“Para mim a regra é simples: para a escola, tem que ser tênis de boa qualidade, confortável, que não aperte nem fique frouxo no pé. Para uma festinha eu permito que ela escolha mais pela aparência, para combinar com a roupinha, por exemplo. Minha filha tem sapatos de bico fino, baixos; e sapatinhos de salto. Tem um que é maior que 3 centímetros, sim. Eu medi, porque um amigo médico me alertou para isso. Mas ela só usa de vez em quando. Não acho que cause prejuízos. Para o menino, só tênis e chinelo, que preciso comprar sempre, porque ele cresce muito rápido e brinca muito de bola, estragando os calçados” Maria, mãe de Júlia, de 7 anos, e de Arthur, de 5
“Quando eu era criança, tinha um tênis, um sapato fechado de ir à missa e um chinelo. E só. Mas hoje são milhares de opções. Tem aquele da boneca, aquele do desenho, aquele da novela. É impossível isolar a criança disso. Mesmo se eu proibisse televisão e internet em casa, ela ia ver na escola” Juliana, mãe de Ana Paula, de 6 anos
Os depoimentos acima foram colhidos no Parque Guanabara, na orla da Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, entre mães que acompanhavam os filhos em um passeio de domingo. As três mulheres pediram para ter a identidade preservada - os nomes foram trocados. “Nunca tinha pensado nisso, nem sabia que existiam pesquisas sobre o assunto. Fiquei com vergonha. É a saúde da minha filha, né? Não podemos ir só pela aparência. Coloca minha fala aí, para ajudar outras mães”, disse Adriana.
Mas essas mães nem precisariam ter tanta vergonha assim. No Brasil, faltam informações sobre o impacto de determinados tipos de calçado no desenvolvimento infantil. Incomodada com essa situação e observando as opções disponíveis para a filha – hoje com 18 anos -, a fisioterapeuta Renata Augusto Martins desenvolveu uma pesquisa junto à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp).
Renata avaliou o uso de calçados por meninas na faixa etária de um a sete anos – período em que definimos nossa forma de andar, a marcha, para o resto da vida. A ideia inicial era compreender se eles prejudicam esse processo. “Durante esta fase do desenvolvimento motor e da consciência corporal, a marcha independente é o ponto alto. O tipo de calçado que acompanha a criança durante esse aprendizado pode influenciar o desempenho de um caminhar seguro”, explica a pesquisadora.
Um dado alarmante, segundo a fisioterapeuta, é que não existem pesquisas sobre a interferência dos sapatos no desenvolvimento infantil, apenas sobre as consequências do uso de salto entre as mulheres adultas. “Um salto superior a 3 cm já traz problemas com o uso contínuo. Não é que você não possa usar um salto alto, mas deve haver um rodízio. O sapato interfere no equilíbrio biomecânico humano, empurrando o peso do corpo para a parte da frente do pé, que tem ossos mais finos, menores e mais flexíveis; e deve ser usado de forma consciente. Entretanto, mesmo com isso bem estabelecido, são oferecidos sapatos de salto às crianças”, aponta a fisioterapeuta.
Além do salto, a falta de flexibilidade e a sola totalmente lisa tornam um sapato inadequado. A boa notícia é que o crescimento natural da criança seria capaz de superar os possíveis danos causados pelos calçados, desde que o uso seja descontinuado. O problema está justamente no hábito originado na infância. “A jovem mulher que se acostuma a usar um sapato inadequado poderá ter deformidades como as joanetes e o neuroma de Morton, uma lesão no nervo entre os dedos. Os dois problemas causam muita dor e têm tratamento difícil”, enumera a professora.
Outro grande risco de usar sapato com salto é a entorse de tornozelo (torção), que na sua forma mais grave afeta os ligamentos, podendo até exigir intervenção cirúrgica. “Quem tem o pé pequeno e usa salto alto, por exemplo, diminui a base de sustentação do corpo, facilitando a ocorrência de entorse”, aponta a fisioterapeuta, completando que este é justamente o caso das meninas.
Homens x Mulheres
Segundo a literatura médica, o número de mulheres com esses e outros problemas nos pés aparece na proporção de 9 para 1 em relação aos homens. Outro estudo, organizado pela designer norte-americana Linda O’Keefe, mostrou que 88% das mulheres usavam sapatos um número menor que o ideal – “as mulheres podem ‘enfiar’ uns chinelos, ‘calçar’ uns tênis ou ‘por’ uns sapatos mais confortáveis, mas ‘vestem-se’ de saltos altos”, destacou a autora.
Dada essa diferença, a pesquisa de Renata avançou para aspectos que vão além dos físicos: o estímulo ao consumismo infantil, principalmente entre as meninas. “Há uma enorme oferta de sapatos com saltinho de mais de 5 cm de altura, de plástico, com personagens que as crianças amam. Se já está comprovado que consumir causa sensações de prazer tanto nos adultos quanto nas crianças, no caso das meninas o problema vem acompanhado dos riscos da sensualização precoce”, pondera a pesquisadora. Os meninos, que têm menos opções de modelos, ganham em conforto e segurança.
Esse aspecto apareceu nos depoimentos de 12 mães ouvidas no estudo, abordadas em parques e praças com um formulário de 11 questões. “Muitas mães ficaram chocadas com as perguntas, disseram que nunca tinham pensando nisso. Citaram a moda que vem das novelas. Mesmo sabendo dos sapatos inadequados, mesmo vendo que a filha preferia tirar o sapato para brincar, as mães não conseguiam ignorá-los. Daí a relação direta entre o consumo e a criança”, define a fisioterapeuta. “As entrevistadas apontavam que um sapato com saltinho já pede uma roupinha mais arrumada, um batom, uma bolsinha combinando...Uma coisa puxa a outra. De repente, elas se davam conta do que estavam dizendo e se arrependiam. Era constrangedor”, relata a fisioterapeuta.
