Pesquisadores brasileiros se dedicam a estudos sobre efeitos terapêuticos da maconha

Planta pode auxiliar no tratamento de doenças como ansiedade, depressão, obesidade e câncer

por Luciane Evans 10/03/2014 12:12

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Os acidentes de trânsito não aumentaram. As pessoas não saíram enlouquecidas pelas ruas. A criminalidade e a violência não cresceram nem diminuíram. Pouca coisa mudou nos países que passaram a usar maconha para uso medicinal. O Canadá foi o primeiro país a permiti-la para uso terapêutico e, mais de 10 anos depois, a planta, conhecida como Cannabis sativa, ganhou espaço em outros lugares do mundo como aliada dos tratamentos médicos. Mas no Brasil, onde 1,5 milhão de pessoas usam a erva diariamente, ela ainda é vista como "fora da lei". Porém, por trás de toda a fumaça, a medicina brasileira já levanta a principal questão encarada mundo afora: quais seriam os benefícios e malefícios da maconha para a saúde?

Não se trata de defender o consumo nem de sacudir a bandeira contra a erva. Segundo os pesquisadores, a intenção é estudar e comprovar os usos e efeitos terapêuticos de algumas substâncias que a compõem. Para isso, há um esforço conjunto de grandes centros acadêmicos e da indústria farmacêutica no mundo inteiro. Mas, por aqui, as pesquisas na área estão mais lentas. "Ao colocar a Cannabis e seus derivados no mesmo nível de proibição, a legislação brasileira dificulta a obtenção desses produtos para a pesquisa. O uso medicinal de derivados da planta poderia ser liberado no Brasil, sendo esse uso regulado por uma agência brasileira da Cannabis medicinal", palpita o psiquiatra e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade Federal de São Paulo (USP), Antônio Zuardi.

Rick Wilking/reuters
Planta ganhou espaço em vários lugares do planeta como aliada dos tratamentos médicos (foto: Rick Wilking/reuters)
Sem entrar na discussão que ronda o Senado brasileiro sobre a descriminalização da droga, o Estado de Minas entrevistou médicos e pesquisadores do Brasil sobre os efeitos que a Cannabis pode causar. Muitos estudos já comprovaram que ela pode não ser um bicho de sete cabeças. Tanto é que, do ponto de vista científico, ainda não está claro que a maconha pode provocar dependência química e não existe consenso popular da existência dessa dependência.

Por outro lado, em pacientes com glaucoma – mal que pode levar à perda da visão –, a erva ajuda a reduzir a pressão ocular. Auxilia também no alívio da dor crônica, combate náuseas e vômitos em pacientes que enfrentam quimioterapia contra o câncer e ajuda a estimular o apetite em pessoas que têm o vírus HIV. Há também quem diga que substâncias da planta podem controlar o Alzheimer e auxiliam no tratamento da depressão (veja quadro com pesquisas mundiais). Será que os benefícios sobrepõem os malefícios?

O principal pulo da ciência para o assunto veio com as descobertas das substâncias que compõem a Cannabis, entre elas o THC (tetrahidrocanabinol), princípio ativo da planta, descoberto na década de 1960. Em 1990, um grupo de farmacologistas dos Estados Unidos clonou, pela primeira vez, um receptor canabinoide do cérebro. A esse feito seguiu-se a descoberta dos endocanabinoides, compostos gordurosos produzidos por neurônios e capazes de ser reconhecidos pelos mesmos receptores da maconha, posicionados na membrana de outros neurônios.

