Quando analisada sob a ótica da violência doméstica, especificamente contra a mulher, a resiliência passa a ser uma ferramenta importante para entender como alguém pode se constituir ou reconstituir, de maneira positiva, diante de uma situação adversa, ainda que o ambiente seja desfavorável. Desde 2004, Liliana Labronici, ex-professora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Paraná, estuda o impacto da violência na saúde da mulher. Em sua mais recente pesquisa, apresentada no XXXI Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro, ela chegou à conclusão de que a capacidade de superação não é inerente ao ser humano. Diante de uma situação de trauma, o sujeito pode ou não se recuperar com facilidade. A boa notícia é que a característica pode ser estimulada.
Veja a continuação dessa reportagem:
Infâncias roubadas: mulheres que resistiram ao abuso físico, sexual e psicológico
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Ela explica que o conceito já é amplamente usado na oncologia, mas, quando o tema é mulheres que sofrem violência, a literatura ainda é esparsa. “Não há estudos suficientes, mas já sabemos que a violência é um trauma que deixa marcas além das físicas.” Transtornos psíquicos, por exemplo, são comuns entre as vítimas. Contudo, ela enfatiza que ser resiliente não quer dizer que a pessoa está bem o tempo inteiro. “É um processo dinâmico, com altos e baixos”, completa.
A tentativa de estimular a resiliência reside, basicamente, na análise do contexto em que a vítima está inserida, como o familiar, o social e o cultural. Uma vez identificado o núcleo mais carente, é feito o trabalho para suprir os elementos ligados às necessidades humanas básicas. Por exemplo: se a violência está afetando a capacidade de a mulher se alimentar ou dormir, trabalha-se primeiro esses problemas. “Todos esses elementos vão repercutir na saúde dela como um todo”, explica Labronici.
Manter contato com entes queridos, segundo a pesquisadora, é outra estratégia-chave para que um trauma dessa magnitude seja superado. A aproximação, muitas vezes impedida pelo agressor, precisa ser estimulada. O processo de mobilização interna, ela explica, precisa começar o quanto antes. No estudo que fez, Liliana conta que acompanhou cinco mulheres em processo de superação. Assim como ela, a Revista do CB procurou exemplos de ex-mulheres, ex-namoradas ou garotas violentadas (às vezes, sexualmente) pelo pai em situação de risco.
Resiliência
A noção de resiliência emergiu nos países anglo-saxões nos anos de 1950, nos trabalhos de psicologia clínica e psicopatologia. Nos Estados Unidos, os estudiosos que verdadeiramente abriram caminho para a sua utilização foram os psicólogos americanos Emmy Werner e, posteriormente, Norman Garmezy e Michael Rutter.
Na psicologia, a resiliência tem sido foco de interesse na pesquisa há mais de 20 anos, e as publicações que surgiram no fim da década de 1990, relacionavam-se com populações em situações de risco como vítimas de violência, crianças e adolescentes em situação de rua, entre outras adversidades. Atualmente, essa tendência continua, porém, com menor intensidade.
Fonte: Processo de resiliência nas mulheres vítimas de violência doméstica: um olhar fenomenológico, de Liliana Maria Labronici
Rede de apoio
Buscar ajuda é fundamental para escapar da violência. Há opções de redes de amparo que vão além da denúncia pura e simples. No âmbito governamental, há a Casa Abrigo, espaço de acolhimento criado em 1993 para mulheres vítimas de violência e seus dependentes (meninos de até 12 anos e meninas sem limite de idade). O endereço é sigiloso e o local é vigiado por policiais 24 horas por dia. Karla Valente, coordenadora do programa de abrigamento da Secretaria de Estado da Mulher, explica que o encaminhamento acontece depois da denúncia. A mulher segue para a casa e os agentes buscam seus pertences, caso ela não possa ir sozinha.
Na maioria das vezes, as mulheres são encaminhadas à noite, período em que as ocorrências são mais comuns. Normalmente, elas ficam com os filhos em um quarto separado. Há oito quartos na casa. Há o acolhimento de assistentes sociais e psicólogos, que realizam uma espécie de diagnóstico, para identificar o nível de risco que ela está sofrendo. Atendimento médico, transferência da escola dos filhos para uma mais próxima da Casa e novos documentos, caso os antigos tenham sido destruídos pelo ex-companheiros, são as primeiras providências. “Lá, atualmente, há trabalhos como aulas de canto, música, artesanais e arte terapia”, detalha Valente.
As abrigadas ainda recebem informações sobre a dinâmica da casa. “Há uma escala de serviços dentro da casa”, explica. “Isso também é terapêutico. É importante que a casa seja como outra qualquer.” Logo, cada uma é responsável por lavar as próprias roupas e manter o quarto limpo, como fariam em suas próprias casas. As mulheres e seus filhos recebem seis refeições por dia. Depois, há a limpeza da cozinha, decidida por escala, toda segunda-feira.
Voltado especificamente para vítimas de abuso sexual, o projeto ViraVida também é uma opção para vítimas de violência. Jair Meneguelli, presidente do Conselho Nacional do Sesi e idealizador, diz que a ideia é dar mais que atendimentos superficiais, como apenas cama, comida e chuveiro. “Queremos dar oportunidade para quem quer mudar de vida”, resume. As atividades começaram em 2008 e têm como principal mote dar cursos de formação profissional às jovens.
Por ano, a carga horária de aulas chega a 900, contando com atendimento psicossocial, da família, médico e odontológico, e uma ajuda de custo de R$ 500 por mês. “Depois que os jovens se formam, nos encarregamos de correr atrás de empresas públicas e privadas para garantir que tenham emprego.” Meneguelli diz ainda que os jovens são acompanhados por mais um ano. Caso precisem de cursos extras, ganham bolsa novamente. Contando o auxílio, o transporte, a alimentação, gastos com professores, psicólogos e com a equipe do conselho nacional, ele estima gastar cerca de R$ 1.500 por jovem. Gastar, não: investir. “Na Fundação Casa, a antiga Febem, se gasta R$ 7mil por menor infrator. E nem adianta. Nós resgatamos dignidade.”
O projeto acontece em todo o Brasil. Além do sistema “S” — formado por Senai, Sesc, Sesi e Sebrae —, Meneguelli convida toda uma rede de enfrentamento, formada por conselhos tutelares, igrejas, Ministério Público, Centro de Referência e quem mais puder ajudar. A partir dessa rede, entra em contato com crianças exploradas sexualmente e os cursos são oferecidos. “Eles chegam muito machucados, são anos de rua”, comenta. “Mas é perceptível que a cara fechada e a desconfiança desaparecem assim que passam a receber instrução, informação.” Os que aceitam participar não desistem. Segundo Meneguelli, a taxa de evasão é em torno de 11% — contra 20% das pessoas que fazem os cursos pagos do Senai, por exemplo.