Rede de lojas norte-americana propõe fuga dos padrões estéticos em suas vitrines e campanhas publicitárias. Na Ásia, vídeo de lingerie ressalta beleza da mulher desvinculada de seus atributos físicos. No Brasil, comercial de pomada abre caminho para retratar novos arranjos familiares. Será que a imagem feminina na publicidade está realmente mudando? No encerramento do chamado "mês da mulher", ouvimos comunicólogos no Brasil e na França para saber se há ventos promissores de mudança ou se temos apenas 'brisas' de empresas que desejam atender a demandas de grandes grupos sociais.
Veja a galeria com os exemplos midiáticos de uma nova imagem para a mulher
Conheça o projeto 'Espelho de Vênus', sobre a diversidade do corpo feminino
A quantidade de exemplos que tentam fugir ao padrão - tanto na propaganda quanto em filmes, fotografias e projetos artísticos - encontrados na pesquisa para produção desta reportagem chega a ser surpreendente. Vamos começar com um dos vídeos da campanha mais recente da empresa Wacoal, cujo slogan atual é: 'Toda mulher foi criada para ser linda. Linda por dentro'. O vídeo tem legendas em português:
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Alguns especialistas atribuem esse quadro à influência dos padrões inalcançáveis propagados pela publicidade e também pela indústria do entretenimento. Um dos exemplos apontados por essa corrente de pensamento é a cantora Anitta, de 20 anos, que nesta semana foi notícia pela série de plásticas a que se submeteu no rosto e no corpo. Há dois anos, ela já havia passado pelas primeiras intervenções cirúrgicas e, apesar do sucesso na carreira musical, não estava satisfeita. “Agora não tenho defeitos”, disse em entrevista ao programa Fantástico.
A pesquisa ‘Representações das mulheres nas propagandas na TV’, realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, em maio de 2013, apontou que 56% dos entrevistados, homens e mulheres, consideram que as propagandas na TV não mostram as brasileiras reais. A invisibilidade da mulher negra também foi destacada - 80% dos entrevistados consideram que as propagandas televisivas mostram mais mulheres brancas, enquanto 51% gostariam de ver mais negras nos comerciais. A maioria também gostaria de ver mais mulheres com cabelos crespos/cacheados na publicidade, mas 83% consideram que veem mais modelos com cabelos lisos.
Criticado, portanto, por pesquisas, ativistas e pessoas comuns, o mercado da moda e da beleza tenta se redimir. Este filme, feito pela Dove (marca de higiene pessoal da Unilever que, mesmo sob acusações de hipocrisia, se esforça nas ‘campanhas pela real beleza’), aponta como a indústria doutrina as crianças, desde bem pequenas. Com imagens muito fortes, o vídeo termina com a frase: “fale com sua filha antes que a indústria da beleza o faça”. As legendas não são necessárias, confira:
Confira agora um vídeo que resume o ano de 2013 considerando a forma como as mulheres são exploradas comercialmente na grande mídia. As imagens indicam que a visão sexista e excludente em relação à beleza ainda está longe de ser superada. Embora o filme mostre também os motivos de comemoração - a Revista Time trouxe, na capa, Malala Yousafzai, a adolescente paquistanesa, hoje com 16 anos, baleada na cabeça em 2012 por lutar pelo direito feminino à educação em seu país – a peça destaca os estereótipos negativos:
No Brasil, pelo menos, um dos fatores que pode estar contribuindo para mudanças nos meios de comunicação é a emergência de novos mercados consumidores. Grupos excluídos de grande parte do consumo agora têm poder de compra e exigem uma interação maior com a marca, com as lojas. “Se anteriormente muitas campanhas tratavam o cliente como único, homogêneo, hoje a lógica deve contemplar múltiplos perfis. E aqui entram também as questões de gênero, que remetem a um grupo – o das mulheres – mas significam a inclusão de vários outros”, detalha Mendonça.
Por mais que a imagem de uma mulher forte apareça, ainda assim a ideia de ‘ter um companheiro’ frequentemente surge como uma conquista feminina importante. “Em uma sociedade repleta de casos de violência contra a mulher, o padrão na publicidade ainda é o de fragilizar o corpo feminino, usar esse corpo excessivamente e impor limites estéticos”, critica o professor. “Só que, se você parar para pensar, ninguém é feio. Padrão, cada um cria o seu”, completa.
