Doença misteriosa, parecida com a pólio, avança nos EUA e causa alarme

Doença que cessa o movimento dos braços e das pernas acometeu mais de 20 crianças nos Estados Unidos em um ano e meio. O vírus encontrado em duas delas é da mesma família do micro-organismo causador da temida paralisia infantil

por Bruna Sensêve 07/03/2014 11:30

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De maneira misteriosa e devastadora, entre 20 e 25 crianças foram diagnosticadas na Califórnia (EUA) com uma síndrome parecida com a poliomielite em seu pior aspecto: a paralisia flácida aguda, principalmente dos membros inferiores. Ainda difícil de ser caracterizada pelos cientistas debruçados sobre exames, testes e registros desde 2012, quando surgiu o primeiro caso, a doença não parece ter um potencial epidemiológico como o mal a que se assemelha. No entanto, o momento agora é de alerta para médicos e cientistas que buscam uma possível relação entre os casos, identificar o agente causador dos sintomas e medir seu potencial de infecção. Especialistas brasileiros garantem que não há motivo para alarde, já que a poliomielite foi erradicada do território nacional há mais 20 aos e não existem registros no país de casos similares aos observados nos Estados Unidos.

Relatos mais aprofundados sobre as primeiras cinco crianças diagnosticadas serão feitos durante a Reunião Anual da Academia Americana de Neurologia, que acontecerá entre 26 de abril e 3 de maio deste ano (veja infográfico). Os dois pesquisadores principais do trabalho são Emanuelle Waubant, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, e Keith Van Haren, professor de neurologia da Universidade de Stanford. As duas dezenas de casos registrados ocorreram nos últimos 18 meses, em crianças entre 2 e 16 anos. Todas estavam regularmente vacinadas contra a poliomielite e com uma boa resposta imunológica à vacina. “A paralisia pode ser grave: de um braço paralisado no mínimo para ambos os braços e as pernas paralisados”, detalha Waubant. Ela explica que a recuperação desses pacientes tem sido muito ruim, apesar de eles terem sido submetidos a um tratamento agressivo.

CB / DA Press
Clique para ampliar e saber mais sobre a doença misteriosa (foto: CB / DA Press)
A poliomielite é uma doença contagiosa que, muitas vezes, causa a paralisia. Os Estados Unidos experimentaram uma epidemia da enfermidade em 1950, até que uma vacina foi introduzida. Os pesquisadores ressaltam que, embora o poliovírus tenha sido erradicado da maioria dos países, outros patógenos também podem ferir a coluna vertebral levando a uma síndrome parecida à doença. Um dos fatores que começa a chamar atenção para a misteriosa infecção é que, em duas das cinco crianças que receberam os primeiros diagnósticos, foi encontrado o enterovírus 68, micro-organismo da mesma família que o poliovírus causador da poliomielite.

A pesquisadora da Universidade da Califórnia conta que, ainda assim, não está claro se o enterovírus 68 está relacionado com a apresentação da doença. Isso porque os casos analisados foram trazidos a conhecimento depois de várias semanas e, assim, amostras para estudos virais podem não ter sido contributivas. Ela destaca que a situação ficou ainda mais evidente quando as crianças foram submetidas a tratamentos como a entrega intravenosa de imunoglobinas e a troca de plasma.

Waubant reforça que um trabalho intenso é realizado com a comunidade médica para aumentar a conscientização sobre esses casos a fim de que eles possam ser diagnosticados mais cedo e amostras adequadas possam ser enviadas imediatamente ao Departamento de Saúde Pública da Califórnia. “Não houve nenhum aumento rápido nesses casos nos últimos 18 meses, de modo que não há evidência de uma epidemia”, acrescenta. Ela garante que não há qualquer motivo para pânico. A única recomendação direcionada ao público norte-americano é que, se, em um cenário remoto, uma criança ou um adulto desenvolver uma paralisia abrupta, a pessoa deve ser levada a um neurologista o mais rápido possível.

