'100 receitas sem leite e derivados' é resultado de um esforço para trazer mais prazer e menos sofrimento à vida de João, seu filho de 11 anos. Aos 2 meses de vida, após um episódio de internação, ele teve a alergia à proteína do leite de vaca (APLV) identificada. “Amamentei o João até os 11 meses, mas eu tive que cortar todos os produtos lácteos da minha alimentação. A partir daí, tive que aprender a ler rótulos – o que no Brasil não é tarefa nada fácil – e a substituir todos os ingredientes”, explica Sabrina.
O livro é o primeiro do gênero no mercado editorial tupiniquim. Isso não é surpresa, infelizmente. Quando o menino nasceu, em 2003, a autora se deparou com uma imensa ausência de informações e orientações em português para os pais e os alérgicos.
A professora de literatura percebeu, então, que deveria pesquisar e também cozinhar de forma diferente. Não dava para comprar coisas prontas em supermercados. Comer fora de casa também se tornou mais complicado. “Conto nos dedos os restaurantes em que podemos ir”, relata.
Sem entregar os pontos e sem apostar na crença de que comida sem leite e manteiga não tem sabor, ela resolveu aproveitar a tradição da família, cujos integrantes sempre tiveram ligação com a cozinha e com receitas típicas alemãs. Combinando com elementos brasileiros e de outras culturas, a publicação ficou pronta. “Não sou chef, mas sou curiosa”, define.
O resultado são bolos, muffins, pães, biscoitos, sopas, molhos, bolinhos, saladas, massas, carnes, peixes e frutos do mar. E até guacamole, feijoada e bobó de camarão, entre as dezenas de receitas - do café da manhã, sempre um evento 'tenso' para o alérgico, até o jantar. E tudo sem leite, manteiga, margarina, creme de leite, queijo, requeijão, leite condensado e iogurte, por exemplo. Os óleos e as frutas se tornaram grandes aliados nas inovações para tornar as receitas adaptadas. “A alergia não deve significar o fim da alegria de se comer bem”, resume.
A ideia era também permitir que o filho alérgico não precisasse ser privado de eventos sociais e pudesse receber amigos em casa. “Queria que a vida do João fosse mais alegre e saborosa. Só que, ao longo dos anos, eu já não aguentava mais imprimir as receitas e entregar aos amigos. Em todas as festas, os pratos sempre fizeram muito sucesso. Na escola, os colegas sempre queriam um pedaço do lanche dele. Eu já tinha toda uma 'rede de consumidores'. Daí veio a ideia de que o livro poderia dar certo”, conta Sabrina, orgulhosa.
Livro de mãe
“Trata-se de um livro de mãe”, diz a autora no prefácio. O filho de Sabrina passou por várias situações de choque anafilático, com internações em centros de tratamento intensivo (CTIs), motivando também a integração da pesquisadora à campanha #põenorótulo. “O prêmio foi importante porque minha intenção é também dar dicas a outros pais e pessoas que sofrem com o problema, sem saber a causa”, alerta.No Brasil, a rotulagem dos alimentos não adota o padrão seguido em outros países, expondo os alérgicos a riscos enormes. “É um alerta de saúde pública, porque a alergia causa o edema de glote, que pode levar à morte. Até um simples vermífugo que dei para o meu filho uma vez causou uma reação extrema”, pondera. Ela lembra ainda que sabonetes, itens de material escolar como giz de cera, cremes hidratantes e outros produtos insuspeitos também podem trazer elementos do leite na composição.
A questão é séria e Sabrina faz uma crítica às dietas da moda, que retiram lactose e glúten do cardápio de pessoas que não têm nem intolerância, nem alergia. “Do ponto de vista culinário, isso banaliza a situação vivida pelo alérgico. Alguém que retirou a lactose da dieta não vai correr o risco de morte se tiver contato com a manteiga, por exemplo. Mas se um alérgico for a um restaurante dizendo que não pode comer produtos com leite e o cozinheiro achar que é para emagrecer, ele pode ser descuidado em relação ao processo”, desabafa a professora.
O simples contato com traços do leite e de suas proteínas pode causar reações extremas nas pessoas alérgicas. Entre as dicas de Sabrina para evitar as crises, estão:
- aprender a ler rótulos e não ter vergonha de ligar para o 0800 das empresas para confirmar os ingredientes;
- não comprar frios (presunto, mortadela) que foram cortados em máquinas no supermercado ou padaria, ou seja, onde também se cortam queijos.
- aprender a identificar que caseína, caseinato, alfalactoalbumina, betalactoglobulina, lactato, composto lácteo e leitelho também são indicativos da presença de leite em diversos produtos, como peru, salame, batata-palha, biscoitos, picolés de frutas, ou seja, itens de alimentação que a maioria das pessoas não associa à presença da proteína do leite de vaca.