O professor conta que o corpo masculino só começou a ganhar algum destaque na propaganda nos anos 70, com imagens de homens mais jovens e ‘belos’; e não apenas no papel de pais. Parte das feministas, na época, encarou a mudança como “finalmente o corpo do homem também está sendo explorado comercialmente”. No entanto, a exploração da imagem feminina cresceu ainda mais.
A forma como a mulher é representada está intimamente ligada a uma sociedade que também não aceita a igualdade em outros campos. Daí a dificuldade da publicidade brasileira em se comunicar com o público homossexual, por exemplo. Os exemplos das empresas que tentam avançar nesse sentido se contam nos dedos. A pomada Nebacetin fez, em 2008, uma campanha com o conceito – as famílias mudam, o cuidado não – e incluiu um casal homossexual no comercial de televisão.
A Unimed de Santa Catarina também incluiu um casal gay em seus anúncios de planos familiares. Em São Paulo, a construtora Tecnisa fez peças publicitárias específicas, porque constatou uma fatia de 30% em seus mercado potencial formada por homossexuais, que não só compravam os apartamentos, mas investiam até 80% do valor total do imóvel em decoração e valorização. “Ainda na época do governo FHC, houve uma campanha emblemática pelo uso da camisinha que incluía os homossexuais jovens. O comercial recebeu duas denúncias junto ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e foi o que bastou para a campanha ser retirada do ar. A campanha de prevenção teve sua dimensão social reduzida por causa disso”, lembra Mendonça.
Por outro lado, bastou outra denúncia ao Conar para que fosse banida uma campanha publicitária da cerveja Devassa com a socialite estadunidense Paris Hilton. A denúncia apontava que a campanha prejudicava a imagem da mulher. “O caminho para mudar essa imagem da mulher, e com ela trazer outros grupos para um diálogo mais aberto, é árduo. Vemos a emergência de grupos que pedem mais visibilidade, e isso vale para as mulheres fora do padrão. Vale para as mulheres vitimadas fisicamente, psicologicamente e socialmente, por serem mulheres. Acredito que haverá uma mudança nesta imagem, mas às custas da luta cotidiana. Principalmente no Brasil, em que a publicidade está menos disposta a correr riscos do que em vários outros países”, conclui o professor da UFMG.
Gênero, raça e identidade - questões que não são isoladas
A historiadora brasileira Sílvia Capanema, especialista em questões raciais, identitárias e movimentos sociais; professora Adjunta na Universidade de Paris 13- Sorbonne Paris Cité, observa que a propaganda francesa talvez não esteja assim tão mais avançada que a brasileira. “A publicidade, muitas vezes, busca a ousadia como forma de chamar a atenção. Pode ser bastante estratégico trazer esses contra-modelos para as câmeras e cartazes”, pondera. “Mas como há a obrigação de vender e evitar a rejeição, a publicidade é geralmente mais conservadora do que até a própria sociedade, ou tão conservadora quanto, na tentativa de um equilíbrio entre o ‘padrão estético’ e o ‘ousado’. Um exemplo é a publicidade da Dove, que há anos investe em mulheres ‘normais’, acima do peso, com corpo desproporcional, para as suas campanhas. Mas elas não saem do padrão do que é considerado ‘belo’”, define.
A essa discussão, Sílvia acrescenta a diversidade étnica e racial, que já é uma preocupação de várias das grandes marcas, principalmente norte-americanas. Nos Estados Unidos, a questão da diversidade étnica já é um elemento comum, compartilhado pela sociedade e presente na publicidade com mais frequência. “No caso da França, nem sempre existe essa preocupação. Aqui, as modelos são geralmente brancas e seguem ‘padrão-europeu-branco’, são magras, altas, com cabelos loiros ou castanhos, entre 20 e 35 anos. E isso vai da lingerie ao sabão em pó. Hoje, a questão em voga nos movimentos e pesquisas feministas é associar as questões de gênero, raça e classe. Porém, esse debate dos movimentos sociais e do mundo universitário ainda não tem alcançado em grande parte a publicidade”, explica a professora.
