

Na tentativa justamente de criar metas coletivas para controlar esses fatores de risco e prevenir as ocorrências de infarto e AVC no Brasil e nas Américas, a Sociedade Brasileira de Cardiologia elaborou a Carta do Rio de Janeiro, no ano passado. O documento propõe diversas formas de alertar à população e promover o aumento da qualidade de vida. “São políticas de prevenção e de tratamentos para reduzir a mortalidade por doenças cardíacas. As principais se referem ao trabalho em conjunto com as sociedades do mundo todo para reduzir o sedentarismo por meio de campanhas pela tevê; o controle da hipertensão; a redução do consumo do sal e do tabagismo”, esclarece o cardiologista Wing Carvalho.

Prevenir, aliás, parece ser a forma mais eficiente de reduzir estatísticas tão pessimistas e preocupantes. “A cultura de prevenção não é adotada como uma política pública de saúde”, lamenta a cardiologista Edna Marques, coordenadora da cardiologia da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Algumas iniciativas do governo tentam induzir novos hábitos, como a lei federal que obriga, desde o ano passado, as escolas a oferecerem lanches mais saudáveis; ou as leis estaduais que controlam os locais onde se pode ou não fumar, limitando o fumo passivo e diminuindo, inclusive, o hábito do fumante de levar o cigarro à boca, tamanho cerceamento da liberdade de fumar onde queira. “Há programas de saúde educativos que são eficientes, mas não são eficazes porque não existe um controle e um monitoramento depois de implementados”, lamenta o diretor do Instituto Paulista de Doenças Cardiovasculares, Fernando Augusto Alves da Costa, membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Há outras iniciativas, como a campanha “Eu sou 12 por 8”, criada pelo Departamento de Hipertensão Arterial da Sociedade Brasileira de Cardiologia para estimular a população a controlar a pressão arterial e evitar a hipertensão. “Essas são medidas preventivas, que deveriam ser o foco primário. São fáceis e simples de serem adotadas, como estímulo à atividade física, controle da dieta e ações antitabagismo”, lista o diretor da Sociedade Brasileira de Cardiologia de São Paulo, Ricardo Pavanello, supervisor da cardiologia do Hospital do Coração (Hcor) e médico do Instituto Dante Pazzanese.

Um novo coração
Os primeiros transplantes no Brasil foram feitos nos anos 1960. Era literalmente a possibilidade de jogar o próprio coração no lixo e colocar um outro no lugar. “Ninguém acreditava naquilo que estava vendo”, conta Fernando Atik, chefe da Unidade de Transplante do Instituto do Coração do Distrito Federal. Essa foi a possibilidade extrema encontrada para tratar uma doença cardíaca sem solução.

Descartar o órgão doente e substituí-lo por um saudável é a última opção na lista de tentativa para salvar um paciente cardíaco. Acontece só mesmo quando não há intervenções possíveis ou os medicamentos não fazem mais efeito. Afinal, há a dificuldade de encontrar centros especializados em transplantes no Brasil — no Centro-Oeste há um, no Sudeste são 19 e no Nordeste não tem nenhum, por exemplo —; doadores compatíveis e há também grande possibilidade de o doente rejeitar o novo órgão. Mas não faltam candidatos. Todos os anos, no Brasil, 500 mil pessoas são internadas por causa da insuficiência cardíaca e da manifestação clínica da doença cardíaca terminal.

No Distrito Federal, por exemplo, há 10 pacientes na fila de espera por transplantes. “Precisaríamos fazer cinco vezes mais transplantes. Cerca de 30% dos pacientes acabam morrendo”, lamenta Fernando Atik. O coração artificial aparece como um recurso cada vez mais palpável para quem precisa trocar o coração, mas ainda não tem o órgão definitivo. O dispositivo pode ser usado por seis meses ou até quatro anos. Também é indicado quando a pessoa tem alguma contraindicação para fazer o transplante, como nos casos de pressão muito alta nos vasos do pulmão. Ainda não é uma realidade por causa do custo e das dificuldades em manutenção, mas é uma possibilidade de um futuro próximo.

Enquanto isso, avança-se nas técnicas de trocas de coração. As medicações mais eficientes garantem menor rejeição. E, se há 10 anos, a sobrevida do transplantado era de 12 anos, hoje a média é de 15,7 anos. Sorte do jardineiro aposentado Raimundo Martins de Oliveira, 43 anos. Ele é um dos pacientes que sofriam da doença de Chagas, o principal mal que justifica o transplante cardíaco na região Centro-Oeste. Nascido e criado em casa pobre no interior da Bahia, ele e a maioria dos 13 irmãos carregaram no corpo a doença do barbeiro.

O coração inchado da irmã dele, por exemplo, não aguentou e parou há dois anos. Raimundo temia o mesmo desfecho, já que, desde os 39 anos, sofria com dores no corpo, dificuldade para caminhar, falta de ar. Sabia que era o mal causado pelo inseto. Colocaram um CDI (cardioversor-desfibrilador implantável) para contornar o problema, mas a doença se agravou e o transplante passou a ser a única garantia de vida. “Pensava que era coisa para rico”, conta.

Raimundo ficou três meses no hospital à espera de um coração que se encaixasse no seu peito. Enquanto isso, o corpo estava cada vez mais inchado e sem energia. As funções de seus rins e fígado estavam comprometidas. A dor no peito não cessava. Até que veio a notícia. “Seu coração chegou!” Era de um jovem de 26 anos, morto em um acidente de moto.

Raimundo não temeu a cirurgia de sete horas que se seguiria para a substituição do órgão. “Eu tinha medo era de ficar com o coração velho”, diz. Quatro meses depois, nem parece que no seu peito bate um outro coração, que não o que nasceu dentro dele. Bem disposto, aos poucos, ele retoma as atividades diárias. A alimentação é controlada. E, se antes não conseguia fazer o que mais gosta, que é ir à igreja, agora já pode dar uma volta de bicicleta e até planeja a pelada de futebol. De lembrança da doença, a cicatriz no peito e o remédio diário, para o resto da vida, que tomará para evitar a rejeição. E só.