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A história, compilada nas Mil e uma noites, tem seu fundo de verdade. O Iêmen e a Etiópia são os pioneiros no cultivo de café. Se, hoje, a planta é mais conhecida pela bebida, no começo, a principal aplicação era medicinal. Existe, inclusive, uma receita do século 10, prescrita a um paciente árabe que sofria de males do intestino. Passado mais de um milênio, a cafeína volta a interessar os médicos, que têm visto na substância ativa um aliado das funções cognitivas.
Pesquisas científicas estão evidenciando o papel do café no combate a doenças degenerativas que afetam o cérebro, como os males de Parkinson e de Alzheimer. Experimentos feitos com animais sugerem um efeito protetivo contra a deterioração motora e o declínio mental que caracterizam, respectivamente, esses dois males. O estudo mais recente sobre as propriedades medicinais da cafeína indicaram que ela pode melhorar a memória de longo prazo, aquela que retém as informações em caráter definitivo.
Professor de psicologia e ciências do cérebro da Faculdade Krieger de Arte e Ciência, na Universidade de Johns Hopkins, Michael Yassa é um grande apreciador de café. Ele juntou o gosto pela bebida à sua linha de pesquisa — memória no envelhecimento e demência — para investigar se a cafeína teria algum efeito positivo sobre o armazenamento de informações. O ponto de partida de Yassa foi o conhecimento prévio de que a substância é um estimulante cerebral.
Depois de conduzir um experimento com 150 participantes, cujo resultado foi publicado na revista Nature Neuroscience, Yassa constatou que o café ajuda a reter algumas memórias por pelo menos 24 horas depois de consumido. Comparado ao grupo que recebeu placebo, os voluntários que tomaram o equivalente a duas xícaras da bebida tiveram mais chances de recordar, no dia seguinte, de uma sequência de imagens visualizadas no laboratório de Yassa. “A cafeína impulsionou a consolidação da memória, um processo caracterizado pelo fortalecimento das informações, tornando-as mais proeminentes”, explica o neurocientista.
Aprendizagem
A pesquisa não foi a primeira a encontrar uma relação entre cafeína e recordações. Estudos prévios já sugeriam uma associação positiva da substância com as memórias de curto prazo, aquelas que serão descartadas depois de usadas, como um número de telefone ou um endereço. “Contudo, os efeitos da cafeína na retenção de informações de longo prazo não haviam sido estudados em grande nível de detalhamento”, diz Astrid Nehling, pesquisadora da Universidade de Medicina de Strasbourg Cedex, da França. A médica é autora de um artigo de revisão publicado no Journal of Alzheimer Disease, no qual analisa os principais achados científicos a respeito de cafeína e cognição.
Ela explica que, de forma geral, nos últimos anos, os pesquisadores estão descobrindo efeitos positivos da substância não só sobre a memória, mas em relação a outras funções cerebrais, como atenção, nível de alerta, diminuição da fadiga e redução de declínios associados à idade. “Entre 60 e 80 anos, a cognição começa a sofrer uma baixa, mesmo em quem não tem doenças neurodegenerativas nem demências. Existe a teoria de que a cafeína pode, em parte, compensar esse declínio por causa de seus efeitos sobre a vigilância (a pessoa se torna mais alerta). Os estudos estão mostrando que, predominantemente, a cafeína melhora, nessa faixa etária, a performance e a sensação de bem-estar”, conta. Quando se compara pessoas mais jovens a idosos, os efeitos positivos em termos de cognição têm se mostrado mais intensos para esse segundo grupo, de acordo com a revisão de Nehling. “A cafeína é capaz de reverter os efeitos do envelhecimento do cérebro, fornecendo mais energia para pessoas mais velhas”, diz.
Por melhorar o nível de atenção, a cafeína também tem sido apontada como um facilitador da aprendizagem. Estudos realizados com crianças e adultos indicam que a substância pode melhorar a capacidade de aquisição de novos conhecimentos em indivíduos muito impulsivos — essa característica de comportamento indica maior suscetibilidade à distração. Contudo, pessoas que já são naturalmente atentas não tiveram ganhos expressivos nesse sentido, segundo os estudos analisados por Astrid Nehling.
O neurocientista Michael Yassa, autor da pesquisa que encontrou associação entre memória de longo prazo e cafeína, diz que ainda não se sabe exatamente como a substância provoca os benefícios cognitivos. “Esse é justamente nosso próximo passo”, diz. Está nos planos da equipe de Yassa realizar testes com ressonância magnética funcional, exame não invasivo que mostra padrões de ativação cerebral, para verificar quais são as regiões estimuladas pela cafeína. Além disso, ele destaca a importância de pesquisas que explorem seus efeitos do ponto de vista molecular. “Temos de saber como a composição química da cafeína é capaz de promover modificações neurofisiológicas”, defende.
Danos
Apesar dos resultados positivos constatados por diversos cientistas, a substância também tem efeitos colaterais detectados em outros estudos. “Mesmo quando se toma uma xícara no fim da tarde, o café pode interromper o ciclo normal de sono”, observa Christopher Drake, pesquisador da Universidade Estadual de Wayne e do Centro de Distúrbios do Sono Henry Ford.
“A privação do sono é um dos fatores que interferem na memória, na aprendizagem e na atenção, então a cafeína também pode ter um efeito negativo sobre a cognição”, diz. Além disso, a substância altera a pressão arterial e o ritmo cardíaco; quando ingerida por gestantes está associada ao baixo peso do recém-nascido e é capaz de provocar ansiedade e mau humor. Estudos também indicam uma relação entre o consumo de café e energéticos à infertilidade feminina e a abortos espontâneos.
“Problemas relacionados ao consumo de cafeína estão sendo percebidos cada vez mais nos consultórios”, observa Jack E. James, médico e editor do Journal of Caffeine Research, publicação científica voltada à divulgação de artigos sobre a substância. “Antes de recomendar a cafeína como facilitador das funções cognitivas, temos de realizar muitas outras pesquisas, pesar os benefícios e os malefícios e, principalmente, descobrir as doses seguras. Às vezes, uma substância pode ser benéfica quando consumida de determinada forma, mas causar problemas para a saúde acima daquela quantidade. Tudo isso precisa de mais investigação”, defende.