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A explicação demonstra o primeiro desafio: o mal é multifacetado. Em cada tecido e em cada hospedeiro, ela se manifesta de maneira distinta e responde ao tratamento de forma particular. A partir daí, surgem conceitos como biologia molecular tumoral, personalização do tratamento, medicina de precisão e terapia alvo.
Controlados os fatores externos que podem estimular a proliferação das células, é preciso conhecer a genética do tumor. A tarefa não é simples, embora tenha havido grandes avanços na última década. A dificuldade começa pelos números. Cada uma de nossas células tem entre 25 a 30 mil genes. Alguns estão ativos, outros, não, dependendo da natureza da célula. O câncer de mama, por exemplo, tem pelo menos uma dezena de tipos diferentes, que reagem aos tratamentos de maneira distinta.
O desafio, no caso de um tumor, é descobrir quais genes estão alterados e provocam a ação desordenada das células. Só assim é possível desenvolver drogas certeiras, que corrijam a anormalidade específica. “O conhecimento mais importante das últimas décadas foi o de que o câncer acontece porque o DNA das células se modifica e poderá fazer com que as células tenham um comportamento maligno. Uma das dificuldades é que os genes alterados no início da doença podem não ser os mesmos no fim”, explica o oncologista Carlos Barrios, professor do PUC-RS.
Os avanços para traçar a identidade do tumor vêm em forma de exames cada vez mais sofisticados. Entre eles, há a imuno-histoquímica, que define o perfil de proteína da célula e permite selecionar com mais eficiência os alvos terapêuticos. Somado a esse teste, há exames ainda pouco acessíveis, como o de hibridização, chamado FISH, capaz de detectar mutações em cromossomos para diversos tipos de câncer. “Com esses avanços e melhor conhecimento da biologia molecular do tumor, classificamos melhor as doenças, identificamos como o tumor se comporta, como vai responder ao tratamento e identificamos alvos terapêuticos”, considera Murilo Buso, oncologista do Centro do Câncer de Brasília (Cettro) e médico do serviço de Oncologia Clínica do Centro de Câncer.
Justamente essa diferença genética do tumor pode definir quem se cura e quem vive sadio, mesmo com a presença da patologia. O oncologista que acompanha o quadro de Ana Alice Carvalho, 47 anos, não consegue dar uma justificativa definitiva para que a moça conviva há 12 anos com um tumor que começou no intestino grosso e foi descoberto em estágio avançado. Uma das possíveis explicações pode ser justamente a variação genética do tumor, ainda desconhecida, que responda melhor ao tratamento e garanta que ela conviva com a doença sob controle.
Ana Alice trabalhava em hospital. Sua função era engessar ossos fraturados. Em uma rotina na qual via tanta gente doente, nunca suspeitou que passaria mais de uma década combatendo um câncer. Até que um dia começou a notar que se sentia mal quando comia. Fez uma ecografia de abdômen e descobriu uma mancha no fígado. Era um tumor maligno.
Investigando mais a doença, a notícia veio como uma bomba. O câncer, na verdade, tinha começado no intestino e a presença de células tumorais no fígado já era resultado de uma metástase. A doença tinha se alastrado, dando à jovem, na época com 35 anos, uma expectativa de vida de apenas dois meses, segundo as primeiras avaliações médicas.
A partir do diagnóstico, a moça de fala acelerada e contadora de histórias travou uma briga com o mal, que até hoje não foi vencido. Hóspede e hospedeira convivem, porém, em harmonia. O câncer deixou inúmeras cicatrizes na barriga de Ana, que já retirou todo o intestino, parte do fígado e um pedaço do pulmão. Ela fez incontáveis quimioterapias, perdeu as contas de quantas vezes os fios de cabelo caíram. Abandonou o trabalho com medo de que o pó do gesso pudesse piorar sua saúde.
Nos cinco primeiros anos, a doença foi controlada, até que um tumor apareceu no pulmão. “Eu falei: ‘vamos lutar novamente. Da outra vez, eu lutei e venci’.” Nova quimioterapia, mal-estar, fraqueza. Vinham dias melhores, de mais força, com a firme decisão de viver. Ela fez a cirurgia e retirou o nódulo no pulmão. Anos mais tarde, ele voltou. Ana não esmoreceu. Mais químio, dor nas pernas e dias de cama. Radioterapia, mudança dos hábitos, da alimentação. Fez dança, pilates. O tumor reduziu em 35% o seu tamanho. Agora, as descompensadas células exigem acompanhamento trimestral.
O tumor continua lá, mas a doença segue estável, e Ana segue a vida. Não foi curada, mas não deixou que o câncer a desanimasse. “Nunca deixei cair uma lágrima por causa da doença. Eu tenho de ser mais forte do que essa situação”, explica. Se suas crenças ou as características de seu tumor permitem o controle do mal não se sabe. Ana espera que ele não apareça em outro tecido. Se voltar, porém, ela o enfrentará. Não deixa de fazer planos. Está de malas prontas para Porto Seguro, onde vai pular o carnaval. Descanso merecido para quem voltou a estudar. Escolheu gestão pública e quer fazer pós-graduação em serviço social. “Enquanto puder levar, terei esperança. Quem me disse que vou morrer disso?”, desafia.