O trabalho nas instituições norte-americanas surgiu quando os cientistas notaram os casos nos centros médicos em que atuam e decidiram procurar histórias semelhantes no resto da Califórnia. Eles revisaram todos os casos parecidos ao da pólio entre crianças que tiveram amostras descritas em programas neurológicos e testes de vigilância do estado entre agosto de 2012 a julho de 2013. Foram incluídos na análise casos de de paralisia de um ou mais membros sem a constatação de situação anormal na medula espinhal por meio de exames de ressonância magnética. Não foram consideradas crianças que preenchiam os critérios para a síndrome de Guillain-Barré e botulismo, que podem causar sintomas semelhantes.

Sem vacinas
Segundo o professor da Santa Casa de São Paulo Marco Aurélio Palazzo Safadi, também membro do Departamento Científico de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, a doença misteriosa gera um quadro que é igual ao da poliomielite, mas não é exclusivo do vírus da pólio. “Nos tempos pré-vacina, os casos de paralisia aguda flácida eram classicamente associados ao vírus da pólio, que era o grande vilão. Agora, continuamos tendo casos assim, mas, felizmente, causados por outros agentes.” Entre esses patógenos, estão os do grupo dos enterovírus, ao qual também pertence o poliovírus.

“Essas outras causas são muito mais raras e não existem vacinas para elas. Portanto, continuam circulando e acometem milhões de indivíduos todos os anos. O que chama atenção para a Califórnia é que todos os casos são relatados no mesmo local”, analisa. Outro ponto destacado pelo infectologista é que não foi observado um vínculo epidemiológico direto entre as crianças. “Ou seja, não eram parentes, primos, colegas de escola. Os casos ocorreram de forma independente.”

Safadi indica que não há motivo para alarde. Já existem registros na literatura de vários surtos de paralisia aguda flácida por um determinado enterovírus. “Às vezes, aparece um enterovírus mais agressivo, com uma capacidade maior de provocar esse tipo de evento. Esses surtos não tinham exatamente a características do de agora. Cada um é peculiar”, compara.

Segundo o infectologista, a descoberta desses surtos normalmente se dá da mesma forma. As autoridades percebem um número maior de casos no mesmo local, levantando a suspeita do problema. “Alguns desses surtos foram associados especificamente a um tipo de vírus. Às vezes, eles cessam naturalmente, é uma evolução do micro-organismo”, diz Safadi. Ele lembra de um episódio na Jamaica há cerca de 20 anos. Descobriu-se que era um ecovírus, que é um subtipo de enterovírus. “Era mais agressivo. Também não era pólio. De repente, passou, não continuou progredindo.”

Na Síria
Em novembro do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) confirmou uma nova epidemia de poliomielite em uma província no nordeste da Síria e disse que há um alto risco de ela se espalhar pela região. A presença do vírus foi confirmada em pelo menos 10 de 22 suspeitos em Deir al-Zor, sendo que a maioria dos afetados tinha até 2 anos e acredita-se que nunca tenha sido vacinada contra a doença incapacitante ou tenha recebido apenas uma dose da vacina oral, em vez das três necessárias para assegurar a proteção. A Síria não sofria um surto de poliomielite desde 1999.

Soraia Piva / EM / DA pRESS
(foto: Soraia Piva / EM / DA pRESS)
Menor poder epidemiológico

“Esse enterovírus 68 encontrado pertence ao mesmo grupo dos poliovírus, assim como outros que causam a meningite, por exemplo. Existem enterovírus não pólio que têm a capacidade de causar doenças no sistema nervoso central, assim como a pólio. Acredito que o raro no trabalho pode ser o tipo de vírus encontrado. No entanto, muitos enterovírus são encontrados em fezes de pessoas saudáveis. Portanto, não podemos dizer muita coisa dessa descoberta. Podemos comemorar que não é o do pólio, o único enterovírus que tem uma vacina, mas que se espalha mais forte e causa epidemias. Os outros causam doenças e afetam o sistema nervoso, mas são mais raros e possuem um poder epidemiológico mais baixo.”

Edson Elias, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz