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“Parte considerável das divergências e conflitos entre as pessoas vem do fato de elas não se comunicarem, não ouvirem umas às outras e não aceitarem as diferenças”, pontua Nanci Soares, assistente social e professora assistente doutora do curso de serviço social da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp. “Na terceira idade, isso se agrava porque a família tende a não querer ouvir a opinião do velho, inclusive sobre questões que lhe dizem respeito.” Ela frisa, no entanto, que, embora seja o ideal, nem sempre a vontade deles pode ser respeitada. “Muitas vezes, por exemplo, ele quer dirigir um carro, mas não está mais em condições, então a família deve impedir, preservando seu bem-estar e o do outro”.
Já para a espanhola Mayte Sancho, diretora científica da Fundación Matía, a chave da resposta para o dilema da família está em perceber que, no fundo, ele se trata apenas dos direitos que as pessoas têm de decidir sobre sua vida, manterem a dignidade e serem bem tratadas. “Quando tentamos impor a nossos pais modos de vida mais seguros, mas que eles não desejam, devemos perguntar a nós mesmos: ‘Isso é o que eu desejaria para mim?’”, pontua.
E vai mais longe: a verdadeira chave para uma vida mais longa, autônoma e livre não está em para onde levar o idoso, mas em identificar soluções de atenção que cheguem diretamente às suas casas e que complementem os cuidados familiares, como serviços de ajuda a domicílio sociais e sanitários, acompanhamento voluntário e profissionais que coordenem os cuidados e facilitem a flexibilidade na casa dele. Quando isso não for possível, que existam, pelo menos, instituições ou alojamentos que se preocupem em oferecer um modo de vida similar ao de uma vida domiciliar comum.
Independência conquistada
Se é para falar de independência e autonomia na terceira idade, Auxiliadora Peixoto, de 76 anos, ou Dorinha, como é conhecida, logo se prontifica. Ela é hoje, provavelmente, bem mais autônoma e livre do que era nos anos em que vivia com o marido, militar de carreira, morto em 2004. Não que ele fosse autoritário ou ríspido. Talvez fosse excesso de cuidado ou carinho, coisas que Dorinha aprendeu a apreciar e a aceitar desde o início do namoro, quando era uma menina de 15 anos. “Ele era ciumento, sim, me controlava bastante. Só estudei até o quarto ano ginasial e, mesmo assim, ele me dizia que eu nem precisava terminar, porque jamais me deixaria trabalhar. Mas aceitar foi uma opção minha. Em um relacionamento, se nenhum dos dois ceder, a coisa não vai para frente. O amor fala mais alto.
Nascida em Macaí, no Rio de Janeiro, ela veio parar em Brasília em 1980, quando o marido foi transferido. Com os três filhos já crescidos, logo a intenção de retornar ao Rio passou. Dorinha e o marido moraram primeiro em um apartamento na Asa Norte. Depois, foram para um maior na Octogonal. Viveram lá alguns bons anos. “Depois, quando meus filhos se casaram, o apartamento ficou grande demais. Ele queria se mudar de lá, mas eu bati o pé e disse que só saía se viéssemos para o Guará”, conta.
Na época, Dorinha e o marido já estavam bastante envolvidos com o Rotary Club da cidade. Assim, partiram de vez para o Guará, de onde nunca saíram. O envolvimento com o Rotary ela mantém até hoje, religiosamente todas as terças-feiras — exceto este último ano, em que esteve por algum tempo afastada para cuidar de uma pneumonia insistente. Quando o marido morreu, o chão pareceu sumir sob seus pés. Foram dois anos difíceis até um dos filhos sugerir que Dorinha trocasse a casa por um apartamento menor. O que estava à venda no andar de cima do bloco onde o herdeiro morava lhe pareceu ideal. Começava a história de Dorinha vivendo sob suas próprias regras, no seu próprio ritmo.
Hoje, ela se considera uma “felizarda”. Quando precisa andar mais que algumas quadras, conta com um motorista de táxi que lhe quebra todo tipo de galho. A família que construiu com o marido cresceu e, hoje, ela conta com a companhia dos filhos, de oito netos, dois bisnetos, além dos namorados, namoradas, maridos e demais agregados que vão se juntando ao clã.
