O cientista social Igor Cavallini Johansen conta que, desde o início de suas pesquisas, ainda na graduação, observou uma lacuna na bibliografia – qual o papel das características da população na disseminação e concentração dos casos de dengue? Quais grupos estão mais vulneráveis? O resultado destas indagações está na pesquisa desenvolvida durante o mestrado em demografia de Johansen, com orientação do professor Roberto Luiz do Carmo. “A dengue é uma doença multicausal e as ações de controle envolvem tanto fatores ambientais, quando políticos e populacionais. O que eu fiz foi me aprofundar nos fatores populacionais, no que chamamos de condicionamentos sociais da doença”, explica o estudioso.
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Devido à sua experiência anterior na análise da cidade de Altamira, no Pará, uma das hipóteses levantadas foi a de que a dificuldade de acesso ao saneamento – água encanada, rede de esgoto e coleta de lixo – poderia favorecer o aumento da incidência da doença. “Apesar de Altamira estar em uma das maiores bacias hidrográfica do mundo, boa parte da população não tem água tratada e encanada em casa. Com isso, os moradores armazenam a água em baldes e tonéis; e nem sempre tomam o cuidado para que esses recipientes não virem criadouros do mosquito”, explica Johansen.
Realidades diferentes
Em Caraguatatuba, no entanto, em que o acesso à água encanada está praticamente universalizado, a influência desse fator foi pequena. “Ainda assim, a doença não se espalha de forma homogênea pela cidade, concentrando-se em algumas regiões. Fui em busca de outras explicações”, conta o pesquisador.
De posse de dados do Censo do IBGE e do controle da dengue mapeadas pela Secretaria de Saúde do município, Igor Cavallini cruzou as informações com a proximidade dos “pontos estratégicos”, nomenclatura utilizada pelo Ministério da Saúde no mapeamento de potenciais criadouros do Aedes Aegypti, como borracharias, ferros-velhos e depósitos de materiais recicláveis.
Com a colaboração da colega da Unicamp e analista do IBGE, Maria do Carmo Dias Bueno, Igor teve acesso a uma nova forma de disponibilização dos dados do Censo, que divide o município em células do mesmo tamanho. Essa novidade deverá estar disponível para outros pesquisadores ainda em 2014. “Tradicionalmente, a unidade mínima do IBGE é o setor censitário, que é irregular em tamanho e pode abranger áreas bastante distintas. Em minha pesquisa, como as células são muito menores e regulares, trabalhamos com uma escala bem pequena, de 250 por 250 metros, permitindo grande precisão”, explica Johansen.
As conclusões apontadas pelo estudo são impressionantes e mostram que a visão da dengue como doença 'democrática', que 'atinge todas as classes sem distinção' precisa ser revista. “Uma demonstração disso está na proximidade entre os grupos populacionais mais atingidos e os pontos estratégicos. Como a Prefeitura já tinha esses pontos mapeados, pude verificar que morar em um raio de 300 metros desses locais aumenta em 67% a taxa de incidência de dengue. E as borracharias e depósitos de materiais recicláveis não estão em bairros nobres ou condomínios; estão na periferia”, acrescenta o cientista social.
Ao associar os casos da doença com o nível de renda dos moradores, o efeito da desigualdade foi ainda maior. A influência da cor da pele também não é desprezível:
-renda:o aumento de apenas 1% na proporção de domicílios com renda per capita até três salários mínimos faz aumentar em 71 vezes a taxa de incidência de dengue. Quanto mais casas com esse perfil, maior incidência. Isso é agravado no caso das cidades litorâneas, porque os mais pobres, quando chegam ao município, vão se instalar subindo a encosta, em residências baixas. Os mais ricos procuram os prédios altos de bairros urbanizados. Como o voo do mosquito é limitado a apenas 1 metro de altura, os menos pobres estão menos expostos.
-cor da pele: o acréscimo de 1% de população não-branca entre os moradores aumenta a taxa de dengue em mais de quatro vezes. Igor reforça que, no Brasil, a cor da pele e a situação socioeconômica estão intimamente ligadas ao perfil epidemiológico. No caso de Caraguatatuba, considerando os dados de 2013, quanto mais pessoas negras e pardas, maior a taxa de incidência de dengue naquela localidade.
Igor considera que a grande cartada da pesquisa foi a possibilidade de sobrepor o banco de dados do município, com o georreferenciamento de cada um dos casos de dengue; à malha cartográfica do IBGE. Assim, foi possível demonstrar que o perfil socioeconômico e o de saúde estão muito relacionados. “As populações com menor renda e maior proporção de negros e pardos estão mais vulneráveis a causas externas e doenças evitáveis. É um acúmulo de 'chances' – a pessoa não é branca, tem renda baixa e mora perto de um ponto estratégico”, resume o cientista.
Aplicação
Igor Johansen acredita que a metodologia possa ser replicada em outros municípios, desde que um aspecto da dengue não seja esquecido: por ter múltiplos fatores, a enfermidade não pode ser reduzida ao viés populacional. “A manifestação da doença depende até da susceptibilidade biológica individual ao vírus – meu vizinho pode ter apenas sintomas leves e nem procurar um diagnóstico, enquanto eu posso precisar ir para o hospital. A perspectiva populacional, sozinha, não é suficiente para explicar toda a cadeia de fatores inter-relacionados que envolvem a dengue”, conclui o pesquisador.
Também devido a essa complexidade, a ciência ainda não alcançou uma solução definitiva para a enfermidade, mas esta foi a primeira vez em que uma escala tão detalhada foi utilizada para analisar as características demográficas da dengue. “Pesquisas assim podem auxiliar as prefeituras a viabilizar projetos com foco nos pontos estratégicos, por exemplo, orientando famílias que vivem da coleta de materiais recicláveis”, afirma o pesquisador, que em seu doutorado pretende ampliar a análise para outras doenças.
Saiba mais: Ambiente propício
O Aedes aegypti encontra na região de Caraguatatuba condições favoráveis. Além da urbanização acelerada, contribuem o clima quente e úmido; o turismo que gera grande circulação de pessoas e a localização no corredor de passagem para o porto de São Sebastião. O município é ainda cortado pela rodovia Rio-Santos, cidades onde a dengue é considerada endêmica.
Johansen acrescenta que, no sentido inverso, como fator de proteção da população, há o indicativo de que o aumento de 1% na proporção de domicílios não próprios, com destaque para os alugados, reduz em 92% a taxa de incidência na área de estudo. “Uma hipótese ainda a ser testada é de que a cidade serve como segunda residência para proprietários que descem a serra apenas em feriados e temporadas. O imóvel fica fechado praticamente o ano inteiro, sem que a vigilância tenha acesso a eventuais criadouros. Já no imóvel alugado, o inquilino está presente e tem um cuidado maior em relação a recipientes que podem acumular água”, acrescenta.
De acordo com os dados da Secretaria de Saúde do município, o histórico da dengue em Caraguatatuba tem início em 2002, quando ocorreram as notificações dos primeiros casos autóctones – cuja transmissão se dá dentro da cidade e cujo contaminado é um residente. Se naquele começo foram 333 casos, a maior epidemia veio em 2010, com 3.698 ocorrências confirmadas e praticamente todas (3.672) autóctones; em 2013 houve o segundo maior pico, com 1.679 registros autóctones até o mês de novembro. Quanto a óbitos, foram dois em 2010 e um em cada ano subsequente (2011, 2012 e 2013).