Márcio Antônio Gatti, que apresentou seu trabalho no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), explica que a criança seria imunizada contra o estereótipo depreciativo, pelo fato de não atribuir um significado a si mesma. Ela é, de certa forma, indefesa em relação aos discursos que são elaborados sobre ela. “O sucesso da mulher no mercado de trabalho, por exemplo, no discurso machista das piadas de loira é apresentado como resultado da disponibilidade sexual e depreciado como burrice. Com os personagens que representam crianças, isso não acontece”, cita Gatti.
No humor, os estereótipos correntes sobre outros grupos sociais e etnias funcionam como simulacros, conforme explica o autor. “Mas, nas tiras cômicas que analiso, não ocorrem estereótipos que sejam correlatos de simulacros. Eles funcionam muito mais como identificadores da criança, através de características que nem sempre são realistas, imagens que são do domínio de uma sociedade e que funcionam, nos textos, como pontos de ancoragem para o discurso, como no caso da criança ingênua” afirmou o pesquisador.
Incompletude
Um dos principais estereótipos é, segundo a tese, o da “incompletude”. A criança é um ser ainda em desenvolvimento, a quem faltam características e conhecimentos esperados do adulto. “Isso pode se manifestar de diversas formas, como na falta de traquejo com regras de etiqueta, nas regras da linguagem e ainda no próprio domínio das funções corporais”, diz o trabalho. No caso dos meninos, principalmente, esse estereótipo aparece como falta de higiene e de boas maneiras.
Por outro lado, o pesquisador observa que as meninas não aparecem tanto no papel de “incivilizadas” quanto meninos no humor. Por mais contestadoras e até violentas que sejam, Mafalda e Mônica não protagonizam tiras “nojentas” como as de Calvin. “Há uma espécie de fidelidade com os estereótipos de menina que circulam pela sociedade. Preservamos um tipo de memória sobre meninos e sobre meninas, sobre o que se espera que façam e digam. É assim que a delicadeza está muito mais associada às meninas que aos meninos. Para estes, na verdade, isso não é bem aceito. É como se, para ser menino, devesse haver algum tipo de desleixo. Já para ser menina, não”, diz Márcio Gatti.
É claro que há exceções, como, a Lucy, da turma de Charlie Brown, que transgridem essa delicadeza. “Essa personagem mostra uma faceta muitas vezes malvada, sarcástica. Mas isso não faz com que os estereótipos de menina não sejam rememorados pelo leitor quando se depara com um material assim”, completa o autor.
Gatti pontua que a visão estereotipada não é, necessariamente, preconceituosa, uma vez que há também os estereótipos de identificação. “Mas é inegável a relação entre as duas categorias, estereótipo e preconceito. Isso não quer dizer que somente haja estereótipos que sejam retratos de preconceitos”, acrescenta. “De certa forma, estamos imersos em estereótipos, mas não somente neles, como também em protótipos, em clichês, frases feitas de toda natureza, fórmulas etc. Isso revela uma faceta do modo como nos organizamos. Em muitos casos, os significados estão dados de antemão e nós os seguimos. Mas seria ingenuidade pensar que estamos imersos aleatoriamente nos estereótipos. Na verdade eles são ‘selecionados’ pelos discursos, e estes sim afetam os sujeitos e os fazem aceitar ou refutar um modelo”, conclui.
Curiosamente, as tirinhas selecionadas pelo pesquisador, principalmente as de Calvin, Peanuts (turma do Charlie Brown) e Mafalda, têm em comum outra característica que pode justamente servir como um escape a esses clichês sociais. A ingenuidade-clichê da criança muitas vezes é usada para motivar um 'insight' sobre a sociedade ou o mundo adulto. As reflexões deprimidas de Charlie Brown, as provocações de Mafalda e os questionamentos de Calvin, ao mesmo tempo que reproduzem estereótipos, tentam ajudar na reflexão sobre alguns padrões que incomodam os autores e uma parcela da sociedade.
Com informações da Agência Unicamp