Mesmo morando em casas separadas, todo mundo continua unido. “Pelo menos uma vez por mês tentamos juntar toda a turma. Estamos sempre juntos.” Mesmo quando o marido se foi, ninguém nem chegou a cogitar a possibilidade de que ela tivesse outra morada que não a dela própria. “Só um genro chegou a comentar por alto a possibilidade de comprar uma casa que tivesse espaço suficiente para que eu pudesse morar também, mas já cortei logo”, diz. Atualmente, Dorinha gasta sua independência correndo o mundo. Descobriu, recentemente, o prazer de viajar fronteiras afora — o marido, ela diz, gostava mais de viajar de carro. No ano passado, visitou a Itália e Portugal com uma amiga de uma agência de viagens. “Eu gosto da minha independência.”
Tempos modernos, soluções modernas
Quem foi que disse que república é coisa de universitário? Em Santos, no litoral de São Paulo, já são três moradias do tipo dedicadas exclusivamente aos idosos. A iniciativa, da prefeitura da cidade, começou em 1996, como uma alternativa aos que moravam em situação precária, muitas vezes em cortiços ou de favor. Hoje, cada morador paga de aluguel o equivalente a R$ 83,62 — algo que cabe no orçamento, já que ter renda entre um e dois salários mínimos é pré-requisito para pleitear uma vaga em uma das moradias coletivas. Os outros requisitos são ter mais de 60 anos, autonomia física e psíquica e nenhum laço familiar na cidade ou, se ele existir, esteja fragilizado. Para Ceiliana Souza Nunes, chefe da Seção de Repúblicas da Prefeitura de Santos, ao contrário de um asilo, onde eles teriam horários determinados para acordar, tomar café, almoçar, dormir etc., na república eles acordam a hora que querem, comem o que querem, recebem visitas a hora que querem. “Eles cuidam das contas, das compras e contam com a companhia um do outro.” Uma vez a cada dia, uma assistente social se reúne, em assembleia, com os moradores para que os problemas sejam tratados abertamente. Tudo o que incomoda é colocado na mesa e soluções são discutidas.
O hotel como lar
Mercedes Urquiza é, talvez, uma das mais cativantes memórias vivas da história do nascimento da capital. Chegou a Brasília vinda da Argentina, sua terra natal, recém-casada, aos 18 anos, montada em um jipe que pouco valia e na companhia apenas do marido, Hugo Maschwitz, e do cachorro, um pastor alemão chamado Fleck. Construiu uma vida cheia de lembranças queridas na cidade e segue colhendo seus frutos, agora compartilhados com as duas filhas, os cinco netos e um recém-chegado bisneto.
Aos “mais de 70” — o máximo que se permite falar da idade é que ela é suficiente para que não precise mais enfrentar filas ou passar horas procurando uma vaga de estacionamento —, Mercedes vive em dois apartamentos conjugados no apart hotel Golden Tulip. Não exatamente porque escolheu. “Acho que fui escolhida”, brinca. A história vai longe: em 2002, a vida de Mercedes passava por mudanças pessoais. Uma taróloga indicada por uma amiga em Alto Paraíso avisou que novas portas se abririam, mudanças surgiriam, e que cabia a ela apenas aceitar.
Ao fim daquele ano, as previsões pareciam estar se concretizando. Um novo projeto profissional exigiria de Mercedes que ela passasse um bom tempo viajando. Como o apartamento no hotel já estava comprado, foi apenas uma questão de unir útil e agradável. “O apartamento da Asa Norte era enorme, me demandava muito tempo. Como precisaria viajar com frequência, achei que era a hora de vir para o flat e concentrar trabalho e casa em um lugar só.” A mudança ocorreu em 31 de dezembro de 2002.
A pioneira conta que não cogita trocar a rotina que mantém no flat por qualquer outra. “Sou exageradamente independente. Mesmo que um dia eu acabe em uma cadeira de rodas — Deus permita que não —, aproveitaria para escrever meu livro, um projeto que venho adiando há anos.” No flat, Mercedes encontra quase tudo que precisa, do restaurante ao salão de beleza. Além disso, no espaço que tem — os dois flats somam uma área de 103m² —, ela mantém a moradia e o escritório. E, embora um hotel à primeira vista possa parecer um ambiente formal, Mercedes prova o contrário: da recepção à cafeteria do hotel, funcionários e moradores a cumprimentam pelo nome, como velhos conhecidos.