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“Violência é violência, seja obstétrica ou de outra ordem, violência é violência. Há crimes para outras formas de violência, o problema é saber se a violência aplicada no trabalho de parto se enquadra em uma das outras condutas já especificadas pela legislação: lesão corporal, maus tratos, homicídio, etc”, reforça o promotor em outro momento do média-metragem.
O documentário é resultado do trabalho de conclusão do curso de direito da Universidade Católica de Brasília. “A abordagem do tema violência obstétrica deu-se por ser de alta relevância social, pois sua ocorrência perdura no tempo, sendo recorrente tanto na rede pública quanto na rede privada de saúde, sem que a população sequer saiba que os maus tratos sofridos implicam uma violação de direitos e que não deve ser aceita como algo pertinente ao procedimento médico”, afirma Letícia Campos, uma das autoras do filme. Clique aqui e leia a entrevista na íntegra.
Letícia afirma ainda que a escolha do tema é justamente pelo fato de a violência obstétrica ser negligenciada do ponto de vista jurídico e social. “Além disso, entende-se que a omissão do Estado brasileiro, no que se refere à proteção jurídica efetiva da mulher parturiente, é um flagrante retrocesso. A tutela é necessária, pois, o poder de escolha da mulher é cerceado e o abuso à sua integridade física e moral ocorre de forma ampla, independentemente de idade ou classe social. Alertar a sociedade sobre os abusos cometidos é determinante para garantir o respeito aos direitos das mulheres”, argumenta.
Exemplos de violência obstétrica
Histórias narradas pelas vítimas de violência obstétrica durante o documentário faz soar o alerta de que a forma como se nasce no Brasil está muito distante do conceito de parto humanizado, mesmo com os avanços que vêm acontecendo. O Sistema Único de Saúde, por exemplo, autorizou recentemente as salas de PPP (pré-parto, parto e pós-parto) para o sistema público.
A dor do parto é um dos grandes tabus que permeia essa discussão e que, em alguma medida, contribuem para os altos índices de cesarianas praticadas no país, já que o procedimento cirúrgico implica em anestesia. Nessa perspectiva, o filme traz relatos assustadores como os casos de episiotomia sem anestesia (corte cirúrgico feito no períneo, a região muscular que fica entre a vagina e o ânus, durante o parto de via vaginal). Letícia Campos alerta que a episiotomia é realizada em quase 90% dos partos via vaginal no Brasil. “Pesquisas recentes apontam que só seria necessária em torno de 15% dos casos. Na maioria das vezes, a episiotomia é realizada sem anestesia, que só é aplicada posteriormente para sutura. O argumento utilizado é que o períneo da mulher está naturalmente anestesiado pelas contrações e dores do parto, ou que não dá tempo para aplicar”, explica.
A médica e coordenadora de saúde da mulher do Ministério da Saúde, Esther Vilela aponta o procedimento como tortura e desmente o argumento do “períneo anestesiado”. “Isso não é verdade, isso é um caso de denúncia”, declara no documentário.
Outra história chocante que está retratada no vídeo é de Viviane Araújo. Ela conta que escolheu a cesariana para não sentir nenhuma dor. “O médico tentou me dar anestesia três vezes e quando ele fez o primeiro corte eu realmente não senti nada, mas quando ele foi fazendo cortes mais profundos eu comecei a gritar e falar que estava sentindo muita dor, que eu estava sentindo tudo. Aí ele falou assim: ‘mas agora eu não posso mais parar de fazer o parto para poder te anestesiar de novo senão o bebê pode morrer’. Aí ele fez o meu parto em cinco minutos, eu gritando desesperada e quando ele tirou a Laura ele me deu uma anestesia para fazer a sutura. Quando eu acordei já estava no quarto. Então, eu nem cheguei a ver a milha filha”.
Inúmeros procedimentos adotados com frequência no Brasil são questionados no documentário: romper a bolsa e o uso de medicamento para acelerar o parto também são contraindicados, segundo Esther Vilela. Além desses, o uso de fórceps sem anestesia – prática que pode gerar lesões graves na mãe, no bebê e até a morte da criança - e a manobra de Kristeller que implica em colocar força no fundo do útero para expelir o bebê. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) é um procedimento prejudicial, ineficaz e que deve ser eliminado.
Outro dado assustador é de uma pesquisa realizada em todo país que revela que nem a lei do acompanhante – obrigatória para hospitais públicos e privados - é respeitada, além de muitas mulheres sequer a conhecerem. E uma das principais razões disso é não existir punição para médicos e hospitais que descumprem a medida. O estudo mostra que 64% das mulheres entrevistadas não tiveram acompanhante e 15.4% sequer sabiam do direito. A separação da mãe e do bebê após o nascimento é outra prática que deveria ser evitada.
Outra informação importante é dada pela psicóloga especialista em obstetrícia Alessandra Arais. “Se a mulher nunca teve um problema mental, tem 25% de chance a mais de ter nessa fase da vida. Então, a mulher está extremamente sensível e ela deveria receber uma atenção especial”.
Segundo Esther Vilela as más práticas são responsáveis pela morte de mulheres e bebês. “A asfixia neonatal é a principal causa de morte neonatal e está diretamente relacionada à qualidade de assistência ao parto”.
Denuncie
Segundo Letícia Campos, uma das autoras do filme, o número de denúncias no Brasil ainda é pequeno. “Primeiro porque falta informação de como proceder e também porque muitas mães ao saírem saudáveis e com o bebê bem só querem esquecer o que passaram”, diz. Para se ter uma ideia dessa realidade, de todas as mulheres entrevistas para o ‘A dor além do parto’, apenas Sheila Britto, que perdeu seu bebê, denunciou.
O promotor Diaulas Ribeiro reforça que alguns crimes não deixam vestígios. “É difícil provar erros e condutas médicas? É. Por que razão? O sistema de justiça, incluindo os promotores e juízes, conhece muito pouco de medicina. E como conhecem muito pouco acabam tendo uma leitura muito elementar do que acontece na relação médico-paciente, apelam para a figura genérica da absolvição por falta de provas”, diz. Para ele, lei sem consequência jurídica no Ministério Público tem pouca finalidade.
Para Letícia Campos a punição não é a solução. “A solução ideal é a educação, mas até chegarmos nesse nível, onde a ética é princípio inabalável, leva um tempo. Por isso é indispensável impedir que a impunidade se estenda de forma a resultar na produção de danos físicos e psicológicos em massa sobre as parturientes, sob pena de grave violação aos direitos humanos e desrespeito à dignidade da mulher. Dessa forma, a punição se torna medida protetiva, seja ela de cunho pecuniário, administrativo ou restritiva de direitos”, conclui.