COMPOSTOS

Segundo destaca Zuardi, foi na década de 1970, pouco tempo depois que os principais componentes da Cannabis foram identificados, que um grupo brasileiro liderado pelo professor Elisaldo Carlini passou a estudar esses compostos na Escola Paulista de Medicina (Unifesp). "Uma das primeiras descobertas foi que um dos componentes da planta, o canabidiol (CBD), que não produzia os efeitos típicos da erva, tinha efeito antiepiléptico em animais, o que foi posteriormente verificado pelo mesmo grupo em humanos", diz. Nessa época, como parte do doutorado de Zuardi, começou-se a estudar a interação entre esse componente e o THC, que é o responsável pelos efeitos mais conhecidos da Cannabis. "Verificamos que doses elevadas de THC produziam muita ansiedade e alguns sintomas psicóticos. Porém, quando os voluntários tomavam o THC junto com o CBD, esses sintomas eram atenuados, sugerindo que o CBD poderia ter efeitos ansiolíticos e/ou antipsicóticos."

Estudos posteriores na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto confirmaram, em animais e humanos, os efeitos ansiolíticos e antipsicóticos do CBD. "Recentemente, publicamos um estudo preliminar, mostrando que pacientes com a doença de Parkinson e que apresentavam sintomas psicóticos tinham esses sintomas atenuados pelo CBD." Ainda de acordo com o psiquiatra, atualmente já é sabido que no sistema nervoso central há uma forma de neurotransmissão que usa canabinoides produzidos pelo próprio organismo.

"Esse sistema está envolvido na regulação de um grande número de funções, o que justifica o uso de canabinoides produzidos pela Cannabis com finalidade terapêutica. Dessa forma, muitos efeitos benéficos para a saúde podem ser obtidos com os canabinoides. A dificuldade é que a planta produz mais de 80 substâncias e algumas delas com efeitos opostos, como é o caso do THC e do CBD. A concentração relativa desses canabinoides vai depender da parte da planta que está sendo usada (flores, folhas ou galhos), do solo onde essa planta foi cultivada, da temperatura, entre outros." Ainda segundo Zuardi, os efeitos da maconha obtida na rua são muito pouco previsíveis e ela não deve ser usada com finalidade terapêutica. "Há evidências de que amostras da planta, muito ricas em THC, podem produzir alucinações, delírios e outras manifestações indesejáveis. O uso pesado de ervas desse tipo, especialmente na adolescência, aumenta o risco para quadros psicóticos mais duradouros", alerta.

Soraia Piva / EM / DA Press
(foto: Soraia Piva / EM / DA Press)
Lucas, faz uso medicinal da maconha para o TDAH - Qualidade de vida
Sofrendo de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Lucas, que não divulga o sobrenome, conta que recebeu o diagnóstico da doença quando tinha 17 anos.

Beto Magalhães / EM / DA Press
Quando soube pela internet sobre o uso medicinal da maconha para o TDAH, Lucas pesquisou tudo a respeito (foto: Beto Magalhães / EM / DA Press)
"Receitaram-me remédios, como a ritalina. Tomava 10 comprimidos por dia, com autorização médica. Tive insônia e ficava muito nervoso." Quando soube pela internet sobre o uso medicinal da maconha para o TDAH, Lucas pesquisou tudo a respeito. "Na proporção certa, balanceando o THC e o CBD, vaporizo a planta até que atinja o ponto de ebulição, para que ela não perca seus princípios ativos. Assim, a uso com a aspiração. Melhorou a minha vida", conta. Sem uso diário, a Cannabis, segundo ele, lhe trouxe qualidade de vida. "Minha hiperatividade diminuiu. Estou menos ansioso", diz. Porém, para a falta de foco, sintoma típico do TDAH, Lucas afirma que a Cannabis não o ajudou e conta com acompanhamento psicológico.

À base de ervas
Atualmente, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisadores estão debruçados sobre seis projetos – com a colaboração de outras universidades federais – que têm como objetivo o desenvolvimento de medicamentos à base da maconha. "Há efeitos do THC que podem ser terapêuticos, como são aqueles para o tratamento de dor, epilepsia e depressão. Porém, o THC tem sequelas negativas, como a perda da memória e de coordenação motora. A ideia é desenvolver medicações que não trazem esses efeitos negativos", comenta o pesquisador e professor do Departamento de Farmacologia da UFMG Fabrício Moreira, ressaltando que há registros que mostram que, desde as civilizações mais antigas, os chineses e outros povos usaram a erva para tratamentos de doenças.

