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Stanley Hazen, líder do estudo, conta que começou a questionar o papel cardioprotetor do HDL ao perceber o efeito limitado de medicamentos usados para elevar as taxas do bom colesterol. Embora conseguissem fazer isso, as drogas não diminuíam os riscos de doenças cardiovasculares. Hazen e outros pesquisadores também acharam curioso que os níveis de HDL geneticamente determinados não estivessem associados necessariamente ao risco de uma pessoa desenvolver ou não uma doença coronária, como estudos anteriores haviam comprovado.
Essas aparentes contradições estimularam o interesse em compreender melhor o papel do HDL nas doenças do sistema cardiovascular. Os pesquisadores, que contaram também com especialistas da Universidade Cleveland State University, partiram do princípio de que quem exerce a má influência sobre o bom colesterol é uma enzima chamada de mieloperoxidase (MPO). Outros estudos haviam indicado que essa enzima é responsável pela oxidação da principal proteína estrutural do HDL, a apolipoproteína A1 (apoA1), que compõe aproximadamente 75% do bom colesterol e tem como uma das principais funções varrer a gordura ruim das artérias.
“A apoA1 está na membrana do HDL. Se não fosse ela, ele não teria tantos benefícios. Esse colesterol bom funciona como um lixeiro que recolhe o colesterol ruim gerado pela quantidade de porcarias que comemos”, explica o endocrinologista Sergio Vencio. Quando sofre a alteração, a apoA1 não permite que o HDL retire o acúmulo de gordura gerado pelo LDL, o colesterol ruim.
Exame completo
Para Anselmo Mota, cardiologista do Hospital do Coração do Brasil, com a descoberta, os médicos poderão passar a ter a possibilidade de identificar melhor os riscos de doenças cardiovasculares. “A gente só vê como estão as taxas de HDL e procuramos formas de elevá-las, mas, agora, sabemos que é preciso prestar atenção não só na quantidade, mas também na atividade desse colesterol nas artérias”, analisa. O especialista também reforça a importância de não tratar os exames de colesterol de uma forma superficial. “Essa coisa do bom ou ruim não é tão simples assim. Essa pesquisa veio nos mostrar que a cadeia de reações é muito complexa e pode abrir novas possibilidades para o tratamento e o controle do colesterol”, acredita Mota.
As propriedades cardioprotetoras do HDL têm sido estudadas e relatadas extensivamente, mas todos os ensaios clínicos de medicamentos destinados a aumentar os níveis do bom colesterol não conseguiram até agora realmente melhorar a saúde cardiovascular. Para entender melhor esse paradoxo, os autores da pesquisa passaram os últimos cinco anos estudando o processo de oxidação sofrido pela substância.
Primeiro, desenvolveram um anticorpo monoclonal que conseguiu identificar a apoA1 e as partículas de HDL que foram modificadas pela MPO. Com isso, descobriram também como se dá o processo de alteração das características do colesterol bom. Nessa primeira fase, os testes foram feitos in vitro. Na segunda, a equipe testou o sangue de 627 pacientes do Departamento de Cardiologia da Cleveland Clinic em busca de qualquer sinal dessa metamorfose. Descobriram que aqueles com níveis mais altos de HDL modificado tinham o risco elevado de serem acometidos por problemas cardiovasculares.
Os americanos descobriram que, num quadro em que placas de gordura entopem e endurecem as artérias, uma grande proporção de apoA1 é oxidada. Ao perder os efeitos benéficos, ela passa a ser a oxTrp72-apoA1, uma versão maléfica da proteína. De acordo com os pesquisadores, a oxTrp72-apoA1 está presente em pequenas concentrações na circulação sanguínea, mas corresponde a 20% da apoA1 nas artérias obstruídas.
“Identificar a estrutura disfuncional da apoA1 e o processo que a faz promover as doenças em vez de prevenir é o primeiro passo rumo à criação de testes e tratamentos para os problemas cardiovasculares”, acredita Hazen. Os integrantes do estudo acreditam que a descoberta abre a possibilidade de desenvolvimento de testes clínicos que meçam, além do nível HDL, a função que ele exerce no sistema cardiovascular do paciente.
Influência genética
Jorge Eduardo Soares Pinto, professor de clínica médica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), não acredita que os resultados divulgados mudarão a prática da medicina. “Pelo menos não amanhã”, pondera. Ele explica que ainda não existe nenhuma maneira de dosar em laboratório a oxidação do HDL. “Além disso, talvez nem todas as pessoas sofram com esse problema. Isso não está no estudo, mas pode ser que somente alguns tenham uma maior predisposição genética a essa oxidação negativa”, especula o professor, ressaltando que o estudo é “respeitável, com uma quantidade expressiva de pacientes estudados”, mas frisa que mais pesquisas são necessárias para o desenvolvimento de testes comerciais.
Independentemente da viabilidade desse tipo de exame, Anselmo Mota aconselha que o HDL esteja sempre acima de 60ml/dl. “O LDL alto ainda é sinônimo de maior incidência de doenças cardiovasculares. A única coisa que muda é que, agora, os médicos sabem que apenas estar alto não é suficiente, mas precisamos de mais estudos para poder direcionar melhor essa ideia”, avalia. O cardiologista ressalta que alimentos riscos em gordura insaturada, como castanhas, nozes e peixes, devem ser priorizados nas dietas. “Eles vão manter o colesterol em dia. E, claro, as pessoas precisam sempre praticar atividades físicas e evitar o tabagismo.”
Novo limite
Depois de revisar recomendações sobre os índices de risco do colesterol, a Sociedade Brasileira de Cardiologia divulgou, em setembro, a quinta Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose. O documento propõe que a taxa do colesterol ruim fique abaixo de 70 mg/dl. O novo padrão divide os pacientes em três categorias: alto, médio e baixo risco para problemas coronários na próxima década. O médico vai indicar o tratamento a partir da categoria em que a pessoa se enquadrar.
Sergio Vencio, endocrinologista
Exame genético
“Quando a gordura é oxidada, ela se deposita dentro das artérias. Esse processo ativa células de defesa, os monócitos, que vão comer a gordura. Isso tem um efeito colateral, a inflamação, que termina no entupimento das artérias. O HDL não deixa essa gordura ser oxidada. Mas esse estudo mostra que, por algum motivo, em algumas pessoas, a apoA1, que carrega o LDL antes de ele oxidar e inflamar, se torna disfuncional, aumentando as chances de infarto. Quando um médico pede um exame, ele vai receber os resultados do colesterol total. O do HDL, do LDL e dos triglicérides. Esses exames, porém, ainda não avaliam a função do colesterol, só a quantidade. Para isso, precisa-se desse exame genético proposto pelo estudo. Pode ser que nem todas as pessoas sofram com essa oxidação. Existe uma população na Itália, em Milão, que tem uma mutação genética caracterizada pelas altas taxas de apoA1 e eles não têm problemas no coração”
Milhões de vítimas
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), um terço das doenças do coração são causadas pelo colesterol alto. Em 2011, a OMS registrou 17 milhões de mortes em decorrência de acidente vascular cerebral (AVC) e infarto do miocárdio. Na maioria dos casos, constatou-se nível elevado de colesterol LDL no sangue, doença conhecida como dislipidemia. Uma redução de 10% nos níveis de colesterol em homens com 40 anos poderia diminuir em 50% o risco de doenças cardíacas dentro de cinco anos. Em homens de 70 anos, a queda seria de 20%.