“Minha primeira depressão foi durante o quarto ano de medicina. Além dela, tenho transtorno bipolar. Meu quadro depressivo já foi tão grave que pensaram no tratamento com eletrochoque. O momento mais crítico foi quando fiquei afastada do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Já pensei em me matar, mas sempre me cuidei. Tive câncer de intestino também. Hoje, estou curada. Tenho terapeuta, tomo meus remédios e, quando não estou bem, cancelo todos os meus pacientes.”
O depoimento é de uma das psiquiatras mais reconhecidas e respeitadas no meio médico do país. Doutora em medicina pela Universidade de São Paulo e psiquiatra da Associação Brasileira de Psiquiatria, Alexandrina Meleiro não culpa a profissão pelos seus transtornos, mas reconhece que a carreira é um gatilho para a saúde mental dos profissionais de saúde. É dela um dos poucos estudos brasileiros sobre o suicídio entre os médicos. Sua tese de doutorado, defendida em 1998, mostrou que o índice de autoextermínio entre a classe é cinco vezes maior do que na população geral. Dezesseis anos depois, segundo ela, nada mudou.
A mais recente pesquisa feita no país, em 2009, reforça o que Alexandrina defendeu na década de 1990. Levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) revelou que a população médica brasileira tem taxas de suicídio e tentativas superiores à da população geral. Além disso, o estudo mostrou um predomínio de mortes entre médicos homens na faixa de 70 a 90 anos, no período de 2000 a 2009. Entre as mulheres médicas, os óbitos preponderaram na faixa de 40 a 60 anos no mesmo período. “Hoje, nós, psiquiatras, trazemos esse problema à tona. Nossa preocupação sobre isso tem aumentado”, afirma a especialista, que diz não se tratar de um alarde, mas de uma estratégia para convencer os médicos a buscarem socorro. Por isso, foi realizada no fim de semana passado a I Jornada Brasileira de Saúde Mental dos Médicos, em Nova Lima, na Grande Belo Horizonte. “Existe a resistência por parte da população em aceitar que as pessoas nas quais confia sua saúde podem vir a ter doenças mentais”, afirma Alexandrina.
Neste segundo e último dia da série “O peso do jaleco”, o Estado de Minas aborda os transtornos mentais em médicos formados. Em 2004, trabalho feito na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) mostrou que entre homens e mulheres de branco ambos apresentam taxas similares de uso nocivo e dependência de substâncias psicotrópicas em relação à população geral. A incidência varia entre 8% e 14%. O estudo coletou dados de 198 médicos em tratamento ambulatorial por uso nocivo e dependência química.
A frequência de uso nocivo e dependência de opioides (anestésicos derivados da morfina) e benzodiazepínicos (conhecidos como tranquilizantes de tarja preta) é aproximadamente cinco vezes maior entre os médicos que na população geral. “Existe um pacto de silêncio. Não se comenta isso na medicina, o que é ruim. Se na sua família há um médico que abusa do álcool ou de remédios, os familiares não se preocupam, porque pensam que, por ele ser da classe médica, sabe se cuidar”, comenta o psiquiatra, professor da Faculdades de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e da USP José Raimundo Lippi. De acordo com ele, quando o médico chega a pedir ajuda, “está em estado deplorável. Ele já caminha para a angústia, não dorme direito e tem dores”. Ele se lembra de um colega que morreu de dengue recentemente. “Ele foi diagnosticado com a doença, mas não tomou providências com antecedência”, conta, frisando ser esse um exemplo da sensação de imortalidade desses profissionais.
SINAIS
De acordo com o psiquiatra, há alguns sinais que são detectáveis para saber se um médico está ou não bem. “Os próprios colegas podem reparar isso. Atraso frequente no trabalho, faltas não justificadas, ressacas constantes e redução no desempenho no trabalho são alguns deles”, enumera, alertando os familiares para que fiquem atentos também. “Quem precisa de ajuda geralmente piora a qualidade de vida em família. Começam a aparecer sintomas físicos, a pessoa fica mais solitária e desaparece do hospital ou do consultório sem que ninguém saiba”, acrescenta.