Fabrício diz que o THC faz alterações no funcionamento do cérebro e, se usado por muito tempo e por várias vezes, pode haver alterações nas células, o que pode levar a doenças e transtornos psiquiátricos. No caso da dependência, ele explica que é como se o cérebro fosse se acostumando com essa presença do THC. "Quando a pessoa começa a usar, elA vai se adaptando. Todo medicamento tem dois lados, sempre. Não quer dizer que a maconha vá ser indicada para determinado tratamento. O que vai justificar seu uso é o contexto desse paciente."

POTENCIAL
"Por outro lado, há regiões específicas do cérebro em que o THC pode modular o estado de humor e, com isso, auxiliar no tratamento de doenças como ansiedade e depressão." Entre 2005 e 2007, o biólogo Rodrigo Guabiraba fez mestrado, pela UFMG, em canabinoides e inflamação, com o objetivo de pesquisar o potencial de drogas que atuam nos mesmos sítios de ação do THC. "Usamos dois compostos fornecidos por uma indústria farmacêutica que bloqueavam os efeitos da maconha. Eles se 'ligam' aos mesmos receptores a que se 'liga' o THC, porém com mais intensidade", relata.

Ao ativar ou bloquear esses receptores, Rodrigo concluiu que, além do controle da inflamção em camundongos, foi possível diminuir as dores e, em casos de câncer, controlar o crescimento de tumores. "Mas é possível entender quais as etapas das respostas e onde o THC e os canabinoides podem ser ativados porque, ao ativar esses receptores, há riscos de efeitos psicológicos", diz Rodrigo, que hoje mora na França e conta que, por lá, as discussões em torno da erva usada em prol da saúde têm menos preconceito em nível científico do que no Brasil.

Estudos pelo mundo apontam benefícios da erva para doenças como:

» OBESIDADE
Dois componentes da folha da maconha podem aumentar a quantidade de energia queimada pelo corpo humano. A descoberta pode fazer da Cannabis sativa um remédio contra doenças ligadas à obesidade, segundo informações do jornal britânico The Telegraph.

» DORES
Pesquisadores da Universidade de Oxford concluíram que a maconha pode reduzir o incômodo da dor. O THC seria o responsável por tornar a dor mais suportável. No entanto, o alívio não foi comprovado em todos os pacientes analisados. Os resultados foram publicados no jornal científico Pain.

» DEPRESSÂO
Um estudo realizado no Centro Médico da Universidade de Utrecht, na Holanda, mostrou que o consumo de maconha pode ajudar no tratamento da depressão. Os resultados da pesquisa mostraram efeito benéfico do THC em regiões de processamento de emoção.

» TRAUMAS
Pesquisa brasileira, feita na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mostrou que um componente químico da maconha pode ajudar no tratamento das sequelas emocionais deixadas por traumas.

» ESCLEROSE MÚLTIPLA
Estudos no mundo têm comprovado que o extrato da maconha possibilita atenuar a rigidez muscular em pacientes afetados por esclerose múltipla. No entanto, outra pesquisa elaborada pela Escola de Medicina Peninsular, de Plymouth (Sul da Inglaterra), mostrou que o consumo de Cannabis não reduz a progressão da esclerose múltipla, mas alivia alguns sintomas.

» CÂNCER DE MAMA
Pesquisadores da Universidade Autônoma de Madri (UAM), da Universidade Complutense de Madri e do Centro Nacional de Biotecnologia acreditam que os componentes ativos da maconha e seus derivados poderiam reduzir o crescimento do câncer de mama e a aparição de metástases. Eles constataram que os canabinoides podem deter e acabar com as células derivadas de tumores de mama.