Sônia pondera também que, ainda hoje, o sexo é visto na nossa sociedade como um ato não voltado ao prazer. “Impregnada de símbolos religiosos, nossa cultura considera profano o sexo que não se destina à procriação. Isso só dificulta o reconhecimento e o tratamento do problema, que não é tão incomum. Tem me assustado a quantidade de casos que recebo que envolvem a compulsão sexual, manifestando-se na dependência de sites pornográficos, por exemplo”, afirma a psicóloga.
A especialista explica que, em muitos casos, há uma propensão ao desenvolvimento de uma compulsão sexual, e a facilidade de acesso faz com que ela se manifeste. “As pessoas que receberam uma educação em relação ao certo e errado, têm noção de censura, caráter e limites acabam ficando muito mal consigo mesmas e desenvolvem um tipo de neurose obsessiva. A ideia que motiva a compulsão – por exemplo, ver vídeos de sexo com travestis – é considerada uma ideia intrusiva. 'Eu não quero, mas não controlo'. Em alguns desses casos, o tratamento pode incluir medicamentos ansiolíticos e antidepressivos, mas não há uma substância específica para a cura. Isso não existe”, explica Sônia.
Uma característica importante da dependência sexual, assim como de outros vícios, é que o transtorno nunca existe sozinho. “Daí a importância de uma consulta com profissional da área. As descrições isoladas de cada problema existem muito mais para fins didáticos, porque na prática elas nunca estão isoladas. Os sintomas dos pacientes sempre reúnem dois ou três códigos do CID”, define a terapeuta. Mas será que existe um gatilho para o problema, alguma desilusão amorosa, talvez? Segundo Sônia, o gatilho está mais ligado a um quadro de depressão, neurose obsessiva ou ansiedade em excesso, por exemplo.
Como diferenciar um grande interesse pelo sexo – que muitos usam para se vangloriar e alegar que têm o vício – da dependência? A palavra-chave é o sofrimento, segundo Sônia. “Uma fantasia ou interesse pelo tema não causa sofrimento, a pessoa consegue conviver com ela. Quando a necessidade de concretizar uma fantasia provoca dor, seja porque envolve trair o parceiro ou porque implica algum risco, por exemplo, é sinal de uma parafilia”, alerta a psicóloga.
Sônia explica que a confusão vai além do grau de apetite sexual. “Assim como no caso dos alcoólatras, há uma resistência em enxergar o problema”, afirma a especialista. Até mesmo porque muita gente acha 'bonito' ser viciado em sexo, em função das declarações de celebridades – como os atores Michael Douglas e David Duchovny e o golfista Tiger Woods – e também da cobrança por demonstrações de virilidade, no caso dos homens.
Outro aspecto que deve ser considerado na hora de avaliar o caso é o tipo de sentimento. “Só vai chegar ao consultório uma pessoa que tem uma estrutura de personalidade neurótica – todos nós temos nossa dose de neurose, diga-se de passagem – ativa, porque ela preza vínculos afetivos e sociais, limites que provocam a culpa. Pessoas que não sentem essa culpa e não prezam esses vínculos são aquelas de personalidade perversa e geralmente muito sedutora. Provavelmente não vão procurar ajuda, porque não veem nenhum prejuízo nas atitudes, para si ou para o outro”, pondera Sônia Fonseca.
Ela acrescenta que não há um medicamento específico para essa compulsão, mas que é importante avaliar, junto com o médico, o uso de remédios para amenizar os sintomas e dar mais condições ao paciente para enfrentar o processo da terapia.
Consequências e ajuda
Sônia Fonseca diz que as consequências mais extremas do impulso sexual excessivo chegam a afetar a cidadania do paciente. Há uma perda do interesse pela escola ou pelo trabalho e a pessoa se torna improdutiva, incapaz de uma contribuição social. As relações pessoais e a vida a dois também vão sendo progressivamente destruídas. “Não é incomum que o dependente enfrente sérios riscos de suicídio e também se coloque em situações que podem afetar sua saúde física. Há também o risco de uma superexposição na internet, o que ajuda a detonar a relação a dois, caso ela exista”, informa a especialista.
Sobre os grupos de ajuda, Sônia aponta, assim como o próprio Luiz, do Dasa, que eles podem ser uma maneira de aliviar os sintomas, desabafar, tirar aquele peso inicial. “Mas, nesse tipo de reunião, a origem do problema não é tratada profundamente. Os grupos ajudam a evitar recaídas, mas a psicoterapia é essencial para re-significar a causa do distúrbio”, analisa, ponderando que não se fala em 'cura'.
Assim como o grupo de ajuda, Sônia aponta que filmes como Ninfomaníaca são interessantes porque ajudam aqueles que sofrem a perceber que não estão sozinhos. “A primeira reação de quem se reconhece viciado é acreditar que está sozinho no mundo. Saber que há outros como ele/ela é um incentivo para buscar ajuda”, afirma. “O filme francês Belle de Jour, de 1967, com Catherine Deneuve, já trazia esse assunto, mas numa época muito mais fechada que a nossa. De qualquer forma, a compulsão sexual no cinema não é algo novo, mas é sempre importante lembrar que uma vida sexual saudável é voltada para o prazer e para a troca com o outro”, resume Sônia.
