Saúde

Violência obstétrica: se você ainda não acredita, escute essas mulheres

O projeto fotográfico '1:4: retratos da violência obstétrica' registra na pele de mulheres os episódios de violência durante o parto. Conheça a história da mãe de Athina, 7 anos, e Marina, 8 meses, que sentiu todos os cortes da cesariana no nascimento da caçula

Valéria Mendes

Não é por que não aconteceu com você ou com alguém que você conheça que não exista. Pode ser apenas que a notícia não tenha chegado, já que o silêncio e o sentimento de culpa frequentemente acompanham situações traumáticas. Mas fato é que a violência obstétrica é uma realidade do Brasil. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostra que uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre algum tipo de violência no atendimento ao parto. Direito garantido em lei como a presença de um acompanhante sequer é respeitado. E não se trata só disso: mulheres são submetidas a procedimentos desnecessários, atendimento desrespeitoso e ficam com marcas não só no corpo, as feridas mais profundas permeiam a lembrança de um momento que deveria ser de felicidade e plenitude, mas que acabam gerando traumas para a vida toda.


A episiotomia é uma prática obstétrica adotada rotineiramente no Brasil, mas tem indicações claras. FOTO: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica
São esses sinais invisíveis (ou não) o objeto retratado no '1:4: retratos da violência obstétrica', de autoria da fotógrafa Carla Raiter e da produtora cultural Caroline Ferreira. Com o objetivo de materializar a violência obstétrica, elas querem provocar a reflexão sobre a condição de nascimento no país. “Para mudar o mundo é preciso primeiro mudar a forma de nascer”. A frase famosa é do médico obstetra e pesquisador Michel Odent, referência internacional do parto humanizado e cai como uma luva para o contexto brasileiro: a maioria dos erros médicos está ligados à obstetrícia (saiba mais).

"O projeto fotográfico rompe o silêncio de mulheres que têm suas histórias retratadas em partes de seus corpos – através de uma tatuagem temporária -, em uma linguagem que as trata de forma serializada, anônima e sem considerar a individualidade, assim como fazem os protocolos médicos nas maternidades públicas e privadas brasileiras". É assim que as idealizadoras apresentam o trabalho na página do projeto.

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Caroline Ferreira diz que a violência obstétrica ainda não é reconhecida por todas as mulheres e defende que ela seja tipificada como crime a exemplo da Venezuela. “Falta mesmo o reconhecimento e as bases para identificar e tipificar a violência obstétrica. Além disso, a iconografia, a tradição oral e a literatura associadas ao nascimento ainda são de dor e sofrimento. Assim, quando uma mulher é vítima de violência obstétrica, ela tende a pensar que “é assim mesmo”, que não existem outros mundos respeitosos possíveis. Os desafios residem em transmitir informação, em reeducar a sociedade, em atuar para dar suporte às mulheres que já foram vítimas, seja em via psicológica ou legal. Outro desafio é mudar a cultura do nascimento e reeducar as práticas médicas”, salienta.

"É possível parir sorrindo", afirma a fotógrafa do projeto Carla Raiter. FOTO: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica
Para Carla Raiter, a luta deveria ser de toda a sociedade. “Trata-se do nascer, todo mundo nasceu um dia, boa parte das pessoas teve ou vai ter filhos. Eu trabalho registrando partos respeitosos, acompanhados inclusive por médicos. Para qualquer pessoa que conheça esse cenário, que saiba que isso é possível, não faz nenhum sentido tolerar a agressão verbal e/ou física ou procedimentos completamente desnecessários durante um trabalho de parto. Quando sabemos que várias coisas encaradas como “normais” são desnecessárias e até prejudiciais, não há como negar a violência”, afirma. A fotógrafa salienta que o desrespeito não é só com a mulher “que é agredida, privada de água e alimentação, que tem a vagina cortada como procedimento padrão sem avaliar a real necessidade, ou que é induzida a uma cirurgia sem necessidade, mas também com o bebê que muitas vezes é retirado por meio de uma cirurgia desnecessária, antes de estar pronto, o que aumenta várias vezes os riscos de morte, que é afastado da mãe e tem a amamentação prejudicada; e com o pai, que muitas vezes não pode ver o nascimento do filho e não pode participar desse momento familiar”, enumera.

