Anteriormente, Hurd havia constatado, também em camundongos, que a exposição precoce à maconha aumenta o risco de, na idade adulta, se buscar compensações químicas para satisfazer o cérebro em drogas mais pesadas. Agora, ela resolveu investigar se o consumo teria implicações para as gerações futuras, mesmo sem exposição direta à substância psicoativa.
“Estudos evidenciam que o uso de drogas, incluindo maconha, por parte dos pais, traz prejuízos aos filhos. Mas essas pesquisas levam em consideração o consumo durante a gestação e na época da concepção. Queríamos saber se o uso de drogas antes disso poderia trazer implicações negativas à descendência”, explica Hurd. O resultado da pesquisa indicou que ratinhos cujos pais tiveram contato com a principal substância psicotrópica da maconha, o THC, durante a adolescência tinham mais riscos de exibir comportamentos compulsivos e de buscar a autoadministração de heroína.
Isso acontece, explica Hurd, por causa da epigenética. Esse conceito se refere a características transmitidas à geração seguinte sem que tenha havido uma modificação no DNA. Alguns estudos têm fornecido evidências fortes de que o vício pode ser hereditário. Nesses casos, os pais com genes que os tornam mais propensos a serem dependentes passam essas variantes aos filhos. A epigenética, diferentemente, está associada à exposição ambiental.
Pesquisas com gêmeos, que têm DNA praticamente idêntico, mostram como as experiências exercem uma influência tão grande sobre o indivíduo quanto a sequência de genes. Substâncias como tabaco, álcool e outras drogas imprimem suas marcas no material genético do indivíduo. Sem provocar mutações — alterações na ordem das letras —, elas promovem mudanças químicas nas moléculas do DNA. Essas características adquiridas pelos genes podem ser transmitidas aos filhos.
No experimento do Mount Sinai, os pesquisadores expuseram ratos adolescentes a doses de THC. Quando os animais estavam adultos e já não tinham contato com a substância psicoativa, eles foram colocados para cruzar. Os fetos não foram expostos no útero, já que, na gestação, as fêmeas viviam em um ambiente livre de cannabis. Ao atingir a adolescência, os ratinhos demonstraram um comportamento típico de dependentes químicos.
Além de exibir alterações motoras associadas à compulsão, eles se esforçavam e se arriscavam mais que outros animais para acessar uma infusão de heroína deixada no recinto pelos pesquisadores. Análises do sangue dos animais indicaram que eles tinham impressos nos genes alterações químicas que, no cérebro, estão associadas aos sistemas de recompensa, os mesmos implicados no vício. “Não tenho dúvidas de que evidenciamos que a cannabis afeta não apenas quem se expõe a ela, mas as futuras gerações também. Isso deveria ser considerado pelos legisladores que consideram legalizar o consumo da maconha.”
Segundo a Organização Mundial de Saúde, em todo o mundo, mais de 20 milhões de pessoas são dependentes da cannabis, sendo que seu consumo é particularmente alto (30%) entre indivíduos de 16 a 24 anos. “É a população mais suscetível aos efeitos danosos da maconha”, observa Hurd. O principal ingrediente ativo, o THC, age no cérebro ao se ligar a receptores localizados nos neurônios. Essa união desencadeia uma série de reações químicas, regulando o metabolismo, a sensação de prazer, os processos cognitivos e a ingestão de alimentos. Quando o THC superestimula os receptores canabinoides, há uma redução das habilidades de memória, da motivação e, gradualmente, ocorre a dependência.
Busca por comprovação
Estudioso da relação entre epigenética e uso de drogas, o psiquiatra David A. Nielsen, do Bayler College of Medicine, na Inglaterra, diz que as pesquisas que investigam essa associação ainda estão muito embrionárias, o que requer um aprofundamento do resultado alcançado pelos colegas de Mount Sinai. “A epigenética evolui rapidamente. Mas o vício ainda é um campo órfão comparado a outras áreas de pesquisa, como a oncologia”, diz.
Uma revisão sistemática dos poucos estudos a respeito da epigenética e da dependência em ópio, álcool e cocaína, contudo, permitiram a Nielsen avaliar que alterações na expressão do gene influenciam as respostas iniciais e continuadas à droga, ao desenvolvimento da tolerância que leva ao vício, ao afastamento e ao relapso. “Aparentemente, as mudanças epigenéticas estão associadas ao vício mais em consequência da exposição direta à substância do que a uma predisposição biológica”, observa. Mas ele não descarta que essas alterações influenciem, futuramente, a descendência. “Pesquisas sobre mudanças na metilação do DNA provocadas pelo uso de drogas sugerem a possibilidade de a epigenética predispor um indivíduo a uma vulnerabilidade maior à dependência química.”
Para Thomas Kosten, também pesquisador do Bayler College of Medicine, estudos futuros terão de confirmar os resultados de Hurd e verificar se a predisposição ao vício é passada para mais de uma geração. Mas ele diz que esse e outros trabalhos oferecem indícios fortes. “Ainda não temos uma associação causal definitiva entre o abuso de drogas e as mudanças epigenéticas, e as relações estatísticas estão apenas começando a ser replicadas. Contudo, todas as evidências mostram que a dependência e as mudanças epigenéticas não são apenas uma coincidência. Aparentemente, o efeito das drogas sobre a regulação dos genes ocorre em duas direções: a epigenética é um fator de risco, aumentando a predisposição, ao mesmo tempo em que o uso da droga provoca mudanças epigenéticas”, diz.
Venda legal
Em 1º de janeiro, a indústria da maconha recreativa abriu suas portas em oito cidades do estado americano de Colorado, até agora o único a legalizar a produção e o comércio do entorpecente. Até então, esses estabelecimentos só existiam na Holanda, país que permite a compra e a venda de cannabis, mas onde cultivá-la e processá-la são atos ilegais. Nos próximos meses, Washington se juntará ao Colorado. O senado uruguaio aprovou, em dezembro, a produção e a venda da maconha para cidadãos cadastrados, mas a medida ainda não vigora.