Saúde

Benzedeiros carregam em si a fé e as boas energias que passam para outras pessoas

Em Minas Gerais, há um estudo para transformar o ato de benzer em bem imaterial

Luciane Evans

Mário Braz, de 81 anos: no próximo dia 28, a Comunidade dos Arturos, em Contagem, na Grande BH, recebe o título de Patrimônio Imaterial de Minas Gerais
Sobre um banco de concreto, das 8h às 17h30, Mário Braz, de 81 anos, se senta à espera das cerca de 70 pessoas que o procuram todos os dias. Nos pés, um chinelo velho. Nas mãos, a fé e o mistério que não revela. “Tenho aqui os santos para todas as dores. Parece um molho de chaves, mas não é. É um segredo”, diz, com toda a simplicidade que lhe cabe. Seu Mário, como é conhecido, não se formou em medicina, mas sabe de cor as orações para cada mal do corpo e da alma. “Sou benzedeiro. É um dom que Deus nos dá.” Há 39 anos, ele benze quem o procura com as imagens de santo no chaveiro e a folha de arruda. Tem sabedoria de doutor. Não tem pressa. Sabe que cada palavra é divina e tem seu propósito. “Tem coisas, minha filha, que não são para os médicos. Só a fé pode curar.” Sobre o sucesso que faz, sorri e diz que a busca pela benzeção está voltando ao que já foi um dia. “Nunca vai acabar”, decreta.


Seu Mário tem razão. E está nas mãos dele o primeiro passo para a preservação da tradição em Minas Gerais. No próximo dia 28, a Comunidade dos Arturos, em Contagem, na Grande BH, recebe o título de Patrimônio Imaterial de Minas Gerais, registro dado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha). Seu Mário mora lá desde os 10 anos e é o benzedeiro mais conhecido da região, atraindo até mesmo gente de outros lugares do Brasil. Só não benze aos sábados e domingos, e nem à noite. “Se aparecer alguém, até benzo. Não se pode recusar. Mas não gosto. Fins de semana Deus fez para o descanso. Benzer à noite não é bom, não é uma linha boa. Pode ser perigoso”, alerta.

A comunidade dos Arturos, onde vive seu Mário, será a primeira a receber o título do Iepha. Até hoje, como bem imaterial, o instituto tem na lista o modo de fazer queijo da cidade do Serro, na Região Central, e a festa de Nossa Senhora da Chapada do Norte dos Homens de Preto, no Jequitinhonha. “De lugar, esse será o primeiro. Trata-se de um reconhecimento da expressão da comunidade como um todo. Lá, há culinária, Festa do Rosário e a benzeção, que é um ponto forte deles”, comenta o gerente de Patrimônio Imaterial do Iepha/MG, Luís Gustavo Molinaria Mundim.

Mas isso é só o começo. Desde o ano passado, o instituto está debruçado sobre o projeto de transformar o ato de benzer em Minas em patrimônio imaterial. “Fazíamos um inventário de proteção do Rio São Francisco quando identificamos várias benzedeiras e várias formas de benzer. Percebemos a necessidade de algo maior para o ofício”, diz Luís Gustavo.

A intenção, segundo ele, é fazer um mapeamento para conhecer quantas são as pessoas que praticam a benzeção, quem são elas e os elementos invocados para a prática. “Queremos conhecer também como isso está sendo passado. O registro é baseado em um patrimônio vivo, ou seja, o benzer tem que estar ocorrendo. Com o registro, vamos identificar quais os principais problemas que essas pessoas enfrentam, e manter projetos para que a prática se mantenha.”

DESAFIO Essa curiosidade que está nas mãos do Iepha é também a de muitos. Para se ter uma ideia, no dia 16 de março o Bem Viver publicou matéria sobre a inveja e suas consequências. Entre um dos entrevistados, a benzedeira Maria José Limaa comentou sobre a proteção por meio da benzeção. Logo após a reportagem ser publicada, dezenas de pessoas ligaram para a redação em busca do contato da benzedeira e muitos se queixaram de não achar mais o ofício em Belo Horizonte. Houve quem apostou que ele tinha chegado ao fim. Um dos leitores sugeriu: “O Estado de Minas podia procurar esses anjos para nós”.

O Bem Viver  topou o desafio e foi atrás das pessoas das mãos abençoadas. Elas não desapareceram. Fácil, realmente não é. Porém, os benzedeiros e benzedeiras estão vivos e sendo procurados cada vez mais. “Eles têm algo incrível. São reconhecidos nas comunidades onde vivem, acolhem quem os procura e não cobram pelo que fazem. São pessoas boas, a maioria é de baixa renda, e não quer status nem fama. É algo milenar. Há o efeito da contemporaneidade, claro. Mas essas pessoas não vão desaparecer”, aponta o filósofo e professor de ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Stephen Simim. Estudioso do assunto, ele dá o caminho para o reencontro com essa bênção: “Se você treinar o seu olhar, vai redescobrir essas mulheres e homens que têm o dom de benzer”.