A possibilidade de ser saudável mesmo com o tumor é uma aposta da oncologia. “Um dos caminhos para o câncer que não curamos é a cronificação da doença. A ideia é controlá-la por anos”, afirma Paulo Hoff, diretor do Centro de Oncologia do Hospital Sírio-Libanês – SP. Isso tem se tornado possível com o desenvolvimento de novas drogas que atacam as células defeituosas de maneira personalizada. “Hoje, temos cerca de 800 moléculas novas sendo testadas para tratar diferentes tumores”, afirma Paulo.
A chamada medicina de precisão, que identifica os alvos a serem atingidos, permite alcançar números otimistas. Um dos primeiros quadros de câncer a se cronificar foi a leucemia mieloide. Há 14 anos, surgiu um medicamento que controla a doença em doses diárias. Um remédio por dia e é possível viver por tempo indefinido com o diagnóstico. Outros tantos tumores também têm aumentadas as possibilidades de controle por períodos maiores. “Antes, um paciente com pulmão metastático tinha oito meses de vida, em média. Agora, dependendo do subtipo, pode chegar a 60 meses”, informa o oncologista Murilo Buso.
Para quem desenvolve o tumor de intestino metastático, novas drogas possibilitaram aumento da expectativa de vida de 18 meses para até 10 anos. Da mesma maneira que, a partir de 2004, novas drogas garantiram o tratamento prolongado do câncer de próstata e, nos anos anteriores, outras medicações triplicaram a expectativa de vida de câncer de rim avançado, antes com prognóstico médio de um ano. Parece pouco para quem busca esquecer a certeza da morte? “Mas a oncologia cresceu ganhando meses de vida”, lembra Murilo Buso.
Comemorar cada mês a mais de vida. Essa é a forma como a paraíbana Roberta Domingues, 36 anos, encara a realidade. Diagnosticada em 2009 com câncer de pulmão no estágio mais agressivo e com metástase no sistema linfático, deram a ela três meses de vida. Com muita sorte, e se resistisse à quimioterapia, ela, que nunca fumou, poderia viver um ano. Seu tumor não tem uma genética definida e por isso tentaram uma droga que não era específica para seu caso. “Foi um tiro no escuro”, diz. Parece ter sido certeiro, porém. A moça já completa mais de quatro anos de controle da doença.
O pulmão, antes tomado por tumores, segue limpo nesse período. Nenhum sinal da volta da doença nesse órgão. No entanto, as células doentes caíram na corrente sanguínea e acabaram se acomodando em outros tecidos. É a chamada metástase. O tumor reapareceu no cérebro no ano passado. Treze deles, ao todo. Um diagnóstico que veio depois de uma convulsão. Ela enfrentou mais uma vez o inimigo. Fez químio forte. Teve de deixar o trabalho. As pernas enfraqueceram durante a rádio e seguia para o tratamento em cadeira de rodas. Os cabelos caíram novamente, e os traços do rosto ganharam contornos inchados, decorrentes do uso de corticoide. Nem por isso, porém, Roberta perdeu a beleza, nem a gargalhada, que solta espontânea, enquanto relembra a trajetória.
Depois do tratamento, 10 dos tumores sumiram. Os outros três resistentes seriam combatidos, na semana passada, com a radiocirurgia. Enquanto espera o resultado, ela acompanha o estado de sua saúde por uma outra inovação na luta contra o câncer: o PET-CT, um exame de imagem anatômico e funcional que analisa a atividade das células tumorais. O PET ajuda a saber mais sobre a doença, identifica metástases, extensão e estadiamento do tumor. Durante a entrevista por skype, a moça recebe uma ligação da clínica onde se trata, nos Estados Unidos. Eles queriam lhe dar o resultado do último PET feito. Volta a falar com a voz embargada. Nenhum outro tumor espalhado. Roberta chora, mas de alegria.
Ela tem fé. Em Deus e na medicina. Também tem medo da doença, de morrer e de deixar saudades. O pensamento ruim vem, mas vai embora rapidamente. Sabe que precisa se focar no seu tratamento. Por isso, reza. O pensamento tem poder curativo, ela acredita. Na incerteza, mudou a alimentação e retirou do cardápio o que não faz bem a ninguém. Do futuro não pode dizer nada, mas não se entrega: “Senão, a doença vai tomar conta de você”, define.
"Enquanto puder levar, terei esperança. Quem me disse que vou morrer disso?” - Ana Alice Carvalho, 47 anos
"Antes, um paciente com pulmão metastático tinha oito meses de vida, em média. Agora, dependendo do subtipo, pode chegar a 60 meses” - Murilo Buso, oncologista
"Antes, um paciente com pulmão metastático tinha oito meses de vida, em média. Agora, dependendo do subtipo, pode chegar a 60 meses” - Murilo Buso, oncologista