E assim foi feito. No dia 1º de janeiro de 2012, após uma pesquisa na internet, Marcela se convenceu que o filho tinha tido uma reação alérgica. O réveillon daquele ano caiu em um final de semana e a mãe só conseguiria um médico na segunda-feira. Apreensiva, recebeu uma doação de uma fórmula alimentar de aminoácidos livres indicada para alergias severas. “Eu tinha que fazer alguma coisa por ele”, desabafa. A pedagoga conta que, três dias depois, o filho era outra criança. “Ele passou a dormir sem crises de apneia, sem roncar. Comecei a conhecer meu filho de outra forma. Troquei de gastropediatra e também de pediatra e fui acolhida por uma médica que abraçou a minha tentativa de buscar esse diagnóstico de alergia alimentar”, recorda-se.
Famosos aderem à campanha #poenorotulo; veja quem são
Naquele início de ano de 2012, Marcela descobriu que o filho tinha alergia às proteínas do leite e à soja. “A alergia dele não aparece nos exames específicos de sangue, chama-se alergia alimentar não mediada. O diagnóstico é pela clínica da criança. Suspendi o leite, todos os derivados e ele se tornou outro menino. Na época, descobrimos que ele estava, inclusive, desnutrido”, relata a mãe.
A partir daí, a família precisou passar por um processo de adaptação até que a saúde de Augusto se estabilizasse. “Foram tantas vivências... Depois de março de 2013, quando ele teve choque anafilático com edema de glote durante uma tentativa de reintrodução do leite de vaca na dieta, ficamos ainda mais apreensivos com possíveis ingestões acidentais. Mais que nunca, depois desse episódio, redobramos nossa atenção aos rótulos de industrializados”, afirma a pedagoga.
Marcela Bracarense é uma das 600 famílias engajadas na campanha #poenorotulo, que tem o objetivo de tornar obrigatória a rotulagem correta e completa dos alimentos. A ação na internet quer também chamar a atenção da população não alérgica para a importância dessa informação. Nesse contexto, é importante destacar que o alérgico alimentar pode morrer dependendo do grau de sensibilidade. Alergia alimentar deve ser levada a sério e os riscos de choque anafilático e fechamento de glote, entre outras reações graves, existem e fazem vítimas Brasil afora. Pesquisa de 2009 da Unidade de Alergia e Imunologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) mostra que 39,5% das reações alérgicas estão relacionadas a erros na leitura de rótulos dos produtos.
Alimentos podem ser venenos
A jornalista e integrante da coordenação da campanha #poenorotulo, Mariana Claudino, 40 anos, conhece bem a gravidade da situação. No ano passado, o filho dela, Mateus, de 4 anos, teve dois episódios de pré-choque anafilático. “Ele tem alergia gravíssima a leite de vaca e às proteínas do leite de vaca. À medida que ele foi tendo pequenos contatos com esses alimentos, a alergia foi ficando mais potente até chegar à parte respiratória”, explica.
Pipoca e giz de cera foram os responsáveis pelo susto da família em 2013. Sim, você não leu errado. “Eu perguntei para o pipoqueiro: você faz na manteiga ou no óleo? Ele me respondeu que era no óleo, só que não me contou que tinha queijo e compramos. O Mateus começou a inchar, ficou com dificuldade de respirar, foi grave, mas conseguimos controlar. Na outra ocasião ele brincava com os colegas da escola no pátio com giz de cera. Toda criança brinca de giz. Só que na composição desse giz tinha caseína, que é um das proteínas do leite a que ele é alérgico. Ele coçou o nariz, aspirou e foi correr no pátio. A ação é igual a de um veneno de cobra. Ele inchou, começou a tossir, a coordenação da escola me ligou desesperada, mas também superamos esse episódio”, narra.
Mariana diz que depois dos acontecimentos decidiu procurar um gastroenterologista que recomendou que o filho tivesse uma caneta de adrenalina na escola para usar em situações como a do giz. Ela explica que essa caneta não é vendida no Brasil, é muito cara e que, para importar mais barato, precisa pedir judicialmente. Marcela Bracarense também faz uso dessa estratégia. “Permaneço com um kit de adrenalina sempre comigo, caso seja necessário novamente”, revela.
Rotulagem no Brasil: um problema sem fim?