Especialistas mais vulneráveis
Os profissionais médicos mais vulneráveis aos transtornos são os especialistas em anestesia, urgência e emergência e psiquiatria. “São profissionais que têm acesso mais fácil às drogas, lidam por muitas horas com a morte e com as doenças mentais”, comenta José Raimundo Lippi. Segundo o presidente da Sociedade de Anestesiologia de Minas Gerais, Jaci Custódio, hoje em dia o médico vive em constante estresse, por isso o “ fundo do poço”. Ele diz, ainda, que o quadro é agravado, por exemplo, no caso dos anestesistas, pelo baixo salário. “Em uma cirurgia de hérnia, o trabalhador ganha R$ 260 para duas horas de atuação. Além disso, temos um doente em nossas mãos e não temos o direito de errar. Somos piloto de avião. As pessoas entregam suas vidas para nós e estamos trabalhando em locais sem segurança alguma”, denuncia.
Custódio é anestesista e diz que sempre faz uma autoanálise. “Não posso me permitir ter depressão. Não aceito. Quando vejo algum sintoma, tento ficar bem. O álcool faz parte da vida nos fins de semana. Mas não tenho dependência. Buscar ajuda de um psiquiatra é uma ida sem volta”, critica. José Raimundo Lippi afirma que a depressão é a doença mental mais comum entre os médicos, inclusive entre os psiquiatras. “Todos são suscetíveis a patologias de ordem mental, principalmente aqueles que não se cuidam. É importante lembrar que o remédio cuida do sintoma, mas as causas precisam de atenção na psicoterapia. O médico pode ser um bom ‘receitador’, mas se não souber o que o cliente tem, não vai resolver o problema.” Por isso, para ele, a automedicação não deve ser vista como solução.
Para Alexandrina Meleiro, apesar de o autoextermínio envolver questões socioculturais, genéticas, psicodinâmicas, filosóficas, existenciais e ambientais, a doença mental é um fator de vulnerabilidade na quase totalidade dos casos. “O diagnóstico precoce e o tratamento correto da depressão (patologia mais encontrada nos suicídios) são uma das maneiras mais eficazes de prevenir o autoextermínio. O mesmo serve para a dependência de álcool e outras drogas.” Ela reconhece a resistência dos médicos em procurar ajuda psiquiátrica temendo serem estigmatizados. “Eles tentam primeiro automedicar-se ou fazer uma consulta informal com algum colega. Só procuram ajuda adequada quando a situação se torna insustentável.”
VIOLÊNCIA
De acordo com o diretor de comunicação do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais e médico da família André Christiano, muitas são as queixas da categoria. “Além da alta carga de trabalho e baixa remuneração, há, ainda, muitos profissionais sendo vítimas da violência de pacientes. Agressões físicas e verbais”, diz. Christiano acrescenta que são muitos os médicos que usam os medicamentos como forma de camuflar o problema. “Isso nos preocupa bastante. Tem havido muito afastamento do emprego por causa de saúde. No ano passado, soubemos que os médicos eram os que mais se afastaram do trabalho na capital, passando até mesmo os professores”, compara.
DROGAS ENTRE MÉDICOS
Principais substâncias mais consumidas entre 198 médicos. Os dados são de um estudo feito em 2004, na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), intitulado Perfil clínico e demográfico de médicos com dependência química.
