Milhares de brasileiros sofrem com fissuras labiopalatais e não sabem que podem ter ajuda gratuita
Hospital da Baleia, de Belo Horizonte, é referência no tratamento das malformações e acaba de ganhar um concurso internacional de vídeos. Instituição quer ampliar o atendimento, para evitar que milhares de pessoas sofram décadas com um problema que tem solução
Letícia Orlandi
A pequena Vitória: com orientação e cirurgia indicada no tempo certo, a recuperação permite que a criança desenvolva seu potencial normalmenteUm problema que afeta mais de 230 mil brasileiros, interfere de forma determinante na autoestima e no desenvolvimento da criança e do adulto, mas é desconhecido. O desconhecimento leva ao susto, ao medo, ao choro e ao aperto no coração dos pais. Foi o caso de Luciano Ribeiro Almeida e Deaner Ribeiro de Souza, moradores de Salto da Divisa, município do Vale do Jequitinhonha a mais de 800 quilômetros de Belo Horizonte. Deaner não realizou nenhum ultrassom durante a gravidez e foi com susto que recebeu, logo após o parto, a notícia de que o pequeno Luiz Davi era portador de fissura labiopalatal. Luciano também ficou apreensivo, sem entender por que o filho não era 'perfeito'.
A história desse casal foi contada no vídeo vencedor do concurso "Uma vida, uma história", promovido pela organização norte-americana Smile Train, que financia, em 90 países, os custos da cirurgia de lábio e palato para pacientes que não têm condições de pagar pelo procedimento. Assista ao vídeo:
A família foi acolhida pelo Centro de Tratamento e Reabilitação de Fissuras Labiopalatais e Deformidades Craniofaciais (Centrare), localizado no Hospital da Baleia, em Belo Horizonte. Luiz David é hoje um pré-adolescente com vida normal e saudável. O grande desafio em relação ao tratamento das fissuras labiopalatais, no entanto, é fazer com que mães e pais, colocados diante desse diagnóstico ainda no útero ou apenas no nascimento, saibam que há tratamento disponível gratuitamente e também equipes multiprofissionais especializadas no acolhimento.
Mariana Cysne: 'milhares de crianças nascem com essa condição no Brasil. Precisamos ampliar a consciência sobre o tratamento'A iniciativa do concurso internacional de vídeos veio daí. De acordo com a psicóloga Lúcia Efigênia Nunes, coordenadora do Centrare, a ideia da Smile Train é ampliar o número de cirurgias realizadas no Brasil e em Minas Gerais. “Recebemos aqui pacientes com mais de 40 anos que nunca receberam tratamento. E nenhum brasileiro precisa viver com a fissura labiopalatina. Temos todas as condições para acolher e acompanhar, do nascimento até os 18 anos, todos que precisam”, explica Lúcia.
Depois da intervenção cirúrgica, que para correção dos lábios pode ser feita a partir dos 3 meses; e para correção do palato (céu da boca) a partir de 1 anos de idade, os pacientes são encaminhados para todos os procedimento odontológicos, em parceria com a Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
A fonoaudióloga Marisa Viana completa que, com o plano de tratamento completo, é possível fazer com que a criança desenvolva bem a fala e a audição. "A realização da cirurgia na época correta é fundamental para um bom desenvolvimento fonoaudiológico posterior", explica a profissional do Centro.
Além de prêmio em dinheiro, o concurso rendeu ao Centrare a visita do designer Jason Hulfish, conhecido nos Estados Unidos pelas participações em reality shows que promovem a transformação radical de casas de famílias de menor renda. No Brasil, os programas são transmitidos pelo Discovery Home&Health. Jason, que está renovando as paredes de um amplo corredor nas dependências do hospital, chegou há uma semana e deve terminar o painel na próxima segunda-feira (28). “A melhor coisa que você pode fazer quando é uma celebridade é ajudar as pessoas. Usar sua imagem para ajudar quem realmente precisa. Nossa ideia aqui não é nada mais do que chamar a atenção para a Smile Train e para o Hospital da Baleia, que tem esse trabalho fantástico no Brasil”, informou ao Saúde Plena o designer, que visita o país pela segunda vez.