- usar utensílios de vidro, que são mais fáceis de higienizar e não absorvem traços de alimentos
Alergia alimentar comum
Segundo a presidente da Sociedade Mineira de Pediatria (SMP), Raquel Pitchon dos Reis, as alergias podem ser reações a um ou mais elementos do alimento. No caso do leite de vaca, o mais comum é que o organismo não consiga metabolizar a caseína, a alfalactoalbumina e a betalactoglobulina. “Ao lado do ovo, é uma das alergias alimentares mais comuns. Estima-se que atinja 5% da população infantil”, informa a médica.A especialista esclarece que a maioria das alergias se desenvolve ao longo da infância. A pessoa nasce com a predisposição e ela pode se manifestar ou não, dependendo da sensibilização ao alimento. “Essa sensibilização pode acontecer de diversas formas – por meio da amamentação, da ingestão nas refeições, do contato pela pele e da inalação”, aponta Raquel.
E as reações variam também de pessoa para pessoas. Algumas crianças podem apresentar vermelhidão na pele e nas mucosas, outras têm desconfortos gastrointestinais, com vômitos, dores abdominais, diarreia e refluxo. Mas outras apresentam anafilaxia extrema, com sintomas que impactam também o sistema respiratório, com o fechamento da glote e o risco de asfixia, além de chiado, cansaço e dificuldade para respirar. “E há ainda o risco de sinais neurológicos, como perda de consciência e confusão mental”, acrescenta a pediatra.
A pediatra explica que, além da retirada total do contato com o leite de vaca, as consequências da alergia envolvem a necessidade de suplementação do cálcio e também as dificuldades socioambientais que acompanham qualquer dieta restritiva. Em encontros sociais, essas pessoas não podem acompanhar o que os outros estão ingerindo, por exemplo. “A dieta ocidental é muito baseada no leite e seus derivados. Ele é usado como emulsificante e para acompanhar outros produtos, para dar sabor e consistência. Esse tipo de limitação causa um baque na qualidade de vida das crianças e adolescentes. A questão emocional não pode nunca ser deixada de lado”, lembra.
Diagnóstico
A primeira questão para os pais, segundo Raquel, é o esclarecimento do diagnóstico. Há outras condições que podem ser confundidas com a alergia, como a intolerância, as dermatites com outras origens e o refluxo. “Há crianças que chegam ao consultório rotuladas como alérgicas e, após os testes, descobrimos que o problema é outro ou que o alimento causador da alergia não é o leite”, destaca.Caso o diagnóstico se confirme, é fundamental adotar a dieta isenta do leite, mas é importante também que a família esteja aberta ao que a pediatra chama de ‘educação para o tratamento’. “Os pais e a própria criança, dependendo da idade, devem ampliar seus conhecimentos sobre os rótulos e sobre a composição dos alimentos. A equipe da escola também deverá ser orientada, inclusive como proceder caso haja um episódio de reação. E é importante a mobilização para que a indústria e os governos determinem rótulos completos e que evitem episódios que podem levar até a morte de uma criança”, enumera Raquel Pitchon.
Além dos rótulos, outra dificuldade está nas situações de emergência. Em alguns casos específicos e após o treinamento adequado, é importante que a criança carregue consigo um dispositivo em forma de caneta, preparado para injetar adrenalina diante de uma anafilaxia. Mas o equipamento ainda é de difícil importação no Brasil.
O tratamento envolve, em primeiro momento, retirar completamente o alimento da dieta. “Na maioria dos casos, a alergia desaparece na medida em que a criança cresce. Mas algumas permanecem alérgicas. Para essas, acima dos 5 anos, existe a opção da imunoterapia oral”, explica a médica. Essa intervenção consiste em um processo de dessensibilização feito em ambiente hospitalar. O leite é ofertado em quantidade mínimas, de forma diluída, para induzir a tolerância do organismo. Como existe o risco de reações mesmo diante da exposição controlada, é necessário ter a estrutura completa para atender a criança. Essa possibilidade já existe inclusive em Belo Horizonte, mas apenas de forma particular.
Onde encontrar?
100 receitas sem leite e derivadosAutora: Sabrina Sedlmayer
Editora: Gutenberg
Páginas: 144
Preço sugerido: R$ 31,90
O livro está em sua segunda edição e é encontrado nas principais livrarias de todo o Brasil. Pode ser comprado também na internet: https://grupoautentica.com.br/gutenberg/livros/100-receitas-sem-leite-e-derivados/802
Campanha #põenorótulo
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No Brasil, entretanto, ainda há muito a avançar. Por isso, foi criada nas redes sociais a campanha "Põe no rótulo", por iniciativa de centenas de mães brasileiras. O Saúde Plena já abordou o assunto, confira aqui a matéria completa.
Só a página do Facebook já recebeu mais de 41 mil curtidas. Até este sábado, 17 de maio, celebra-se a Semana de Conscientização sobre a Alergia. Veja mais na página: www.facebook.com/poenorotulo