Saúde

Sociedade precisa evoluir muito nas questões de gênero

'Nós podemos fazer isso' - frase que marcou a Segunda Guerra Mundial, We can do it, quando as mulheres largaram o lar para invadir as fábricas, está atual como nunca

Carolina Cotta

Quando faltaram homens, as mulheres estavam prontas para assumir a produção de armamento. Eles ficaram nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial e elas deixaram os cuidados com o lar para se tornarem operárias. Foi dentro das fábricas que surgiu o cartaz com a frase que se tornou um símbolo poderoso que atravessa gerações. A mulher forte, de lenço no cabelo, que bate no braço e diz: We can do it (Nós podemos fazer isso)! Naquele momento, a mulher chegava ao mercado de trabalho e seu acesso à escolarização permitiria melhores colocações no futuro. Avançamos muito no processo de escolarização, mas, para Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem), avançamos pouco nos comportamentos, atitudes e valores que falam das relações de gênero.


“A mulher se escolariza, mas onde? Em que cursos? Permanece enraizado na sociedade um modo dicotômico no estabelecimento das relações de gênero. O masculino segue ligado ao público e o feminino, ao privado”, questiona. Segundo a pesquisadora, os homens não chegam a essa realidade do privado, dos cuidados com os filhos, com a casa. Mesmo que estejam mais participativos, ainda tratam essas tarefas como de responsabilidade feminina. Já as mulheres, quando chegam ao mercado de trabalho, o fazem deixando uma âncora no privado. O modelo se reproduz na escolha da profissão. “As mulheres continuam nas áreas ligadas ao privado, na esfera dos cuidados. Estudam educação, psicologia, enfermagem. As áreas e cargos de poder seguem masculinas”, alerta Mattos. E as mulheres que as escolhem sofrem preconceito.

Andrea Martins, copiloto da Gol, diz que já presenciou alguns passageiros surpresos, mas nada que a fizesse desistir da profissão
Tal realidade se reproduz no céu e na terra. Dos 1.500 pilotos da Gol, apenas 24 são mulheres (seis comandantes e 18 copilotos). Em 8 de março elas estarão à frente de cinco voos com tripulação exclusivamente feminina que cruzarão o país. No ano passado, no Aeroporto Internacional de Confins, um engenheiro se incomodou de estar em um voo da Trip a cargo de uma comandante mineira. O passageiro foi convidado a sair da aeronave sob vaias dos demais. A copiloto da Gol Andrea Martins, de 32 anos, formada em aviação civil, já viu passageiros surpresos, mas foram situações pontuais. Dos colegas ela tem o apoio por estar em uma profissão dominada pelos homens.

Andrea cursava comunicação e quando foi a um aeroclube se informar sobre um curso de piloto privado se apaixonou. O fato de os pais serem aeronautas também influenciou a escolha. No início do curso ela não se sentiu muito intimidada, mas o fato de ter duas colegas na sala ajudou um pouco. “Acredito que é uma profissão dominada por homens por uma questão cultural. Ainda hoje muitas mulheres nem sabem que podem ser pilotos. Conheço poucas, de fato ainda somos um grupo pequeno. Existem algumas particularidades em conviver nesse universo predominantemente masculino, mas nos acostumamos e aprendemos a lidar com isso. Cada vez mais os paradigmas estão se quebrando e a presença de uma mulher em uma cabine de comando está se tornando algo ‘normal’”, acredita a aeronauta.

Marlise Mattos chama a atenção para o modo como elas estão se colocando no mercado de trabalho. Segundo a pesquisadora, muitas mulheres bem-sucedidas mimetizam o mesmo estilo dos homens de exercer o poder. “Essas não estão tão à frente. Chegar lá fazendo exatamente o papel que esperavam de um homem não é uma ruptura. Não acredito em essência. Se existe, por exemplo, um modo de gestão feminino, ele é fruto da socialização.”

BANDEIRA

Coletivo Ana: Laura Lopes, Luiza Brina e Irene Bertachini (no alto); Deh Mussulini, Luana Aires e Leonora Weissmann (meio); Leopoldina e Michelle Andreazzi
Em Minas, esse lugar estabelecido dos homens em algumas áreas virou uma bandeira. DehMussulini, Irene Bertachini, Michelle Andreazzi, Leonora Weissmann, Leopoldina, Laura Lopes, Luana Aires e Luiza Brina formam o Coletivo Ana, um movimento de mulheres compositoras criado em 2011 para incentivar e revelar a crescente cena de autoras no país. As oito jovens “cantautoras”, como se entitulam, fazem shows e se preparam para o lançamento do primeiro CD do grupo. Irene Bertachini, de 27 anos, idealizou o Ana junto com Deh Mussulini ao perceber como o mundo da canção, historicamente, era marcado pelo masculino, principalmente o lado da composição e dos instrumentistas.

Pesquisadora desse universo, Ana Carolina Murgel, em seu artigo “A canção no feminino, Brasil, Século 20” denuncia e tenta reverter o apagamento da experiência feminina na canção. Segundo ela, é comum se ouvir falar da inexistência ou, ao menos, da irrelevância da mulher no cenário da composição musical. Na música popular, as mulheres adquirem algum destaque nessa área somente a partir da segunda metade do século 20 e, ainda assim, em número consideravelmente inferior aos homens. Segundo Irene, não se trata de um movimento feminista. “Só queremos reforçar o valor das mulheres e estabelecer essa igualdade. A ideia é mostrar que as mulheres compõem e produzem sua própria arte. Se você pede a alguém para dizer o nome de 10 compositoras brasileiras a pessoa não lembra, mas são várias”, declara.

Michelle Andreazzi, de 31 anos, acredita que o Coletivo Ana veio para valorizar a mulher enquanto compositora e promover seu empoderamento. Ela mesma, apesar de compor, não se reconhecia e não se entitulava como compositora. Foi a partir do Ana que passou a ser conhecida pelo que produz e não somente pelo que interpreta. “Se componho e não me enxergo como compositora, e não me coloco como tal, acabo enfraquecendo a participação das mulheres nessa área”, acredita Michelle.