Álcool
» Dependência: 97 casos – 48,8%
» Uso nocivo: 47 casos – 23,7%
» Total: 144 casos – 72,7%
Cocaína
» Dependência: 42 casos – 21,2%
» Uso nocivo: 21 casos – 10, 2%
» Total: 63 casos – 31,8%
Benzodiazepínicos (BZD)
» Dependência: 31 casos – 15,6%
» Uso nocivo: 25 casos – 12,6%
» Total: 56 casos – 28,2%
Opiáceos (morfina)
» Dependência: 45 casos – 22,7%
» Uso nocivo: 8 casos – 4%
» Total: 53 casos – 26,7%
O depoimento é de uma das psiquiatras mais reconhecidas e respeitadas no meio médico do país. Doutora em medicina pela Universidade de São Paulo e psiquiatra da Associação Brasileira de Psiquiatria, Alexandrina Meleiro não culpa a profissão pelos seus transtornos, mas reconhece que a carreira é um gatilho para a saúde mental dos profissionais de saúde. É dela um dos poucos estudos brasileiros sobre o suicídio entre os médicos. Sua tese de doutorado, defendida em 1998, mostrou que o índice de autoextermínio entre a classe é cinco vezes maior do que na população geral. Dezesseis anos depois, segundo ela, nada mudou.
A mais recente pesquisa feita no país, em 2009, reforça o que Alexandrina defendeu na década de 1990. Levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) revelou que a população médica brasileira tem taxas de suicídio e tentativas superiores à da população geral. Além disso, o estudo mostrou um predomínio de mortes entre médicos homens na faixa de 70 a 90 anos, no período de 2000 a 2009. Entre as mulheres médicas, os óbitos preponderaram na faixa de 40 a 60 anos no mesmo período. “Hoje, nós, psiquiatras, trazemos esse problema à tona. Nossa preocupação sobre isso tem aumentado”, afirma a especialista, que diz não se tratar de um alarde, mas de uma estratégia para convencer os médicos a buscarem socorro. Por isso, foi realizada no fim de semana passado a I Jornada Brasileira de Saúde Mental dos Médicos, em Nova Lima, na Grande Belo Horizonte. “Existe a resistência por parte da população em aceitar que as pessoas nas quais confia sua saúde podem vir a ter doenças mentais”, afirma Alexandrina.
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A frequência de uso nocivo e dependência de opioides (anestésicos derivados da morfina) e benzodiazepínicos (conhecidos como tranquilizantes de tarja preta) é aproximadamente cinco vezes maior entre os médicos que na população geral. “Existe um pacto de silêncio. Não se comenta isso na medicina, o que é ruim. Se na sua família há um médico que abusa do álcool ou de remédios, os familiares não se preocupam, porque pensam que, por ele ser da classe médica, sabe se cuidar”, comenta o psiquiatra, professor da Faculdades de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais e da USP José Raimundo Lippi. De acordo com ele, quando o médico chega a pedir ajuda, “está em estado deplorável. Ele já caminha para a angústia, não dorme direito e tem dores”. Ele se lembra de um colega que morreu de dengue recentemente. “Ele foi diagnosticado com a doença, mas não tomou providências com antecedência”, conta, frisando ser esse um exemplo da sensação de imortalidade desses profissionais.
SINAIS
De acordo com o psiquiatra, há alguns sinais que são detectáveis para saber se um médico está ou não bem. “Os próprios colegas podem reparar isso. Atraso frequente no trabalho, faltas não justificadas, ressacas constantes e redução no desempenho no trabalho são alguns deles”, enumera, alertando os familiares para que fiquem atentos também. “Quem precisa de ajuda geralmente piora a qualidade de vida em família. Começam a aparecer sintomas físicos, a pessoa fica mais solitária e desaparece do hospital ou do consultório sem que ninguém saiba”, acrescenta.
Especialistas mais vulneráveis
Os profissionais médicos mais vulneráveis aos transtornos são os especialistas em anestesia, urgência e emergência e psiquiatria. “São profissionais que têm acesso mais fácil às drogas, lidam por muitas horas com a morte e com as doenças mentais”, comenta José Raimundo Lippi. Segundo o presidente da Sociedade de Anestesiologia de Minas Gerais, Jaci Custódio, hoje em dia o médico vive em constante estresse, por isso o “ fundo do poço”. Ele diz, ainda, que o quadro é agravado, por exemplo, no caso dos anestesistas, pelo baixo salário. “Em uma cirurgia de hérnia, o trabalhador ganha R$ 260 para duas horas de atuação. Além disso, temos um doente em nossas mãos e não temos o direito de errar. Somos piloto de avião. As pessoas entregam suas vidas para nós e estamos trabalhando em locais sem segurança alguma”, denuncia.