Uma das perguntas para as mães era: você já comprou um sapato que machucava seu pé? Todas responderam que sim. E o que fizeram com ele? Deram a uma outra pessoa ou usaram pouco. E no caso das filhas, o que faziam quando um sapato machucava? “Muitas comentaram que o pé cresce muito rápido e que seria difícil ficar comprando sapatos toda hora...”, revela Renata. No momento seguinte, as entrevistadas desabafavam: “nossa, eu falei isso?”. E caía por terra a fantasia do ‘olha que lindo, ela é uma mocinha, quer usar sapatinho igual ao da mamãe’. “Mas as lojas estão aí, vendendo figurinos iguais para mãe e filha, da cabeça aos pés”, pondera a fisioterapeuta.
Muita precocidade, pouca brincadeira
O médico e orientador da dissertação, Roberto Teixeira Mendes, Diretor do Departamento de Pediatria da Unicamp, acrescenta que boa parte do que se vivia na adolescência está sendo empurrado para a infância, caracterizando a erotização precoce. “A infância tem sofrido uma redução em sua duração e uma transformação em seu conteúdo. Isso compromete o período de latência, no qual as funções cognitivas superiores e os valores ético-morais começam a se constituir. No começo do estudo, há dez anos, esse aspecto ainda não era muito claro. Depois vimos que o fenômeno do uso dos calçados do tipo adulto por meninas coincide com análises mundiais sobre a infância contemporânea”, explica o médico. “As mães são reféns de uma demanda das filhas e do consumo. A adolescência expandida toma parte da infância e também da idade adulta, criando a adultescência, desmanchando limites”, completa o pediatra.
O uso de um tipo de calçado, desde as culturas mais antigas, sempre esteve associado ao pertencimento a uma classe ou grupo social. Foi assim com as torturas impostas às meninas chinesas e é assim com o tênis de marca. O sapato se torna também símbolo da vida adulta. “Se a criança passa direto à vida adulta, sem brincar, ela terá menor capacidade de reflexão e de interação com as complexas realidades do mundo adulto. Não há mais tempo para brincadeiras coletivas, para o desenvolvimento da tolerância, para a interação”, frisa Teixeira.”No caso da cultura chinesa, os dedos eram amarrados em direção à sola, para que o pé da menina ficasse bem pequeno. A criança era modificada desde a infância, pois não seria possível transformar o pé de uma mulher adulta. Parece um exagero, mas são fenômenos semelhantes: crianças usam sapatos que não servem para sua idade. E depois mulheres usam saltos de 15 cm. Modelos que caem em plena passarela, devido ao exagero do salto, e passam por constrangimentos”, conclui Renata Martins.
Falta de normas
O que se observa nos depoimentos colhidos em Belo Horizonte e na pesquisa de Renata Martins é que a postura é fomentada pelos próprios pais. “Soma-se a isso a ausência de normas específicas para os calçados infantis e as estratégias de marketing dos fabricantes”, explica a autora.
Renata buscou normas da ABNT para a confecção de calçados e encontrou regras mais ou menos estabelecidas para adultos no Brasil e no exterior. No caso das crianças, existem apenas alguns estudos de adequação. E mais: mesmo havendo selos de qualidade para calçados infantis, a pesquisadora fez contato com as sociedades que os conferiam e elas não souberam informar o parâmetro para atribuir os ‘certificados de qualidade’.
A indústria calçadista deve ficar atenta: “Se houver uma normatização rígida pelo menos para os sapatos de numeração infantil, até o 32, podemos amenizar o problema do acesso ao produto inadequado. Se falta controle dos pais e o responsável prefere comprar o calçado para não criar discussão, pelo menos haverá menos riscos à criança”, esclarece a pesquisadora.
Mamãe mandou escolher esse daqui!
Qual é, então, o sapato ideal para a criança? “O sapato ideal é o tênis, com uma pequena elevação na parte de trás e, tanto quanto possível, as crianças deveriam andar mais descalças”, decreta a fisioterapeuta. “O uso de calçados inadequados não contribui para o desenvolvimento motor e nem para a construção da feminilidade. Além disso, a antecipação de fases na infância pode ter consequências perversas”, afirma a pesquisadora.
É importante lembrar que, se o hábito for barrado ainda na infância, é possível reverter os danos causados por um sapato inadequado. O próprio corpo em desenvolvimento se encarrega disso. “Mas o mais difícil de mudar é essa mania de valorizar o status por meio da roupa – não basta estar com uma roupa bonitinha, tem que ser de marca, de preferência internacional. O lugar de passear agora é o shopping, porque é mais seguro e não chove. O sapato é mais um elemento nessas mudanças”, conclui Renata Martins.
E por falar em consumismo...
Alunos do Colégio Nossa Senhora das Dores, em Belo Horizonte, vivem nesta terça-feira (29) um dia sem sapatos. A ideia é dar aos estudantes uma experiência de igualdade, justiça e dignidade, lembrando que, por falta de condições mínimas, milhões de crianças no mundo vivem sem um calçado adequado, expondo os pés a lesões e doenças. E vivendo com menos autoestima.
A data 'Um dia sem sapatos' é lembrada no mundo todo, inspirada pelo movimento criado nos Estados Unidos por um fabricante do setor. Na campanha de Belo Horizonte, os alunos também levarão doações, que serão entregues à creche São João Batista; e participarão de campanhas para arrecadação, palestra sobre direitos dos animais e feiras de adoção.