Saúde

Mãe é chamada de vagabunda por amamentar o filho em público. E você, se sente incomodado(a) com esse direito básico?

Toda criança tem direito de ser alimentada pela mãe em qualquer lugar, a qualquer hora, mas em alguns casos o preconceito tenta se impor. Uma das mães ouvidas pela reportagem foi assediada sexualmente quando amamentava em um ônibus. Veja os depoimentos e também uma visão jurídica e nutricional sobre a questão

Letícia Orlandi

Você está no shopping e sente fome. Precisa comer alguma coisa. O que acha de ser conduzido ao banheiro para fazer seu lanche? Estranho, né? E será que o banheiro é o local ideal para que um bebê seja alimentado? Pois saiba que este é o constrangimento que algumas mães e bebês têm que passar no momento da amamentação. O motivo seria o incômodo causado a outros frequentadores de locais públicos.


Veja na galeria o depoimento de sete mães brasileiras

Priscila Bueno, de 23 anos, repreendida por amamentar Julieta no espaço expositivo do MIS: constrangimento gerou protestos na internet e um 'mamaço' no museu paulista
O caso de repercussão nacional mais recente aconteceu no Museu da Imagem e do Som (MIS), em São Paulo. A modelo Priscila Navarro Bueno, 23 anos, visitava uma exposição com a filha de sete meses e foi convidada por um monitor a se retirar para amamentar em um local 'mais reservado'. Ela recusou o convite e continuou a visita.

Mas, antes que ela terminasse, um segurança e outro monitor da exposição a abordaram novamente. Os argumentos eram que “ela não estava amamentando mais, a criança estava só dormindo no peito” e “não era permitido amamentar no Museu”. Priscila acabou decidindo se retirar, mesmo sem terminar de ver a exposição, mas fez um desabafo nas redes sociais.

A sequência de acontecimentos após o desabafo:
-um pedido de desculpas do MIS, informando que os funcionários seriam mais bem orientados e que as mães que visitam o local têm total liberdade de amamentar seus filhos no espaço expositivo;
-a organização, pelas redes sociais, de um 'mamaço', ou seja, uma grande reunião de mães no espaço do museu, dispostas a amamentar seus filhos sem serem importunadas. O Museu reiterou o pedido de desculpas e chegou a incluir o evento, de iniciativa do grupo Matrice, em sua programação, no último dia 16 de fevereiro.


Tenho nojo só de lembrar dessa situação. O corpo da mulher não foi feito para o prazer do homem, não suporto mais essa sexualização de tudo que é feminino. Meu seio estava alimentando a minha filha, e nós estávamos partilhando de um momento incrível de amor. É absurdo que um homem invada e desrespeite assim o nosso corpo, o nosso momento. Ana Fonseca, 25 anos

A polêmica não está restrita ao MIS, é claro. Na capital paulista, um caso anterior já havia motivado um projeto de lei, ainda em tramitação na Câmara Municipal, que prevê multa aos estabelecimentos que proibirem ou provocarem constrangimento às mães durante a amamentação.

Não está restrita a São Paulo, também. Em Belo Horizonte, a retirada de uma foto do Facebook sob a justificativa de “conteúdo impróprio” motivou a doula (de forma simplificada, acompanhante de parto) e fotógrafa Kalu Brum a organizar um mamaço no Parque Municipal.

E sim, quase todos os dias recebo olhares discriminatórios. “Não está vendo que aqui não é lugar disso?”, dizem. Mas é claro que é! Meu filho quer ser alimentado, ele será. O pequenino nem sabe se está neste ou naquele lugar; e meu direito de ir e vir não deixou de existir porque me tornei mãe. Tuane Almeida, 24 anos

Heather Vaughan, de 29 anos, estava visitando o Museu Nacional da Marinha na cidade de Portsmouth e se dirigiu a uma área reservada a crianças para amamentar a filha Lydia. Ainda assim, foi importunada pelo segurança
Mas, ao contrário do que possa parecer, também não está restrita ao Brasil. No último dia 13 de março, Heather Vaughan, de 29 anos, estava visitando o Museu Nacional da Marinha na cidade de Portsmouth, no Reino Unido, e se dirigiu a uma área reservada a crianças para amamentar a filha de nove semanas, Lydia. Ainda assim, foi importunada pelo segurança, em tom semelhante ao caso do MIS: “Nós não permitimos isso aqui”, disse o funcionário. O desfecho também foi semelhante – a mãe acabou se retirando com o marido e seu outro filho; a instituição pediu desculpas e vários protestos se seguiram nas redes sociais.

