Elas também se escondem. Querem esquecer a história da qual foram protagonistas. Difícil encontrar quem topassem a entrevista. As que aceitaram choraram ao recontar uma história carregada de desamparo, culpa, dor e esperança de um dia conhecer essa criança para pedir-lhe perdão.
Denise enfrentou o passado com bravura. Contou tudo em um livro. Mas nem sempre foi assim. Até que o filho a procurasse (saiba como Sylvio encontrou a mãe biológica na próxima edição da Revista), só os pais dela e o marido conheciam o segredo. Nem as quatro filhas desconfiavam.
A pedagoga engravidou de um namorado aos 18 anos. De família de classe média, convivia com o preconceito de ser mãe solteira nos anos 1970. O pai da criança sugeriu que abortasse. Os pais de Denise não estavam em condições de ajudá-la. Mas a moça estava decidida a preservar a vida do bebê que carregava. Por isso, optou pela doação. A sugestão foi feita por um médico da família, que entregaria o filho dela a uma família que ele sabia que cuidaria bem do menino.
Denise foi morar na casa dos pais desse médico, enquanto a barriga crescia. Para os amigos e parentes, a jovem foi aproveitar uma temporada em outro país. Na verdade, ela passou os meses da gestação idealizando a volta do pai da criança. Assim, poderiam ter uma bela família. Nunca aconteceu. “Esperava fazer meu filho feliz e eu não tinha um lar para oferecer a ele. Há 38 anos, o conceito de lar era pai, mãe e filhos. Eu não tinha condições emocionais para criá-lo sozinha.”
Também foi a falta de apoio que fez com que a produtora de eventos Ilda Aparecida do Nascimento, 42 anos, não encontrasse forças para assumir a maternidade. Moça pobre, saiu do interior do Paraná para trabalhar como doméstica na cidade grande. Dos encontros às escondidas com o filho da dona da casa, veio a gravidez.
Com medo, pediu demissão e voltou para a casa da mãe. Diante de tantas dificuldades financeiras enfrentadas pela família, não teve coragem de contar. “Até hoje minha mãe não sabe”, diz. Sozinha, decidiu mais uma vez sair de casa para ter seu filho bem longe dali.
Foi idêntico o destino da professora e conselheira tutelar Eva Vanderli Chaves, 48 anos, que também não teve ajuda do namorado quando engravidou aos 15 anos. Os pais — “pessoas simples e preocupadas com que os outros iriam pensar” — a expulsaram. Sem ter para onde ir, acatou o que lhe foi sugerido: assim que a criança nascesse, seria entregue a outra família.
“Meus pais já faleceram, mas acho que eles sabiam que eu sofria”, comenta. “Mais tarde, fiquei sabendo que minha mãe deu um irmão meu, que não era filho do meu pai, e uma tia entregou um filho dela para adoção. A história se repetiu comigo. Culpei muito os dois, mas hoje perdoei”, relata Eva.
Trata-se de uma solução extrema comum em contextos de privação material e de falta de afeto. “Meu pai era ranzinza, ruim. Batia na mãe e na gente. Ele dizia que eu teria de abortar”, conta a cearense Rita Jordânia de Souza, 43 anos. Filha de um pescador do Ceará, a cabeleireira já tinha um filho quando descobriu a outra gravidez. Em casa em que há pouco para se dividir, não aceitaram uma boca a mais para comer. Desesperada para proteger o filho, abriu mão da cria.
Trajetória semelhante foi percorrida por Anália. Órfã de pai e mãe, solteira, com duas filhas pequenas, ela foi morar em Goiânia com a irmã mais velha. Aos 23 anos, engravidou de novo. A irmã falou: se fosse menina, ela teria de dar. “A gente era muito pobre, morava em casa de chão de terra. Não tinha gás. Passávamos muita necessidade”, conta, com a cabeça baixa.
Anália Elias da Silva Santos, porém, achou que, quando a terceira filha nascesse, a irmã seria demovida da ideia. Não foi. “Eu levei minha neném para casa e minha irmã ficou muito nervosa. No outro dia, tive de levá-la ao trabalho dela e entregá-la a outra família”, conta, “pelejando para não chorar”, como diz. Hoje, Anália vive em Brasília e sonha em reencontrar a caçula.
Linda Alexsandra Figueiredo da Silva também perdeu os filhos para a falta de oportunidades. Mãe de um casal de gêmeos, precisou deixar, há quase 15 anos, os filhos com uma tia para trabalhar como garçonete. A mãe tinha falecido, o pai das crianças nem sequer desconfiava da gravidez. Com uma aposentadoria minguada, a tia não podia ajudar. “Ela falou para eu dar meus meninos. Mas como eu ia dar? Não sou cachorro, que tem a cria e, depois, os filhotes são distribuídos”, compara.
