Nova Orleans (EUA) e Brasília — Médicos e cientistas têm explorado uma aliada cada vez mais estratégica no tratamento e na busca pela cura do câncer: a terapia genética. Por meio da alteração do código genético, é possível construir antígenos para atacar diretamente o crescimento desordenado das células. Pesquisas nesse sentido foram apresentadas, no mês passado, no encontro da Sociedade Americana de Hematologia, o mais importante congresso da especialidade, e trouxeram resultados promissores para a área.
Em uma delas, a leucemia linfoide aguda recuou em 81% dos participantes submetidos a um tratamento do tipo. Na pesquisa, conduzida pelo médico Stephen Grupp, da Universidade da Pensilvânia (EUA), os cientistas usaram a técnica chamada chimeric antigen receptor (CAR), receptor antígeno quimérico, na tradução livre. Inicialmente, uma máquina filtrou o sangue de cada paciente e separou as células sanguíneas. Os cientistas trabalharam, então, com os linfócitos T – tipo de glóbulo branco ligado à imunidade celular. Essas estruturas foram submetidas a um processo de modificação genética e reinseridas nos participantes para que pudessem atacar as células cancerígenas (veja infográfico).
Em laboratório, as células foram reprogramas e se tornaram “soldadinhos” com a missão de atacar as proteínas CD 19, que, quando há a doença, se manifestam dentro dos linfócitos B – glóbulos brancos ligados ao sistema de defesa. A CAR foi aplicada em 27 pacientes (22 crianças e cinco adultos) que não apresentavam mais resposta a nenhum outro tratamento. Em 22, houve remissão da leucemia linfoide aguda. Um doente permaneceu sem as células cancerígenas por um ano, mas as estruturas voltaram a se reproduzir descontroladamente. Seis pacientes que atingiram remissão em um mês sofreram recaída. Uma das crianças está há um ano e meio livre do câncer.
Diante dos resultados, se não representa um potencial de cura, a terapia pode ser usada como ferramenta para que os pacientes ganhem tempo, avaliam especialistas. “Como no caso de quem precisa de doação de medula óssea, mas ainda não conseguiu o doador, por exemplo. A terapia gênica pode fazer o paciente ficar vivo pelo período suficiente de espera”, diz o membro do Comitê Científico da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale) e coordenador do Centro de Oncologia e Hematologia do Hospital Albert Einstein, Nelson Hamerschlak.
Na avaliação do diretor do Hemocentro da Santa Casa de São Paulo, Carlos Chiattone, o desenvolvimento desse tipo de intervenção representa um salto na oncologia. “É uma terapia dirigida ao alvo. Age diretamente nas células ruins, causando menos efeitos colaterais.” A terapia é cara, custa cerca de US$ 25 mil. Os cientistas acreditam que, quando começar a ser mais usado, o procedimento ficará mais acessível.
Confirmações
Usando o mesmo método que a equipe liderada por Stephen Grupp, um grupo de estudiosos do Sunybrook Odette Cancer Center, também nos EUA, alcançou resultados animadores no tratamento de linfomas de células B e leucemia. Na pesquisa conduzida pelo médico James Kochenderfer, foram constatadas a remissão completa do câncer em seis pacientes e a remissão parcial em seis. Os voluntários tiveram efeitos colaterais, como febre, pressão arterial baixa, déficits neurológicos focais e delírio, mas as reações foram controladas em menos de três semanas. Outros 11 pacientes com linfoma e quatro com leucemia linfoide crônica começaram o tratamento há cerca de dois anos no Instituto Nacional do Câncer dos EUA. Desses, seis tiveram remissão completa; seis, remissão parcial; e uma está com a doença estável. Para os outros, segundo os médicos, ainda é muito cedo para avaliar se a doença está sob controle e em que grau de alívio.
Estudos conduzidos por médicos do mesmo Instituto Nacional do Câncer também foram feitos em pacientes com linfoma e leucemia que já haviam recebido transplante de medula óssea, usando as células dos doadores para fazer a alteração genética. Essa terapia foi conduzida em 10 pacientes. Um deles teve remissão completa e outros três apresentaram redução significativa da doença.
Primeiro teste em 1990
A tecnologia de terapia gênica já é usada há duas décadas, mas tem apresentado resultados mais expressivos nos últimos cinco anos. Em setembro de 1990, pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos realizaram o primeiro tratamento do tipo em Ashanti de Silva. A criança, então com 4 anos, tinha nascido com imunodeficiência combinada grave, uma doença genética que compromete seriamente o sistema imunológico. Os médicos recolheram glóbulos brancos do corpo da menina, cultivaram as células em laboratório, inseriram o gene que faltava nas células e causava o distúrbio e reintroduziram os glóbulos brancos geneticamente modificados na corrente sanguínea de Ashanti. Ela foi submetida outras vezes ao mesmo procedimento porque os leucócitos modificados paravam de funcionar. A menina não ficou curada da enfermidade, mas passou a ter menos resfriados e uma infância mais próxima da normalidade.
Drogas mais eficazes
Combinar estrategicamente medicamentos foi outra alternativa apresentada no encontro da Sociedade Americana de Hematologia, em Nova Orleans, como intervenção promissora contra o mieloma múltiplo, um câncer incurável no sangue. O pesquisador Thierry Facon liderou um estudo com 1.623 pacientes em que foram testadas três combinações de remédios. As conclusões basearam-se na sobrevida resultante dos diferentes tipos de procedimentos.
O mieloma múltiplo é um câncer que faz os glóbulos brancos plasmáticos, produtores de anticorpos, atingirem os ossos. A doença consiste em uma proliferação de clones dessas células, que passam a atacar o corpo no lugar de defendê-las. Como não tem cura, o tratamento resume-se justamente em propiciar maior tempo e qualidade de vida aos pacientes.
O estudo First (Frontline Investigation of Lenalidomide %2b Dexamethasone versus Standard Thalidomide) envolveu 246 centros de pesquisa de 18 países (da América do Norte, da Ásia e da Europa). Pacientes com idade igual ou superior a 65 anos ou aqueles não elegíveis para o transplante foram recrutados. Facon comparou o uso da lenalidomida, usada para tratamento da doença, aliada à dexametasona, um corticoide, com a combinação de melfalano, predinisona e talidomida, em durações diferentes de administração.
O último arranjo – melfalano, predinisona, talidomida – é considerado o tratamento standard da doença. Mas o estudo concluiu que a lenalidomida associada à dexametasona usada de forma contínua aumenta em 22% o tempo de sobrevida dos pacientes em relação às outras terapias. “O resultado é importante porque, quando o tratamento tem impacto na sobrevida em estudos clínicos (com seres humanos), realmente há uma mudança de parâmetros”, avalia Angelo Maiolino, professor de hematologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No Brasil, no entanto, ainda demorará para que o possível novo padrão de tratamento seja aplicado. Isso porque a lenalidomida não tem registro no país. (JC)