O caso mais emblemático, no entanto, acabou sendo o de outra mãe inglesa. Ela teve uma foto (tirada sem seu consentimento) postada em redes sociais com a legenda: “tudo bem que está um dia de sol, mas não há necessidade de você deixar seu bebê se alimentar no seu mamilo em plena cidade. Vagabunda”. Emily Slough, de 27 anos, estava fazendo compras naquele dia e parou para descansar um pouco nos degraus de uma loja, enquanto fazia um lanche. Matilda, de oito meses, também pode matar a fome.

A foto foi postada em uma página do Facebook que reúne imagens variadas do cotidiano urbano, sem identificação dos autores, algumas com conteúdo ofensivo. A jovem disse que, após o choque inicial, pensou em simplesmente ignorar o fato e seguir sua vida, mas depois enxergou naquilo uma possibilidade de conscientização.

Resultado? Uma amamentação em massa, ou seja, o que no Brasil chamamos de mamaço, na cidade de Staffordshire. “As mães que estão fazendo o melhor pelos seus filhos devem ser confinadas a um banheiro? Você gostaria de comer em um banheiro, com uma colcha tampando seu rosto? Gostaria de agradecer a quem tirou essa foto, porque se tornou um símbolo contra essa disciminação”, disse Emily aos jornais birtânicos. E ela não está desamparada. O ‘Ato da Igualdade’ de 2010, estabelece que é ilegal discriminar, assediar ou tratar de modo desfavorável as mães que estejam amamentando na Inglaterra, no País de Gales e na Escócia.

Tenho amigas que precisaram amamentar no banheiro. Imagina? Comer no banheiro! E tem mais: mesmo nos estabelecimentos, como os shoppings, que dizem ter um ‘local apropriado’ para isso, você chega lá e tem apenas uma cadeira, num cantinho. Estefânia Zica, 36 anos

Emily Slough, de 27 anos, estava fazendo compras e parou por alguns instantes para amamentar Matilda. Uma foto dela circulou pelas redes sociais com a legenda de 'vagabunda'. Clique para ampliar
“O problema é a hipocrisia da sociedade brasileira.
Amamentação não pode, mas exposição do corpo feminino na televisão, por exemplo, pode”, diz, sem hesitar, o advogado Faiçal Assrauy. “Ainda que alguém possa alegar um conflito de direitos, sob a alegação de um suposto atentado ao pudor ou algo que o valha, o direito que a criança tem de ser alimentada se sobrepõe. É um direito da criança e uma obrigação da mãe. E ainda tem gente querendo restringir?”, pergunta o jurista.

Assrauy pondera que, em alguns casos, a ideia de aplicar uma punição, pode ser útil e necessário. “Se um direito tão básico não é respeitado - e isso vale para o mundo todo, não adianta pensar que é só no Brasil - há que se pensar em uma punição. Ela torna-se uma garantia e uma tranquilidade pra as mães”, define.

O advogado conta que acompanhou o caso de uma mãe constrangida em um shopping da capital mineira. Ofendida, ela buscou a justiça. A empresa optou por pedir desculpas e fazer um acordo amigável. “Em casos assim, não recomendo que a mãe fique calada. Ela deve procurar o juizado de menores e a delegacia mais próxima. Se possível, além de registrar a ocorrência, deve procurar um advogado e acionar o estabelecimento por danos morais. Embora a jurisprudência quanto a essa questão não seja unânime, a maioria dos juízes respeita e incentiva o direito à amamentação”, esclarece.