Custódio é anestesista e diz que sempre faz uma autoanálise. “Não posso me permitir ter depressão. Não aceito. Quando vejo algum sintoma, tento ficar bem. O álcool faz parte da vida nos fins de semana. Mas não tenho dependência. Buscar ajuda de um psiquiatra é uma ida sem volta”, critica. José Raimundo Lippi afirma que a depressão é a doença mental mais comum entre os médicos, inclusive entre os psiquiatras. “Todos são suscetíveis a patologias de ordem mental, principalmente aqueles que não se cuidam. É importante lembrar que o remédio cuida do sintoma, mas as causas precisam de atenção na psicoterapia. O médico pode ser um bom ‘receitador’, mas se não souber o que o cliente tem, não vai resolver o problema.” Por isso, para ele, a automedicação não deve ser vista como solução.
Para Alexandrina Meleiro, apesar de o autoextermínio envolver questões socioculturais, genéticas, psicodinâmicas, filosóficas, existenciais e ambientais, a doença mental é um fator de vulnerabilidade na quase totalidade dos casos. “O diagnóstico precoce e o tratamento correto da depressão (patologia mais encontrada nos suicídios) são uma das maneiras mais eficazes de prevenir o autoextermínio. O mesmo serve para a dependência de álcool e outras drogas.” Ela reconhece a resistência dos médicos em procurar ajuda psiquiátrica temendo serem estigmatizados. “Eles tentam primeiro automedicar-se ou fazer uma consulta informal com algum colega. Só procuram ajuda adequada quando a situação se torna insustentável.”
VIOLÊNCIA
De acordo com o diretor de comunicação do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais e médico da família André Christiano, muitas são as queixas da categoria. “Além da alta carga de trabalho e baixa remuneração, há, ainda, muitos profissionais sendo vítimas da violência de pacientes. Agressões físicas e verbais”, diz. Christiano acrescenta que são muitos os médicos que usam os medicamentos como forma de camuflar o problema. “Isso nos preocupa bastante. Tem havido muito afastamento do emprego por causa de saúde. No ano passado, soubemos que os médicos eram os que mais se afastaram do trabalho na capital, passando até mesmo os professores”, compara.
DEPOIMENTO
“Procurei ajuda quando ainda era estudante de medicina. Tinha dificuldade em dormir e não me relacionava com o sexo oposto. Meu transtorno teve a ver com o abuso sexual que sofri quando criança. Procurei tratamento. Quando me tornei médica, abusava do álcool para relaxar. Acho que poderia ter sido uma aluna melhor no meu curso, mas fui mediana.”
“Procurei ajuda quando ainda era estudante de medicina. Tinha dificuldade em dormir e não me relacionava com o sexo oposto. Meu transtorno teve a ver com o abuso sexual que sofri quando criança. Procurei tratamento. Quando me tornei médica, abusava do álcool para relaxar. Acho que poderia ter sido uma aluna melhor no meu curso, mas fui mediana.”
V.F.G, de 33 anos, cardiologista
DROGAS ENTRE MÉDICOS
Principais substâncias mais consumidas entre 198 médicos. Os dados são de um estudo feito em 2004, na Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), intitulado Perfil clínico e demográfico de médicos com dependência química.
Álcool
» Dependência: 97 casos – 48,8%
» Uso nocivo: 47 casos – 23,7%
» Total: 144 casos – 72,7%
Cocaína
» Dependência: 42 casos – 21,2%
» Uso nocivo: 21 casos – 10, 2%
» Total: 63 casos – 31,8%
Benzodiazepínicos (BZD)
» Dependência: 31 casos – 15,6%
» Uso nocivo: 25 casos – 12,6%
» Total: 56 casos – 28,2%
Opiáceos (morfina)
» Dependência: 45 casos – 22,7%
» Uso nocivo: 8 casos – 4%
» Total: 53 casos – 26,7%