A alergia alimentar atinge 8% das crianças e entre 3% e 5% dos adultos. Pesquisa feita nos Estados Unidos entre os anos de 1997 e 2007 indica um aumento de 18% nos casos de alergia alimentar na faixa etária de 0 a 18 anos. A insistência na importância da rotulagem existe por que, nas indústrias, há uma prática comum de compartilhamento de maquinário para produção de vários produtos. Esse compartilhamento gera o que é denominado ‘traços de alérgenos’. Alérgeno é um tipo de alimento que pode desencadear reações alérgicas. Resquícios de proteínas que ficam nas máquinas mesmo após a higienização - e por menores que sejam -, podem fazer mal a alguém que apresente sensibilidade a elas.
Advogada com doutorado dedicado à rotulagem de alérgenos, Cecília Cury também está à frente da campanha #poenorotulo. Ela é mãe de Maria Carolina, de 4 anos, e Rafael, de 2, alérgico a leite de soja. Ela defende que um bom rótulo é quando a rotulagem de alérgenos é destacada. Ela cita como bom exemplo o “não contém glúten”, mensagem clara, padronizada e direta que já aparece em destaque nas embalagens.
A alternativa que resta no Brasil para as famílias que têm crianças diagnosticadas com alergia alimentar não é de conhecimento amplo - e isso agrava ainda mais a situação -, mas o que tem sido a solução para muitos pais e mães é entrar em contato o Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) da empresa. “Qualquer mãe que procura minha ajuda, eu digo: não confie nos rótulos, tem que ligar no SAC”, alerta Cury. A advogada diz que não é sempre que essa mãe será bem atendida e tipifica os níveis de qualidade desse atendimento: “os bem preparados são aqueles que checam a informação com o responsável técnico do produto. Nesses casos, a resposta pode levar até uma semana. Outra categoria é daqueles que dizem não prestar aconselhamento nutricional ou dietético; e o terceiro é o que afirma que não tem a informação e que é para perguntar ao médico – como se o profissional da saúde fosse conhecer a linha de produção de um industrializado”, salienta a advogada. É importante destacar ainda que, se houver mudança no processo produtivo, um produto que não tinha um alérgeno específico, pode passar a ter. Conclusão: é uma dificuldade sem fim. Pergunta: não é mais fácil um rótulo claro?
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Cury contextualiza que a rotulagem de alérgenos avançou muito nos países desenvolvidos nos últimos dez anos e que o Brasil está praticamente no mesmo barco que a maioria dos outros países da América Latina, ou seja, parado. Segundo ela, Chile e Argentina já deram alguns passos. A especialista reconhece que não é uma tarefa simples e cita algumas dificuldades. “O primeiro é o fornecedor da matéria-prima repassar informações confiáveis da linha de produção dele. Agora, vamos supor que uma empresa troque de fornecedor, imagina o impacto disso na rotulagem? Trilhões de rolos impressos. Uma solução simples para isso é os fornecedores se comprometerem a manter fora da linha de produção os alérgenos”, assinala. Outro problema está nas lavouras que funcionam em sistema de rotatividade. “As empresas alegam que não conseguem controlar eventual contato com a soja - em rotatividade com o milho, por exemplo, que é muito usado em biscoitos”. Para ela, a solução é investir em pesquisa. “A contaminação do solo é relevante? Temos que conseguir responder a essa pergunta”, propõe.
A situação é tão complicada que toda essa mobilização pode estimular empresas, por exemplo, a rotular tudo. “É o que chamamos de excesso de rotulagem. A empresa informa que tem tudo e traço de tudo e resolve o problema dela”, observa. Agora, você consegue conceber como é a vida de uma criança com alergia às proteínas de leite é restritiva? Imagine essas famílias – que praticamente produzem toda a alimentação desses meninos e meninas em casa – sem poder consumir sequer algum alimento industrializado? Isso é ético? “A matéria-prima do que a gente cozinha é industrializada”, observa a pedagoga Marcela Bracarense, que exemplifica: “temos histórias de crianças que começaram a reagir com arroz feito em casa. Descobriu-se que o arroz era fabricado com ovo. Será que o produto estava bem rotulado?”