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Carla Raiter acredita que é preciso separar a chegada do filho (que, obviamente, sempre vai trazer felicidade) do processo imediatamente anterior, ou seja, o parto. “Essa subjetividade que ronda o entendimento da violência obstétrica é também o que tenta deslegitimizar o sentimento da mulher que passa por um parto ruim. Afinal, ela deve ficar feliz, o filho nasceu e nasceu saudável. Então, do que reclamar? Recebemos muitos relatos de mulheres que ficaram muito confusas com esses sentimentos contraditórios, principalmente quando a violência é mais velada, não tão explícita. Muitas nos procuram dizendo que finalmente alguém entende o que elas passaram, alguém vai ouví-las e não vai julgar que são loucas ou que isso é frescura”, defende a fotógrafa.

Além de tudo isso, no Brasil não há legislação para a violência obstétrica e isso dificulta os processos. Por isso, a importância do plano de parto, prática recomendada pela Organização Mundial de Saúde, mas não adotada no país (clique e saiba mais).

Avanços
Por outro lado, Carla Raiter enxerga o cenário de mudança para práticas obstétricas mais humanizadas. “Surgem cada vez mais grupos de apoio à gestação e parto com o objetivo de disseminar informação; alguns canais de mídia já têm mais abertura para falar do assunto; o número de médicos obstetras com práticas humanizadas e baseadas em evidências científicas vem crescendo; e recentemente, tivemos várias iniciativas públicas e privadas relacionadas ao tema, como o documentário ‘O Renascimento do Parto’ (leia mais) e a aprovação para a construção de Casas de Parto na cidade de São Paulo. São exemplos que indicam que a mudança está ocorrendo, mas ainda estamos em passos lentos”, pondera.



'Você ainda está viva?', perguntou o médico
A administradora de empresas Iriny Roussos, 34 anos, é mãe de Athina, 7 anos, e Marina, 8 meses. Na primeira gestação descobriu que era hipertensa e na 38ª semana o médico que a acompanhava marcou a cesariana. Ela e o marido sempre quiseram ter outro filho, mas a pressão alta era motivo de preocupação constante e adiou o sonho do casal. “Depois que minha primeira filha nasceu procurei um cardiologista e descobri que tenho um pequeno refluxo na aorta. A condição não me impediria de ter outro filho, mas fui alertada que uma segunda gravidez deveria ser observada com mais cuidado e cautela”, recorda-se.

Em 2012, ela e o marido decidiram ter outra criança e, em novembro, o casal engravidou. “Queria um médico com experiência em gravidez de alto risco. Recebi uma indicação e fui atrás, só que ele não aceitava primeira consulta. Nesse tempo, me consultei com outros dois profissionais que também me alertaram sobre os riscos e o meu medo só aumentava. Resolvi insistir na primeira recomendação. Eu tinha duas clientes médicas que trabalhavam no mesmo hospital do especialista sugerido pela minha cunhada. Pedi que elas intermediassem o contato e consegui, finalmente, ser atendida por ele”, relata. Na tão esperada primeira consulta, Iriny já sentiu vontade de não fazer o pré-natal com o tal médico que, segundo ela, a recebeu com a seguinte pergunta: ‘em que posso te ajudar?’. “Já tinham me avisado que ele era muito seco. Eu não queria carinho, estava lá para resolver um problema e resolvi fazer o pré-natal com ele”, diz.

Já no meio da gestação, Iriny descobriu um lado do obstetra que ela define como deboche. “Em uma das consultas ele passou pelo corredor onde eu estava sentada esperando por ele e disse: ‘Iriny, você ainda está viva?’. Eu tinha uma filha para criar, eu tinha muito medo de morrer e ele sabia disso”, revolta-se.

A violência verbal também deixa marcas profundas. A administradora de empresas, Iriny Roussos que conta sua história nesta reportagem, ouviu do próprio médico: 'você ainda está viva?'. FOTO: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica


"Eu senti a dor do bisturi cortando"
Iriny diz que o pré-natal seguiu “com essa tensão toda”. Entre a 34ª e 35ª semana ela conta que o médico avisou que adiantaria o parto porque ‘seu coração está com uma frequência alta e você pode não aguentar’. “Na hora eu pensei: alguém vai morrer, ou eu ou o neném”, conta. O parto aconteceu na 36ª semana. “Quando eu entrei na sala de parto ele não estava lá para me receber, apenas o anestesista que não sabia nada sobre o meu caso. Minha pressão chegou a 22, eu estava sozinha, muito nervosa e tive que explicar toda a minha história para ele”, lembra a administradora de empresas. Ela diz que não deixaram o marido entrar com ela na hora da anestesia. “Depois que a anestesia foi aplicada, o médico entrou na sala, me deu bom dia e começou a cortar. Na primeira passada de bisturi eu disse: está doendo. Ele continuou cortando como se eu não tivesse falado nada. Eu senti os três cortes seguintes, meu marido não entrava e eu falava, está doendo, está doendo, está doendo”, recorda-se com a voz abafada pelo choro.