Jason contou com apoio dos pequenos pacientes do Centrare na pintura do painelDurante a reportagem, Jason não parou um segundo. Mesmo sem saber falar português, ele interagiu com as crianças atendidas no centro, tirou fotos e continuou trabalhando na pintura com temas submarinos. “Quando eu não conheço o idioma, uso o sorriso. Sempre funciona”, brinca ele.
Peixes, tartarugas e plantas subaquáticas agora enfeitam a rampa que dá acesso ao Centrare. E isso também não veio ao acaso. “Na maioria das vezes, estamos lidando aqui com crianças que sentem medo e não entendem o que está acontecendo. É muito importante que o processo, desde o momento inicial do acolhimento, seja lúdico para elas”, acrescenta Lúcia Nunes.
Essa palavra - acolhimento - é repetida muitas vezes no Centrare. E é fácil entender o porquê.
Acolhimento especial: Luciene recebe cuidados de beleza enquanto Mauro segura o pequeno Miguel de 28 dias, que nasceu com fenda no palato (céu da boca)A dona de casa Luciene Dias Chaves de Oliveira deu à luz o terceiro filho, Miguel, há 28 dias, em Dores do Indaiá, a 260 km da capital mineira. Ele nasceu com fenda no palato, mas com os lábios sem alterações. O problema não pôde ser identificado no ultrassom e a primeira reação foi de susto. O pai, Mauro Lúcio Alves de Oliveira, também nunca tinha ouvido falar da fenda palatina. “Nós tivemos sorte, porque a secretaria de saúde do município nos indicou o Centrare. Chegando aqui, finalmente conseguimos as informações sobre o tratamento, a forma correta de alimentação e o acompanhamento do Miguel. Fiquei muito mais tranquila”, conta Luciene.
Inaugurado em novembro de 2004, o Centrare é reconhecido pelo Ministério da Saúde como um centro de referência de alta complexidade no tratamento de fissuras labiopalatais. Desde o início dos atendimentos, o hospital recebe pacientes de todos as regiões de Minas Gerais e também de outros estados. Com apoio das secretarias Municipal e Estadual de Saúde, o Centro tem hoje 3.506 pacientes cadastrados. Em 2013, foram realizadas 570 cirurgias, sendo 341 de fissura labiopalatina e 229 de cirurgia Buco-Maxilo-Facial.
Lúcia Nunes lembra que nem todos os pais têm a mesma sorte de Luciene e Mauro. “Estamos desenvolvendo parcerias com maternidades para capacitação das equipes. É comum que, diante da dificuldade de o bebê em sugar o peito da mãe ou o bico da mamadeira, o recém-nascido seja alimentado por sonda, sendo que não há necessidade disso. Com a orientação correta, é possível que a mãe encontre o bico de mamadeira correto e a criança possa ser alimentada adequadamente, de forma menos traumática e mais humanizada, carinhosa”, exemplifica a coordenadora.
Luciene e Mauro nunca tinham ouvido falar da fissura labiopalatal. "Antes de receber as orientações e saber que tem cura, fiquei angustiada", conta a dona de casa de Dores do Indaiá (MG)Outro vocábulo fácil de ouvir na instituição é parceria. Os pais do pequeno Miguel, por exemplo, participaram de uma ação promovida por um novo parceiro: cuidados pessoais com a equipe do maquiador e cabeleireiro Marcus Martinelli. “Esta é a primeira vez que integro, com toda a equipe, um trabalho social desse porte. Eu estava esperando que aparecesse uma instituição séria cujo trabalho tivesse a ver com o sorriso, com a beleza de se gostar, com a autoestima”, avaliou Martinelli.
A atriz carioca Mariana Cysne, conhecida por sua participação na versão brasileira da novela Rebelde, também participou do projeto, apostando que pode ajudar a sensibilizar os jovens. “O número de crianças com fenda palatina é enorme, mas o tratamento não chega a todas”, diz Mariana, que é biomédica e foi jurada do concurso internacional de vídeos.