Para se ter uma ideia da rotina de uma família que tem uma pessoa alérgica, Marcela conta que, como o pai de Augusto continuou consumindo leite e laticínios, na casa deles há utensílios para o filho e utensílios para a casa. Até a bucha é diferente. “Dedico-me pessoalmente à cozinha e à higiene dos utensílios. Demorei mais de um ano para descobrir que alguns episódios de alergia do Augusto, mesmo depois do diagnóstico, eram causados por traços dentro da minha própria casa”, narra.
Para ela, enquanto a informação de produtos industrializados não melhorar, muitas famílias vão continuar vivendo a angústia de oferecer um alimento inadequado às crianças alérgicas. E essa garotada vai continuar tendo reações que, apesar de variar em gravidade, podem culminar em morte. Mas não precisa pensar também que esses meninos e meninas passam vontade de tudo. “Temos muita qualidade de vida, o Augusto desfruta de momentos felizes em festas. Tem aniversário de colega em pizzaria? Eu faço, levo a dele e ele come junto com todo mundo. No Natal, fiz panetone especialmente para ele que comeu junto com toda a família”, conta. Até brigadeiro para festa de aniversário é possível adaptar.
“Hoje, temos a certeza que desfrutamos de uma alimentação até mais saudável do que teríamos se não houvesse o caso de alergia na família. Aprendemos a utilizar mais os alimentos frescos e orgânicos, a ler rótulos não apenas para identificar alérgenos, mas para consumir industrializados de marcas que se preocupam com quantidade de sódio, de açúcar”, revela a mãe de Augusto. A pedagoga diz ainda que, em função de rotulagem precária adotada no Brasil, a família tem optado por consumir importados pela garantia de informação correta dos rótulos, conforme a legislação de alérgenos de outros países. “Certamente, essa necessidade de recorrer a esses produtos diferenciados pesa muito no orçamento doméstico e seria desnecessária se a rotulagem dos produtos nacionais fossem mais seguros”, conclui.
ENTREVISTA
Cláudio Oliveira Ianni é alergista e presidente da Sociedade Brasileira de Alergia e Imunopatologia - Regional Minas Gerais.
Quais são as alergias mais comuns?
Na teoria, qualquer alimento pode provocar alergia. Existe alergia até a frutas e verduras, mas a mais comum é a alergia ao leite de vaca e às suas proteínas. O leite junto com a soja, ovo, cereais com glúten, peixe, crustáceos, amendoim e oleaginosas correspondem a 90% das causas de alergia.
O que faz uma pessoa ser alérgica e outra não?
É hereditário. A pessoa não herda a alergia, herda a capacidade genética de ser alérgico. É como o câncer de mama, uma mulher tem chance maior do que a população geral de desenvolver a doença se tem casos registrados na família. Se uma criança tem um parente com alergia é mais esperado que ela tenha também.
A alergia pode acabar?
Na alergia alimentar – principalmente ao leite e ao ovo – a tendência é de a pessoa adquirir tolerância. Já a alergia a frutos do mar e oleaginozas, não é que seja impossível adquirir tolerância, mas a pessoa tem chance maior de ter para o resto da vida. Daí a importância de um diagnóstico correto e cedo. O principal é retirar o mais precocemente possível o alimento causador da alergia do cardápio da criança. Por essa razão, a rotulagem correta dos alimentos é importantíssima. Quanto mais a criança tem contato com o alimento que provoca a alergia, mais o quadro se agrava.
Quais os principais sintomas de uma alergia?
Diarreia, empolação (dermatite e urticária), cólica, sangramento nas fezes, pele avermelhada, rouquidão, tosse, asma ou rinite. Repito: insistir no alimento causador da alergia pode agravar o quadro e gerar o risco de fechamento da glote, asfixia ou choque anafilático. Um erro comum de pacientes, principalmente os adultos, é tomar um antialérgico para comer o que não se deve. Se o sintoma for simples, como uma urticária, o medicamento segura. Agora, um choque anafilático não.
Como é feito o diagnóstico?
A maior parte dos diagnósticos é clínico. A pessoa come um alimento e nota que alguma coisa deu errada. Ou seja, a suspeita é clínica. Exames de sangue específicos ou teste cutâneo podem ajudar a determinar a alergia.
Alergia alimentar em criança é mais grave que em adultos?
Poderíamos até dizer que é mais grave porque é mais frequente. A gravidade na criança seria maior por que enquanto o alimento causador da alergia não é descoberto e retirado, o quadro vai piorando até apresentar um sintoma grave e incorrer em risco de morte.