"Comia o que aparecia na minha frente. Pizza, lasanha, doces. Chegava a passar mal de tanto comer, mas assim que melhorava, comia de novo", confessa a jovem Ludmila Rodrigues de Aguiar, de 29 anos. Tendo chegando a pesar 179 quilos, Ludmila, que já passou por uma cirurgia de redução de estômago e hoje tem 150 quilos, diz não saber o que a levou a não ter controle sobre a comida. Porém, a ciência já começa a traçar uma resposta para essa dúvida. Comparando a obesidade com o alcoolismo, o que tem sido feito por muitos cientistas no mundo, pesquisadores de várias universidades do Brasil, em um trabalho conjunto, apontam que as duas doenças têm algo em comum: a compulsão. A conclusão, divulgada neste terceiro dia da série do Estado de Minas “Muito além do peso”, serve, segundo os responsáveis, como uma reflexão para auxiliar o tratamento de obesos.
Em parceria com as universidades federais do Paraná e de São Paulo, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) estão debruçados há pelo menos dois anos nesse trabalho, que tem como objetivo entender a perda de controle que um obeso tem diante da comida e que um alcoolista tem diante das bebidas alcoólicas. "Fizemos, nesse primeiro momento, vários modelos em camundongos com uma ingestão forçada de alimentos e com doses diárias de etanol. Vimos que tanto os que comeram quanto os que receberam etanol tinham genes comuns envolvidos no comportamento compulsivo e esse foi o grande elo entre as doenças", comenta a coordenadora do projeto Ana Lúcia Brunialti Godard, bióloga e professora de genética humana da UFMG.
Segundo ela explica, a leptina é produzida por esses genes e é um hormônio que todos nós temos e está associado à saciedade. "Mas percebemos que, no caso da obesidade e do alcoolismo, ela está envolvida na compulsão. Mas não é só ela, há um conjunto de genes. Sabemos que em uma pessoa normal a leptina traz a sensação de satisfação depois que o indivíduo ingere uma quantidade de alimentos. Mas, naquela pessoa que não tem o controle sobre a comida, a leptina pode estar atuando no cérebro para que esse obeso nunca deixe de sentir fome", comenta Ana, dizendo que o próximo passo da pesquisa é justamente saber quando e como esse hormônio atua. "Um paciente que sofre com transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), por exemplo, também age com compulsão", compara.
Para conhecer o comportamento da leptina, os pesquisadores convocam obesos voluntários que queiram participar da pesquisa. "Ao chegar a esse ponto, vamos buscar uma molécula que seja capaz de bloquear a leptina ou os outros genes que levam à compulsão", diz a pesquisadora, lembrando que a condição de obesidade leva ao estado de desequilíbrio energético pelo consumo excessivo de alimentos. "Esse desequilíbrio pode levar a mudanças no sistema nervoso central, nosso cérebro, que é responsável pelas sensações. No caso da obesidade, as alterações cerebrais estão ligadas ao mecanismo de recompensa e resultam na ingestão compulsiva semelhante ao fenótipo visto no consumo de drogas. Os circuitos de recompensa cerebrais envolvidos nos mecanismos de compulsão alimentar são os mesmos que perpetuam o vício do álcool."
Ricardo Machado Hagler, de 50, já teve os dois vícios. Chegando a pesar 185 quilos, ele conta que há cinco anos se tornou obeso. "Fui motorista de ônibus e, como não tinha muito horário, comia depressa e comida sem qualidade. Nesse período também fui alcoolista e acho que a compulsão pelo álcool era maior que a pelo alimento. Não sei mensurar esses dois." Ricardo diz que a relação que ele faz da obesidade com o álcool é que a bebida o fez ganhar ainda mais peso. "É complexo demais. Estou há um ano sem beber e peso, atualmente, 159 quilos. Mas tenho feito natação, caminhadas e hidroginástica, além de ter um acompanhamento psicológico e nutricional."
COMPLEXO
Na opinião do endocrinologista membro da comissão científica da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) e presidente da Sbem/Minas Gerais, Paulo Augusto Carvalho Miranda, a falta de controle dos obesos é um assunto complexo, como pontuou Ricardo. "Observamos que os pacientes com grau 3 têm, na maioria das vezes, dificuldades em quantificar as calorias ingeridas ou mesmo organizar o dia a dia alimentar. Existem outras coisas muito além do processo alimentar, como as questões genéticas, ambientais e da infância", comenta Miranda, dizendo que a queima e consumo de calorias é um dos sistemas mais complexos do nosso organismo. "Essa complexidade envolve órgãos variados e eixos hormonais. Temos dezenas de hormônios que agem no aumento do apetite e outros que atuam no aumento da saciedade e têm o controle imediato sobre ela. Acredito que a leptina faz os dois. Ela é produzida pelo tecido adiposo e está diretamente ligada à quantidade de tecido gorduroso que temos no corpo", explica.
Assim que descoberta, segundo lembra o especialista, a leptina já foi uma aposta no tratamento da obesidade. "Mas a grande frustração é que ela não teve o potencial para o tratamento. Ela é apenas um dos eixos que agem no mecanismo da preservação do peso." É por isso que os pesquisadores da UFMG querem descobrir os outros hormônios que estão agindo nessa compulsão.