Solomon diferencia, no livro, a identidade dos filhos em duas categorias: a vertical, que diz respeito às características herdadas dos pais, como nacionalidade, religião e etnia; e a horizontal, que dá conta de características genéticas, como surdez ou síndromes, e as adquiridas no decorrer do desenvolvimento que nada têm a ver com os pais e que dificultam a identificação com oss genitores e vice-versa. Ainda que apresentem características completamente distintas, o autor defende que os pais dessas crianças passam por dramas similares: a culpa, a dificuldade de se reconhecer e se identificar com outras famílias, o desafio em aceitar uma vida distinta da sonhada durante a gravidez. “Amor é uma intuição instantânea, a razão pela qual as pessoas têm filhos, mas a aceitação leva tempo”, diz.
O livro foi classificado pelo New York Times como um dos 10 melhores lançados no ano passado. Por e-mail, o escritor falou à Revista sobre o que aprendeu com essas famílias ao longo dos anos em que passou conversando sobre suas vidas e experiências. E diz: o livro não é sobre ser pai de um filho diferente, é sobre ser pai apenas, e pode ser útil a qualquer família.
"Todos os pais são aturdidos pelos filhos algumas vezes, e todos os pais são modificados por eles.”
Ouvir do próprio filho que ele é gay ou de um médico que o filho nunca vai andar ou falar traz mudanças profundas nas vidas dos pais? Quais são as mais evidentes?
Todos os pais imaginam os filhos como extensões de si mesmos e desejam, vez ou outra, ter filhos que confirmem suas ideias do que eles acham que são e do seu sistema de valores. Mas os pais precisam estar preparados para que as vidas das crianças sigam em direções diferentes das imaginadas. Precisam entender que os filhos talvez tenham uma identidade que não seja a que eles contemplavam quando decidiram engravidar. Eles devem estar preparados para a realidade de que a identidade de seus filhos acaba se tornando suas identidades também. Em outras palavras, uma vez que você tem um filho gay ou um gênio, a identidade do pai é em parte como a do pai de alguém que é gay ou gênio. Se você resiste a essa identidade, você vai prejudicar o seu filho e — provavelmente — a si mesmo.
Que sentimentos as famílias que você entrevistou têm em comum? Como elas superam isso?
A maioria dos pais sentem culpa por terem filhos que são diferentes. E por que não sentiriam? Nós costumávamos dizer que os filhos eram gays por causa de mães arrogantes e pais passivos; autistas por causa de “mães-geladeira”; esquizofrênicos porque seus pais nutririam um desejo inconsciente de que seus filhos não existissem; e, até cerca de 200 anos atrás, deformados ou incapazes em função de desejos lascivos reprimidos de suas mães. Nós superamos a maioria dessas posições ridículas, mas a sombra permanece, e famílias são culpadas pelas diferenças de seus filhos, e elas se sentem responsáveis por isso. A melhor coisa que esses pais podem fazer é encontrar uma comunidade de outros pais que também têm crianças com condições similares para ter uma estrutura de suporte. Ajuda muito entender que eles não são culpados, e que essa culpa, em todo caso, é inútil — para a criança e para seus pais.
Já ouvi do pai de um garoto autista que o diagnóstico é como fazer o luto pela criança que você pensava que tinha, para dar à luz outra, diferente. Você encontrou sentimentos parecidos em sua pesquisa?
O sentimento de perda pode ser enorme e catastrófico, mas a maioria dos pais precisa começar o luto pela perda da criança imaginada antes de começar a aceitar a existência de uma criança que não é exatamente como eles queriam. Muitos tentam esconder sua indignação transformando isso em motivo de celebração e anunciam para o mundo o quão maravilhoso seu filho é, e se tornam ativistas pela causa. No entanto, muitos ficam neutros, nem de luto, nem de celebração, simplesmente aceitando o filho como ele é. Eles nunca vão perder completamente a tristeza pelo que eles um dia esperaram, mas vão amadurecer fortemente ligados ao filho que têm e vão encontrar felicidade verdadeira ali.
É possível ao mesmo tempo amar e rejeitar seu filho?