Isso foi muito ruim para o processo de amamentação. Minha filha parou de mamar aos 4 meses. Não queria mais o peito. Isso é muito comum quando se introduz a mamadeira. Quando meu segundo filho nasceu, estava decidida a não cometer o mesmo erro. Luciana Costa, 35 anos

'Participei do mamaço porque a criança tem o direito de ser alimentada em qualquer lugar e fiquei chocada com a postura do museu', diz Marina, mãe de Cecília, de 5 meses. Veja mais depoimentos na galeria de fotos
Para ele, o Brasil ainda está muito atrasado em várias questões referentes à naturalidade das opções humanas. “Aqui, a amamentação em público é alvo de críticas e as mães se sentem desamparadas. A união de pessoas do mesmo sexo ainda permanece em discussão. No Canadá, por exemplo, a briga já é pelo direito de as mulheres andarem sem camisa na rua. E isso é uma opção de cada um, deve ser respeitada. Mas a sociedade, e por consequência a legislação, ainda estão bem longe desse respeito no Brasil”, aponta Assrauy.

"Este é um dos primeiro direitos que a criança tem", reforça Ludmila Lima, nutricionista da associação de combate à desnutrição infantil Dona de Leite. “Do ponto de vista nutricional, não há necessidade de um lugar específico para a amamentação. Mas há, sim, a necessidade de oferecê-lo quando a criança sentir fome, seja lá em qual local a mãe estiver. Não há como prever a necessidade de um recém-nascido. O choro não aceita um ‘não’”, defende. “O leite materno é um alimento completo do ponto de vista de todos os nutrientes e anticorpos que a criança precisa nos primeiros meses de vida. A amamentação exclusiva no peito é recomendada internacionalmente até os seis meses. Quem se incomoda com isso deve estar mal informado”, afirma a nutricionista.

Ludmila explica que a complementação é dispensada até os 6 meses de idade, e que a partir daí a criança pode receber outros alimentos. Mas, se possível, o ideal é amamentar até os dois anos. “A amamentação é cercada de mitos em relação ao local em que ela ‘pode’ ou ‘não pode’ ser feita, à ingestão de alimentos e medicamentos, mas é importante salientar que a avaliação deve ser individual. Cada organismo reage de uma maneira. O que vale para todas as mães é: não existe leite fraco e é importante tomar muita água. De resto, há muitas dicas erradas por aí, de pessoas que não têm o conhecimento necessário. Em caso de dúvidam, a mãe deve procurar orientação especializada”, pondera a nutricionista.

Acredito que essa forma de pensar restringe as mulheres na amamentação e no parto. As pessoas não conseguem ver os processos naturais, sempre direcionam sua visão para a sexualidade exacerbada. Paola Ribeiro, 31 anos

'Do ponto de vista nutricional, não há necessidade de um lugar específico para a amamentação. Mas há, sim, a necessidade de oferecê-lo quando a criança sentir fome, seja lá em qual local a mãe estiver', diz a nutricionista Ludmila Lima
Para ela, há um longo caminho a ser percorrido para vencer o preconceito. “Nossa sociedade é machista e ainda acha que pode determinar os momentos em que a mulher deve se expor ou não. A criança não tem senso de horário ou local, ela tem fome. A amamentação é um ato natural do ser humano, e a comunidade deve se acostumar com a presença feminina em todos os lugares, inclusive quando ela está amamentando. Foi-se o tempo em que a mãe deveria ficar confinada. Hoje ela leva os filhos para onde vai, inclusive suas atividades de lazer”, defende Ludmila.

Se você está grávida, com dificuldades na amamentação ou ainda deseja doar leite, procure a Maternidade Odete Valadares. O Banco de Leite funciona, diariamente, das 7h às 19h e o atendimento externo é feito de segunda a sexta-feira, das 8h à 17h. A equipe oferece atendimento das intercorrências do aleitamento materno (ingurgitamento, traumas mamilares, treinamento mãe/filho, relactação, lactação adotiva, mastite puerperal), atendimento psicológico, curso mensal gratuito para o casal grávido e visita domiciliar para coleta de leite materno, entre outros serviços.

Banco de Leite da Maternidade Odete Valadares:
Av. do Contorno, 9494, Prado, Belo Horizonte
Telefone: (31) 3337-5678 e 3298-6008
Linhas de ônibus: SC01 A, SC01 B, SC03 A, SC03 B, 9210

Se você quiser saber mais sobre o trabalho da organização não governamental Associação Dona de Leite, visite o site www.donadeleite.org.br e a página no Facebook: www.facebook.com/projetodonadeleite