Exasperada, a forma que a moça encontrou de garantir a sobrevivência dos filhos foi a prostituição. Logo recebeu um convite para fazer programa na Espanha. Passou sete anos vivendo ilegalmente naquele país. Foi um período em que se envolveu com drogas (consumia e traficava); escondeu-se da polícia; vendeu o corpo por algo em torno de R$ 50. Deportada, não teve coragem de procurar os parentes. “Se minha família não me queria antes, imagina aparecer drogada na frente deles. Claro que eu pensava nos meus filhos, mas tinha medo da rejeição”, diz, emocionada.
"Parece que estou presa dentro de mim. É um sofrimento muito profundo, falta alguma coisa na minha vida”
Rita Jordânia
Rita Jordânia
A decisão da entrega
A pobreza e a falta de estrutura familiar são as justificativas mais comuns para entregar um filho à adoção. “Muitas vezes, essas mulheres alegam dificuldades financeiras, mas isso não as impede de serem mães”, comenta Valeska Marinho Corrêa, assistente social da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do DF (VIJ/DF). Muitas desconhecem, por exemplo, os direitos de fazer parte de programas sociais do governo, que poderiam ajudar a reforçar a renda e cuidar da criança.
Apontar caminhos, aliás, é uma das propostas do Programa de Acompanhamento a Gestantes, desenvolvido pela VIJ/DF para orientar gestantes e mães que não podem criar seus filhos. A ideia é receber essas mulheres e, no caso de realmente seguirem adiante com a decisão, o filho delas possa ser entregue a uma família nova, como manda a lei. Para isso, são atendidas por uma equipe de psicólogas e assistentes sociais. O objetivo é entender se a tendência de separar-se do próprio filho não é apenas um ato de desespero momentâneo ou de um desequilíbrio emocional passageiro.
“Não há prejulgamento. Muitas têm medo de serem julgadas, mas aqui há uma outra faceta, a do acolhimento. Vamos indagar se ela tem interesse em ficar com essa criança. A cultura é muito perversa com essa mãe. Vamos alargar as possibilidades e a convidamos a refletir aquele momento da vida, a fazer uma releitura. Ela terá, por parte da Justiça, respeito à sua decisão”, resume Walter Gomes, supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da VIJ/DF.
Resoluta, essa mãe será acompanhada por visitas ou telefonemas da equipe da VIJ durante a gestação. Algumas, no entanto, pedem para não ser abordadas. Querem que a criança seja levada no dia do nascimento e só. Outras não querem nem conhecer o bebê. Temem desistir da ideia e isso, para elas, significaria colocar o filho em risco. “Por mais que esteja convicta, há um sofrimento na separação”, justifica Walter.
Durante esse processo, é feito um relatório para o juiz, que encaminhará aos postos de saúde e hospitais próximos da residência da gestante um oficio, pedindo que avisem quando ela der à luz. Quando nascer, a criança segue para a adoção. Se a mãe volta atrás e decide ir para casa com o bebê, “o juiz pode encaminhá-la para atendimento em programas sociais que lhe darão apoio para criar o filho, como o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), entre outros”, esclarece Walter.
Desde a criação do programa até o ano passado, a Vara da Infância do Distrito Federal foi procurada por 330 mulheres que tinham interesse de entregar os filhos. O número ainda pode não representar a realidade de tantas que optam, em um gesto tão desesperado quanto amorosos, a se separar de seus bebês. “São pouquíssimas as mães biológicas que nos procuram, por medo do Judiciário. Essa mãe tem de ser acolhida, ter uma orientação jurídica. É um gesto de amor supremo. Aquelas que odeiam jogam na vala e, por isso, a entrega deve ser amparada pela lei”, define a advogada Silvana do Monte Moreira, diretora de Assuntos Jurídicos da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD) e presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam).
Desconhecendo essa possibilidade, Anália deixou a filha no trabalho da irmã, que prometeu conseguir uma nova família. Com a terceira filha, ela conviveu dois dias. Amamentou e sentiu seu cheiro. Na véspera da despedida, observou seu sono. “Tinha medo de não conseguir entregar. Via o olhar de julgamento das pessoas”, relembra ela, que saiu antes da chegada dos pais adotivos.
Já Ilda anunciou na rádio, no interior do Paraná, que precisava de novos pais para seu filho. Logo apareceu uma família, que a levou para um sítio onde ficou até o parto. Lá, ficou “isolada”. Era início dos anos 1990 quando o filho nasceu. Lembra-se do nome dele, mas não do rosto. Ilda não sabe se ele ainda é chamado com o nome que lhe deu ou se mudaram a certidão. “Tenho uma vaga lembrança de eles terem me levado a um juiz”, comenta, sem saber se assinou algum documento cedendo a guarda da criança.
Eva, por exemplo, decidiu entregar o seu bebê no hospital. Deixou com um médico que manifestou o desejo de levá-lo para casa. “Achei que era assim mesmo, concordei. Não sabia que teria de procurar a Justiça para legalizar a adoção. Fui a cartório com o casal, fiz o registro e o escrevente colocou atrás da certidão que o bebê ficaria com esse casal.” Do casal, ela não lembra o nome e, do filho, nunca mais teve notícias.