Presenciar cena de sexo dos pais pode traumatizar crianças

Situação acontece com frequência quando meninos e meninas dividem a cama ou o quarto com o casal. Sem repertório para interpretar o ato sexual dos pais, associam o episódio com a violência. Para alguns especialistas, o impacto poderia ser equivalente a uma situação de abuso sexual

por Valéria Mendes 02/12/2013 09:05

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Já é difícil para homens e mulheres adultos encararem a sexualidade dos pais. O embaraço, segundo a doutora e professora de psicanálise da criança do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cassandra Pereira França, é resultado do tabu que envolve naturalmente o tema. “A sexualidade é alvo de repressão e recalcamento”, afirma. Para a especialista, o sexo entre os pais tem repercussão em todas as idades: “pode ser imaginado, mas não deveria ser visto nunca. Em todas as idades provoca impacto”, observa. Para as crianças, as consequências podem resultar em sintomas que interferem no desenvolvimento e traumas que terão ressonância no futuro.

Reprodução
O diretor de cinema Lars Von Trier abordou o tema no filme 'Anticristo'. Na foto, a criança após presenciar a cena de sexo dos pais (foto: Reprodução)
Segundo Cassandra França, como os pequenos não têm registro anterior da cena de sexo, eles vinculam o ato à violência. “As crianças enxergam um movimento agressivo de um com o outro e costumam ficar imaginando tudo que envolve o episódio – gemidos, sussurros, expressões. Se há um registro anterior de hostilidade ou violência entre pai e mãe, faz uma vinculação direta com isso”, explica.

As repercussões vão depender do que a criança viu e a frequência com que aconteceu o “flagrante”. Meninos e meninas que dividem o quarto com os pais – e essa realidade atinge muitas famílias brasileiras - podem acabar sendo mais expostos a esse tipo de cena, o que vai gerar uma irritabilidade maior na criança. “Elas não têm no que transformar aquilo que viram”, assinala a psicanalista. O efeito é uma angústia muito grande.

De onde eu vim?
A psicanalista Suzana Barroso explica que a criança presenciar uma cena de sexo entre o pai e a mãe vai abrir para ela uma série de questões importantes e estruturantes da personalidade e da identidade. “Ela vai se perguntar qual o sentido daquela cena. Vai se perguntar o que ela (a criança) tem a ver com aquilo, qual o lugar dela naquele cenário. Freud diz que a primeira pergunta que uma criança se faz é ‘de onde eu vim?’. A resposta necessariamente implica saber sobre a vida sexual dos pais”, pontua. Toda criança quer saber como ela foi “fabricada” e, segundo Suzana, presenciar uma cena de sexo mobiliza todo o pensamento sobre a origem da vida, sobre a diferença dos sexos e do lugar dela (a criança) no desejo do outro.

A especialista pondera que esse momento vai acontecer independentemente de a criança presenciar ou não uma cena de sexo entre seus principais cuidadores. “Muito cedo os filhos descobrem que os pais têm vida própria e privada, que comungam um tipo de prazer que não a inclui e que ela tem que lidar com isso”, observa. A psicanalista diz que o sexo sempre vai chegar como algo estranho, diferente, desconhecido, algo que traz um certo trauma exatamente porque vem de fora, do outro, do heterogêneo. E é a partir daí que a criança vai construir sua diferença. “É um trabalho psíquico, de simbolização para dar conta de explicar tudo para ela mesma. As crianças sofrem muito quando não encontram recursos para lidar com isso, quando não são ajudadas pelos pais a equacionar essa resposta. Mas não tem como evitar esses questionamentos. Faz parte da vida, do drama do ser humano”, elucida.

Apesar de essas questões chegarem para todo indivíduo ainda na infância, a psicanalista diz que expor a criança em demasia a algo que ela não está preparada vai ser impactante. “A exposição da vida sexual do outro que possa gerar na criança a fantasia de que ela é objeto daquilo ali em alguma medida é algo muito traumático”, avalia. Suzana explica que a criança precisa ser sujeito dessa descoberta. “Ela precisa subjetificar e não se sentir objeto de uma cena que ela não é a autora”, resume.