Existem duas exigências separadas para a paternidade, que vêm sendo unidas há bastante tempo: amor e aceitação. Um pai deveria, idealmente, amar seu filho do momento do nascimento. Enquanto todos ouvimos histórias de pais que abusam ou negligenciam seus filhos, minha experiência mostra que a maioria das pessoas ama os filhos. Amor é uma intuição instantânea, a razão pela qual as pessoas têm filhos, mas a aceitação leva tempo. Leva tempo para ver quem seu filho é e para aceitá-lo. Leva tempo para sair da visão narcisista de seu filho como uma extensão de você e chegar à visão mais objetiva de que seu filho é quem é. Por isso, existem, sim, pais que amam seus filhos, mas não os aceitam. Meus pais me amavam, mas inicialmente foram incapazes de aceitar que eu sou gay. Com o tempo, eles mudaram. Naquele período, eu achava que eles não me amavam. Hoje, acho que não era um deficit de amor, apenas um deficit de aceitação.
Alguns pais não aceitaram muito bem o fato de que seus filhos estavam sendo colocados lado a lado, no seu livro, a outros, cujos problemas eram diferentes. Por que essa reação?
O preconceito existe em todo lugar e, escrevendo esse livro, eu encontrei muito dele. Algumas pessoas com autismo disseram que eram muito mais brilhantes que pessoas com síndrome de Down; pessoas que cometeram crimes disseram que não eram tão esquisitas quanto pessoas transgêneras; pessoas transgêneras disseram que tinham uma doença mental como esquizofrênicos; prodígios musicais que não conseguiram entender o que estavam fazendo no meu livro de forma alguma. Eu sempre penso na história de uma pessoa que teve uma filha com nanismo, estava num elevador do hospital e viu uma mulher entrar com uma criança da mesma idade com síndrome de Down. A mãe da menina com nanismo pensou: “Eu posso lidar com a minha, mas eu nunca conseguiria lidar com a sua”. Depois, ela viu que era exatamente isso que a outra mãe pensava. Você se ajusta ao seu normal, e depois pode ser chocante vê-lo amarrado ao anormal de outras pessoas. Nenhum de nós é normal e a negociação da diferença é uma das coisas que temos em comum. O filho de todo mundo é estranho, e, se nós compartilhássemos essa realidade em vez de escondê-la, teríamos uma sociedade mais feliz.
Há famílias que encontram aspectos positivos ao aceitar a diferença?
Muitas famílias encontram significado na experiência de ter um filho diferente. Dizem que alargaram seus corações e almas. Muitas ficam gratas pelas vidas que teriam feito de tudo para evitar.
A internet é um importante facilitador para aproximar as famílias e confortá-las?
A internet tem sido uma enviada divina para essas famílias. Se alguém tem um filho sem nenhuma diferença, acaba se socializando com outros pais, conversa sobre os dentinhos, o treinamento para usar o banheiro, as aulas de futebol. Existem representações da sua vida todos os dias na TV. Se o filho é diferente, você se sente invisível, ninguém sabe o que você está passando e a TV não mostra famílias como a sua. Na internet, é possível encontrar uma comunidade que diz o que é difícil, o que é possível controlar. Existe uma solidão nessa experiência e, quando se entra no mundo de pessoas com experiências parecidas, é uma nova cidadania, com todos os desafios e alegrias envolvidos.
O pensamento “Por que eu?” é recorrente?
Todo mundo pensa “por que eu” toda vez que alguma coisa parece difícil ou inconveniente. Mas muitas famílias acabam procurando uma razão, como uma estratégia de sobrevivência. O que importa não é encontrar um significado. Como uma mãe disse para mim: “Eu, na verdade, penso que não é acreditar em Deus que nos deu essa perspectiva; as pessoas sempre nos presenteiam com esses pequenos dizeres tipo ‘ Deus não nos dá nada além do que podemos suportar’. Mas crianças como as nossas não são pré-ordenadas como presentes. Elas são presentes porque foi isso que nós escolhemos”.
A vida dessas famílias é, de alguma forma, um retrato exagerado do que é a vida de qualquer outra família? Porque todos os pais sentirão culpa, solidão, cansaço em algum momento, mesmo que seus filhos não sejam criminosos, nem autistas, nem tenham síndrome de Down…
Sim, eu acredito nisso 100%. As histórias dessas famílias lidando com diferenças extremas iluminam a realidade de toda a paternidade, de que nenhuma criança é o que seus pais imaginavam, que toda criança vem com desafios indesejáveis, que esse senso de alienação é endêmico à vida em família. Todos os pais são aturdidos pelos filhos algumas vezes, e todos os pais são modificados por eles. Acredito que esse livro seja sobre o que significa ser pai, qualquer pai. Não é apenas para aqueles cujos filhos personifiquem tais extremos.
“Amor é uma intuição instantânea, a razão pela qual as pessoas têm filhos, mas a aceitação leva tempo… Leva tempo para sair da visão narcisista de seu filho como uma extensão de você e chegar à visão mais objetiva de que seu filho é quem é.”