“De repente meu marido entrou com a carinha mais boa. Quando ele olhou pra mim, eu disse: ‘me ajuda que está doendo’. Ele se assustou, mas o médico continuva cortando. Eu não sei explicar a dor, não sei se eles não podiam me dar anestesia naquele momento, mas ninguém me respondia nada, só via o anestesista andando de um lado para outro e num momento ele falou: ‘calma, espera um minutinho, eu vou te dar mais’. Foram oito minutos que eu pedi ajuda e o médico cortando. Meu marido chegou a solicitar que parassem e ouviu como resposta: ‘já vai nascer’”, relata Iriny.

A mãe de Athyna e Marina lembra ainda que quando o médico puxou a caçula, ela viu o anestesista colocar remédio. “Eu acho que foi no soro, me deram muito medicamento para a pressão baixar. Quando colocaram minha filha do meu lado eu não conseguia enxergar o rosto dela, não conseguia abraçá-la de tanta dor que eu estava sentindo”, afirma. Em seguida ela diz que eles começaram a costurar e a dor começou a passar. “Fui ficando cada vez mais mole. Eu não vi quando meu marido e minha filha saíram. Quando acabou, fiquei sozinha com a enfermeira e ela começou a me limpar. Minha filha nasceu às 11h e só às 16h30 fui para o quarto. Nesse tempo ouvia longe a voz do anestesista checando com alguém: ‘o CTI está separado?’”, conta.

Iriny conta que ficava olhando para o relógio e vendo o tempo passar. Às 12h30, segundo ela, a enfermeira levou Marina para que ela amamentasse. “Ela colocou minha filha em cima de mim, mas eu não conseguia segurá-la. Fiquei sozinha com ela e notei que ela não estava respirando direito. Foi outro momento de pânico. Vi uma enfermeira passando do lado de fora, chamei e avisei que a Marina não estava respirando direito. Ela pegou minha filha do meu colo e levou sem me dizer nada. Eu fiquei lá sem saber o que estava acontecendo comigo e com a minha filha. Não deixavam ninguém entrar e eu perguntava: ‘meu marido está lá fora?’”, continua.

“Depois disso, comecei a ficar muito nervosa e a minha pressão começou a subir. A enfermeira me disse que teria que me levar ao CTI e perguntou: ‘por que você está tão nervosa?’ Eu retruquei: ‘cadê todo mundo?’. E ela respondeu: ‘vou deixar você subir se você se acalmar’. Em seguida ela começou a me transferir e me lembro do barulho das cacetadas da maca batendo nas portas pelos corredores do hospital. Quando entrei no quarto estava todo mundo de olho arregalado, assustado. Ninguém sabia o que eu tinha, o médico não deu notícia pra ninguém da família. Ninguém sabia da minha filha também. Na fitinha da Marina, escreveram Ingrid ao invés de Iriny e todo mundo estava aflito querendo saber notícias dela. Até descobrir o erro vivemos toda essa apreensão. Eu não desejo isso para ninguém na minha vida”, emociona-se.

Os pontos da anestesia de Iriny ainda infeccionaram, mas ela encerrou o pré-natal com o médico que fez o parto de Marina e nunca perguntou nada, ela não também não pensa em processá-lo. “Não sei por que ele fez isso comigo. Será que foi por que eu insisti em fazer o pré-natal com ele?”, questiona-se. “Eu apenas escrevi um desabafo pra mim e agradeço a Deus por estar viva”, encerra.


Brasil amarga altos índices de cesariana. Para se ter uma ideia, a OMS recomenda o índice de 15% e, na rede particular, 82% das crianças nascem por essa cirurgia. FOTO: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica
O projeto
Carla Raiter conta que a ideia do projeto surgiu de uma conversa despretensiosa. “Eu já trabalhava com fotografia de partos humanizados, já levantava a bandeira da humanização. Um dia, a Caroline me mandou um e-mail - que por pouco não se perdeu e nunca foi lido - me perguntando se eu nunca tinha pensado em fazer algum trabalho sobre violência obstétrica. Realmente caiu minha ficha de olhar para o outro lado, justamente para o oposto: essas histórias horríveis de partos traumáticos, de abuso, de violência verbal e física, de procedimentos desnecessários que tiram a autonomia da mulher no momento que deveria ser o mais empoderador de sua maternidade. Quando li o e-mail, foi uma epifania, passou um filme na minha cabeça com as imagens que eu queria fazer e que hoje produzimos”, lembra a fotógrafa.