Para entrar em contato com o Centrare, os telefones são: 31 3489-1644 / 1666. O e-mail é centrare@hospitaldabaleia.org.br. Para ser atendido no centro, o agendamento deve ser feito por meio das Unidades Básicas de Saúde do bairro ou município de origem.
O que é a fissura labiopalatal? Renato Lage, cirurgião plástico do Hospital da Baleia, explica que as fissuras labiopalatais são malformações congênitas exteriorizadas pela ruptura da integridade do lábio e/ou palato (céu da boca), acarretando, frequentemente, alterações na face, no rebordo alveolar, no arco dentário e na oclusão. Os problemas relacionados aos pacientes portadores de fissura de lábio e/ou palato são variados e envolvem a fala, a audição, a nutrição e aspectos psicológicos, geralmente.
Por isso, uma abordagem interdisciplinar, com pediatra, cirurgião plástico, otorrinolaringologista, fonoaudiólogo, ortodontista, odontopediatra, cirurgião buco-maxilo-facial, protesista, geneticista, enfermeiro, fisioterapeuta, assistente social e psicólogo é necessária para o tratamento destes pacientes.
Sobre a Smile Train No Brasil desde 1999, a Smile Train alcançou em 2014 a marca de um milhão de cirurgias em todo o mundo. No país, foram mais de 15 mil, segundo Mariane Goes, gerente da organização. A instituição treina médicos e profissionais de saúde, além de oferecer suporte contínuo – por meio de subsídios para equipamentos e repasses financeiros referentes às cirurgias realizadas - para que os pacientes encontrem tratamento de qualidade.
Além do transporte dos pacientes e médicos, a Smile Train ainda disponibiliza ajuda financeira para cobertura das despesas com comida e abrigo durante a estada. A organização estima que, no Brasil, 4 mil crianças nascem com fissuras todos os anos. Da esquerda para direita: Lúcia Nunes, coordenadora do Centrare; a atriz carioca Mariana Cysne, que foi jurada do concurso; o designer Jason Hulfish ao centro; e ao lado dele, o maquiador e cabeleireiro Marcus Martinelli e equipe Sobre o Hospital da Baleia O Hospital da Baleia, que completa 70 anos em julho de 2014, nasceu com foco no atendimento a crianças, mas hoje atende pessoas de todas as idades em 22 especialidades. Em 2013, foram mais de 142 mil atendimentos, sendo 27 mil infantis. São 300 médicos no corpo clínico e a instituição é certificada pelos Ministérios da Saúde e da Educação como Hospital de Ensino, contando com programas de residência e internato de medicina.
Hoje, uma importante fonte de mobilização de recursos é o Fundo da Infância e da Adolescência (FIA). Por meio dele, contribuintes físicos ou jurídicos (estes últimos tributados pelo lucro real) podem destinar de 1% (pessoa jurídica) a 6% (pessoa física) do imposto de renda a pagar a projetos previamente aprovados nos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Para 2014/2015, a instituição desenvolve projetos inteiramente financiados com recursos de renúncia fiscal do governo ao Imposto de Renda a pagar, incluindo o suporte à fissura lábiopalatal e a patologias neuromotoras. No site www.hospitaldabaleia.org.br e pelo telefone (31)3489-1589, é possível saber como doar.
Créditos do vídeo 'Surpresa e Superação': Produção – Rosângela Bicalho / Assistente de Gravação: Juliana Andrade / Editor: Matheus Pereira / Trilha sonora: Uakti / Apoio na recepção ao designer Jason Hulfish: fotógrafo Dante Borges, TOP 10 Eventos - Lanche legal, Marcus Martinelli, Rede de Amigos do Hospital da Baleia, Projeto Fé na Estrada e Jelter Duarte Filmagens
Recepção dos pacientes do Centrare mudou radicalmente com a nova pintura feita por Jason Hulfish