A forma como o sexo chega à criança é que a chave dessa questão. “A criança vai necessariamente ter que lidar e elaborar de maneira mais ou menos traumática a reposta para a pergunta ‘de onde eu vim?’. Faz parte do crescimento e ela precisa ser a protagonista dessa conclusão. “Qualquer exposição excessiva em que a criança se vê na posição de objeto vai entrar na dimensão do excesso e do insuportável”, esclarece. Para citar um exemplo, Suzana Barroso fala que na conversa com seus pares, os pequenos conseguem ser sujeito dessa busca por respostas. “Às vezes a criança faz sozinha essa elaboração, na cultura, nas conversas que permitem integrar aquela experiência”, diz.
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As repercussões vão depender do que a criança viu e a frequência com que aconteceu o 'flagrante' (foto: sxc.hu)

Trauma sexual
Psicóloga clínica especializada em psicoterapia do trauma e hipnose ericksoniana, Mariana Silva Lima afirma que presenciar uma cena de sexo entre os pais gera na criança uma formatação de um trauma sexual. “A criança não tem muita noção do que se trata a situação. Tudo o que ela conhece do mundo foi o pai e mãe que trouxeram. Visualizar uma cena de sexo é como uma espécie de agressão, uma situação de violência”, assegura.

A psicóloga pontua que as crianças enxergam no pai e na mãe a figura de proteção. “A leitura que ela faz é que de que os grandes cuidadores estão agindo de forma violenta e isso a choca em vários sentidos”, diz. De acordo com Mariana Silva Lima, como a percepção em relação ao mundo é ainda muito limitada, os pequenos acabam formatando um ato de violação e, em muitos casos, um abuso sexual. “A maioria dos pais não tem a noção real de que uma criança pequena vai entender aquela situação como abuso”, pondera.

Ela explica que o ser humano tem três reações comuns diante de uma situação de perigo: fugir, lutar, paralisar. “As crianças paralisam diante da cena de sexo entre os pais. Situações que geram uma sensação de confusão muito grande tendem a paralisar as pessoas. E é quando congela que forma o trauma”, explica. E não é raro que esse tipo de incidente aconteça já que muitas crianças dormem no quarto dos pais nos primeiros anos de vida. “O relato é constante para quem trabalha com terapia do trauma”, afirma a psicóloga. A especialista conta que, quando trabalhava em uma creche social, e a realidade das crianças mais pobres era a de dividir o quarto com os pais, muitas delas tinham sintomas de crianças vítimas de abuso sexual. “Mas elas só estavam vendo”, esclarece.

Mariana Silva Lima diz que as crianças dão sinais de um possível trauma. “Irritabilidade, comportamento muito sexualizado não compatível com a idade, criança arredia, triste, introspectiva ou uma mudança brusca de comportamento são alguns dos sintomas.

Precauções
Para evitar a situação, a psicóloga é taxativa: “não se coloca filho para dormir na cama dos pais. Mantenha-se firme em colocar a criança no lugar dela”. Mariana Silva Lima reconhece que, muitas vezes, é difícil para os pais fazerem isso. “Somos movidos por sentimento. É gostoso para os pais também. Às vezes é mais fácil, mas não é saudável para relação do casal e nem para a relação pais e filhos. A cama dos pais não é lugar de criança. Ela vai reclamar, vai chorar. Educar é a coisa mais difícil do mundo”, afirma.

A dica principal é estar sempre atento às crianças tanto para evitar que a situação aconteça quanto para perceber que alguma coisa mudou. “Não se sinta culpado porque pai e mãe não têm dez olhos no corpo. Várias coisas vão escapar o tempo inteiro. O importante é acompanhar o desenvolvimento da criança e se alguma coisa estiver interferindo, procurar ajuda de um especialista”, encerra.

A psicanalista Suzana Barroso diz que se a angústia for muito grande, os pequenos conseguem sinalizá-las com pesadelos, ansiedade muito grande, uma rotina perturbada. “É o caso de um adulto ou profissional para ajudar a ler esse acontecimento”, diz. Histórias lúdicas, leves e superficiais podem sempre ajudar as crianças a dar um novo sentido para aquilo que as incomoda.

Cassandra Pereira França diz que as lembranças da infância que ficaram soterradas - alvos de repressão e recalcamento - só virão à tona se por algum motivo forem descongeladas, por exemplo, quando se inicia a vida sexual, ou passar por situação parecida com aquela que gerou o trauma”.

Superação
Mariana Silva Lima diz que o ser humano tem uma capacidade nata de superação. “Esse acontecimento (presenciar uma cena de sexo entre os pais) não vai paralisar por completo a vida da pessoa e não necessariamente gerar sintomas posteriores. A pessoa continua a vida dela. Ela não vai deixar de ser uma pessoa de sucesso, que vai casar ou que vai ter uma vida sexual boa. Cada um vai fazer um registro a seu modo”, avalia. Ela explica que o corpo faz registro de tudo pelo cérebro. “Todas às vezes que alguém vive alguma coisa que acessa algum trauma anterior, retornam todas as sensações que teve no primeiro trauma”, explica. Dessa forma, muitas vezes descobre-se que a criança viveu essa experiência já na vida adulta.