Para o diretor da Associação Mineira de Psiquiatria, os grupos de ajuda mútua têm um lugar fundamental no tratamento daqueles que sofrem de impulso sexual excessivo. “O papel dos Dependentes de Sexo e Amor Anônimos (Dasa) é extremamente importante. É onde os pacientes podem falar abertamente sem serem julgados ou criticados. E muitas vezes eles têm a necessidade de falar até para se certificarem que o que eles têm é doença”, conclui.
Mais comum em homens
O Brasil não tem dados estatísticos sobre a incidência do impulso sexual excessivo na população. O que a literatura internacional diz é que ocorre mais em homens e que não é raro como se pensa. Nos Estados Unidos, por exemplo, pesquisas na área sexual apontam uma incidência entre 3% e 5%.
Apesar de a doença ser mais comum entre os homens, no filme 'Ninfomaníaca', Lars Von Trier escolhe uma protagonista mulher, interpretada por Charlotte Gainsbourg. Em relação à incidência, Sônia Fonseca acredita que pode estar relacionada à condição feminina hoje. “Nós, mulheres, fomos à luta, buscamos igualdade de direitos, mas não dividimos as tarefas diárias. Apenas somamos. Essa sobrecarga e aumento de estresse diminuem o tempo disponível para povoar a mente com fantasias e desejos. Temos aí uma contradição: apesar de tanta variedade e oferta de estímulos que temos hoje, muitas de nós não conseguem aproveitar. E quem não ocupa uma parte de seu tempo com isso acaba ficando menos aberta ao sexo”, afirma a psicóloga.
Entrevista com a representação nacional do Dasa
Uma pessoa que sofre por achar que está diante de um impulso sexual excessivo não terá muita facilidade em encontrar grupos de ajuda em Belo Horizonte, conforme contamos no início da matéria. A 'junta nacional' do Dependentes de Amor e Sexo Anônimos (Dasa) confirmou que o grupo mineiro está fechado 'após diversos contatos internos, infelizmente'. Nesta entrevista, no entanto, a representação nacional explica como a entidade funciona.
O Dasa funciona como outros grupos de ajuda a dependentes, a exemplo do AA?
O DASA segue os mesmos princípios do Programa de 12 Passos, 12 Tradições e 12 Conceitos, de acordo com demais grupos Anônimos. Hoje, existem aproximadamente 40 grupos de DASA no Brasil, que iniciou suas atividades no país em 1993. Cada grupo pode trabalhar de uma forma um pouco diferente na questão da entrega de fichas, mas seguramente contamos nosso tempo de sobriedade. Formalmente, durante o evento anual que acontece sempre no mês de novembro, trocamos nossas fichas de tempo de recuperação.
Temos um alinhamento total com o Dasa mundial. Seguimos as mesmas estruturas, organização e princípios. Temos um relacionamento frequente (bimensal) com o nível mundial, para alinharmos nossas principais decisões.
Qual é a principal dificuldade enfrentada pelo dependente até chegar ao Dasa?
Não existe uma resposta única. Certamente, a dificuldade em aceitar que perdemos o controle de nossa vontade e nossas vidas é um fator comum a todos nós e muitas vezes adia ou impede que busquemos a recuperação.
Geralmente, os participantes dos grupos contam com apoio da família?
Grande parte dos membros do Dasa, na medida em que se recuperam, abrem seu anonimato para a família e amigos mais íntimos. Em muitos casos recebem apoio. Por falta de informação, ainda vemos muitos familiares negarem a doença do outro, porque a aceitação refletiria uma derrota familiar e pessoal. Com o tempo, esta aceitação fica mais visível e eficaz.
Os organizadores - ou padrinhos de cada grupo - também são ex-dependentes em recuperação?
Positivo, todos os servidores (sejam na estrutura de serviços ou como padrinhos) são membros do Dasa e passam pela experiência da recuperação da dependência de amor e sexo. Isso acontece tanto no Brasil quanto no mundo.
Qual o índice de abandono?
Infelizmente não temos dados estatísticos nem dos membros nem da sua continuidade, por uma questão de anonimato. Frequentar o Dasa é gratuito e é de responsabilidade de cada membro, não havendo controle de frequência. Porém, de forma geral, vemos que em 20 anos cada vez mais temos membros que seguem com seus programas de recuperação. Muitos se afastam por não aguentar a dor da abstinência mas voltam alguns meses ou anos depois.
Como um dependente de sexo pode entrar em contato com o DASA e verificar se há um grupo na cidade dele?
Pelo nosso site www.dasa.org.br. Todos os endereços e horários estão disponíveis. Como dependemos das atualizações de cada grupo, caso alguém que entre em contato e não receba uma resposta dentro de uma semana; ou ainda encontre uma sala eventualmente fechada, solicitamos que entre em contato direto com o Dasa a nível nacional, pelo e-mail slaa@slaa.org.br (Slaa significa Dasa em inglês - Sex and Love Addicts Anonymous).