Ela conta que o desafio seguinte “foi descobrir um jeito de escrever na pele das mulheres com a tipografia que eu queria e dar um nome para o projeto. Isso foi se ajeitando entre dezembro de 2012 e fevereiro de 2013, em meio a testes de tatuagens temporárias e aprimoração do conceito. Em março de 2013 lançamos o piloto com algumas fotografias, inclusive da Caroline, que teve um parto violento há alguns anos atrás”, conta Carla Raiter.

Depois de lançado, Carla e Caroline confessam que não estavam preparadas para uma avalanche de e-mails com relatos de mulheres que queriam ser ouvidas, fotografadas, alertar outras, entender ou simplesmente superar o que aconteceu em seus partos. “Muitas histórias tristes, de dar nó na garganta, mesmo, de nos fazerem chorar ao ler. E então a gente entendeu que aquilo era um caminho sem volta, e que o projeto tinha um tamanho muito maior do que podíamos ter imaginado”, afirma Carla.

“Lamentamos que haja tanto eco, que tantas mulheres se vejam nas nossas fotos. Recebemos relatos de todas as partes do país, de todas as classes sociais e faixas etárias, bem como de profissionais de saúde que discordam de suas realidades de atendimento e relatos de homens que tiveram suas mães e esposas violentadas. As pessoas nos vêem como um porto confiável de atendimento e informação, como um espaço que não vai recriminá-las”, reforça Caroline.

"Falta mesmo o reconhecimento e as bases para identificar e tipificar a violência obstétrica", Caroline Ferreira, produtora cultural do projeto. FOTO: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica
Sobre as repercussões negativas, Caroline diz que os pilares são “corporativismo médico, falta de informação e machismo. São facilmente identificáveis e todos me entristecem. Pipocam nesse momento projetos, teses de mestrado, ações e discussões sobre parto e violência obstétrica. A sociedade civil passa a reconhecer violência obstétrica como uma questão a discutir e resolver e encontra apoio em outras esferas sociais”, diz a produtora cultural.

Para ela, é notório que o modelo brasileiro de atendimento à mulher é deficitário, desrespeitoso e violento. “Manter uma postura arrogante e corporativista não é a maneira de lidar com o cenário. Sobre falta de informação, a referência sobre nascimentos não é positiva. Além disso, a mulher não busca informação sobre fisiologia do parto, sobre o próprio corpo. E o parto é visto, no inconsciente coletivo, como um evento sexual e sujo. Ainda nesse mesmo inconsciente, a mulher é uma reprodutora unicamente, cumprindo com seu papel de parideira, prestando seu serviço social. Daí as raízes machistas de desacreditar, de olhar para a violência obstétrica de maneira reducionista. Daí o ‘esquece isso’”, reforça.

A própria Caroline foi vítima de violência obstétrica. Ela é mãe de Luísa, de 11 anos, e diz que não viu o nascimento da filha. “Não vê-la chegar é algo que não pode ser resgatado. A despeito da dor física, da possibilidade de morrer, do abandono e de toda a sorte de violência, não tê-la visto nascer é o que eu não posso dar jeito, não tem segunda chance”, compartilha.

Carla é mãe de Gael, de 2 anos, e conta que depois que o filho nasceu se envolveu ainda mais com a humanização de parto. “Passei a fotografar os partos naturais, humanizados, respeitosos, com profissionais cujas condutas eu conheço. Parte da minha motivação para trabalhar com isso era fazer a minha parte para mostrar ao mundo que é possível parir sorrindo, que é possível a mulher ter protagonismo, escolher a posição que é mais confortável, ter seus familiares por perto, ser plenamente respeitada. Voltar meus olhos e minha câmera para a violência no parto foi um outro jeito que encontrei de gritar ao mundo que algo anda muito errado com o cenário de nascimento no Brasil”, explica.

Futuro

Carla Raiter diz que o projeto ficou parado por por conta das demandas profissionais de cada uma. “Não temos verba nenhuma. Pelo contrário, temos vários gastos, desde o deslocamento até o papel (importado) que usamos para as tatuagens temporárias. Nossa intenção é expandir o ‘Projeto 1:4’, fotografar no Brasil todo, fazer uma exposição, talvez transformá-lo em livro porque a verdade é que temos muito mais que as fotos para mostrar”, planeja a fotógrafa.

O direito a acompanhante é garantido pela lei. FOTO: Projeto 1:4 - Retratos da Violência Obstétrica