“Na França, apesar das pesquisas e dos movimentos, a diversidade étnica e racial não é uma reivindicação cotidiana, nem é amplamente aceita. Existe, de certa maneira, ainda uma ‘lei do silêncio’ quanto às origens e ‘raças’, e isso repercute na publicidade”, avalia Sílvia, lembrando que existe, no país, uma forte tensão com a população árabe e muçulmana, principalmente por parte de setores de tendência conservadora ou por aqueles que reivindicam uma "identidade francesa" legitimamente europeia. “E até mesmo por alguns movimentos feministas e universalistas, que criticam a opressão da mulher no Islã e o uso do véu. As mulheres de origem muçulmana ou árabe são praticamente ausentes na publicidade”, observa.
E o exagero do politicamente correto?
Sílvia acredita que o feminismo pode até ser 'acusado' de politicamente correto, por ser pouco tolerante com as piadas e usos sexistas nas diferentes linguagens, mas o seu interesse é ser emancipador. "Há um rigor na cobrança das representações que a sociedade produz, porque a reprodução de estereótipos é considerada nociva para a construção de novas identidades e para a libertação da mulher de sua condição inferior. Uma estética feminina mais livre é também o que se pretende com o feminismo e o seu ‘politicamente correto’, pois seria uma forma de tirar a mulher de sua condição servil, de objeto sexual, de produto, para uma condição de agente social plena”, aponta. “O feminismo considera que os padrões estéticos hegemônicos são formas de dominação e quem mais sofre com eles são as mulheres, principalmente não-brancas e pobres. A discussão atual é como a dominação sexual é também uma dominação econômica”, acrescenta a pesquisadora.
Sobre a American Apparel, a historiadora pontua que uma ação como a dos manequins com pelos pubianos aparentes tem como objetivo maior chamar a atenção do que contribuir para os ideais de um novo papel da mulher na sociedade. “Porém, por ser transgressora de alguma forma, pode contribuir para quebrar alguns tabus corporais, ligados a uma imagem também criada pela publicidade de mulheres perfeitas, super bem depiladas e proporcionais, verdadeiras ‘bonecas barbies’”, completa.
E essa onda de quebrar tabus vai continuar? Pode ser que sim. “Tudo vai depender das pressões dos movimentos sociais e do grau de debate na sociedade. No meu ponto de vista, essa ‘renovação’ da publicidade só pode surgir daí, das pressões políticas dos movimentos organizados, da incorporação das demandas nas próprias esferas de decisões, da modificação ampla, através das instituições (escola, imprensa), das formas de pensar das próprias pessoas, homens e mulheres, que produzem a publicidade”, acredita Sílvia Capanema.
Se a sociedade, seja francesa ou brasileira, ainda prefere o conservadorismo, há que se lembrar que existe um duplo sentido – a mídia e a publicidade impõem padrões, mas também são obrigadas a mudar esses padrões quando a sociedade demanda. “Mas o objetivo final continua sendo o consumo,o objeto do desejo, ou seja, aquilo que deve ser uma projeção, um ideal, algo inatingível, pois logo que se tem um produto, já se pretende ter outra coisa. E assim por diante. A publicidade está imersa nessa lógica do consumo. Acho difícil que ela se conforme com coisas "reais", construtivas, emancipadoras, pois vai sempre tentar vender o ideal e buscar uma relação de ‘dependência’ dos consumidores”, avalia.
Enquanto isso, a luta por mudanças não segue apenas para que as mulheres sejam livres e não tenham que seguir padrões estéticos dominantes – que fazem até mal à saúde e trazem sofrimento emocional -, mas principalmente para que as mulheres tenham mais espaços no mundo do trabalho e do poder, pertencendo a diversos padrões físicos e origens étnicas.
No filme abaixo, 'Maioria Oprimida', a francesa Eleonore Pourriat propõe um retrato de como seria uma sociedade em que os papéis mais simples do cotidiano são invertidos – os homens sofrem, nas imagens, os mesmos constrangimentos diários que uma mulher. “Eu queria ser tão realista quanto assustadora”, disse a diretora. A versão original teve mais de oito milhões de visualizações. Veja, com legendas em português.