Aos poucos, a ciência começa a entender como as redes de células se relacionam, um passo crucial não só rumo a tratamentos para essas doenças mas à compreensão de funções normais e distintas que vão da formação de imagens ao aprendizado. Os avanços e desafios do estudo dessa orquestra de neurônios são tema de um especial publicado na edição de hoje da revista Science.
Há até pouco tempo, o cérebro era o mais ilustre desconhecido órgão do corpo. Civilizações antigas, como a dos egípcios, creditavam ao coração o papel de centro de controle do homem. Aquela estranha massa porosa dentro do crânio não parecia ter importância; por isso, como as entranhas, era jogada fora no processo de embalsamamento das múmias. Quatrocentos e cinquenta anos antes de Cristo, o grego Alcmaeon de Crotona levantou a hipótese de o cérebro processar as sensações e emoções, uma ideia contestada mais tarde por seu conterrâneo Aristóteles.
Quando cirurgias complexas já eram realizadas em diversas partes do corpo, o cérebro continuava um mistério. Dissecações anatômicas permitiam estudá-lo, mas ver os tecidos mortos era diferente de flagrar os neurônios em ação. Foi apenas em 1922 que se mediu a atividade elétrica do órgão pela primeira vez. Naquele ano, o psiquiatra alemão Hans Berger apresentou o eletroencefalograma, instrumento que, até hoje, é utilizado na investigação de distúrbios neurológicos. De lá para cá, o desenvolvimento de exames de imagem avançados permitiu visualizar em tempo real a atividade do cérebro.
Desde a década de 1990, a ressonância magnética tem sido uma aliada da medicina e da neurociência. Como não é um método invasivo nem emite radiação, o exame é utilizado para diagnosticar anomalias e para estudar os padrões de ativação do cérebro em situações diversas. Ele mede o fluxo sanguíneo no órgão, indicando quais áreas respondem a determinados estímulos externos. É possível, por exemplo, identificar as regiões associadas a habilidades, como leitura, raciocínio lógico e música, ou a sensações, como raiva, alegria ou frustrações.
Visão ampliada
Embora reconheça os inúmeros avanços que só foram possíveis graças ao método, o psiquiatra Hae-Jeong Park, pesquisador do Departamento de Medicina Nuclear da Universidade Yonsei, de Seul, diz que já não basta visualizar áreas de ativação cerebral. Segundo Park, autor de um dos artigos publicados no especial da Science, é chegada a hora de investigar os circuitos associados a essas atividades. “A ressonância magnética não revela as conexões mais intrínsecas nem aquelas que acontecem em termos mais globais”, afirma. Uma das consequências é que podem passar despercebidas aos olhos dos cientistas redes envolvidas com importantes funções do cérebro.
Cada vez mais, os pesquisadores estão convencidos de que é a maneira como os neurônios se comunicam que interfere no resultado dessa “conversa” celular. Assim, o bom funcionamento da memória e da coordenação motora, por exemplo, depende que uma determinada rede entre em ação, ative outra em seguida, e mais outra, sucessivamente, formando um verdadeiro circuito. Da mesma maneira que, quando queimada, uma sequência de lâmpadas de um pisca-pisca atrapalha o conjunto, acredita-se que uma série de problemas, como a depressão, estejam relacionados a uma interrupção na rede. Para cada função — armazenamento de informações, visão, audição, cognição, entre outras — haveria um circuito específico.
O biólogo Edward Callaway, do Laboratório de Sistemas Neurobiológicos do Instituto Salk, na Califórnia, explica que novas tecnologias já estão ajudando a mapear importantes circuitos cerebrais, como aqueles envolvidos nos processos motores e de tomada de decisão. Problemas nessa rede, localizada na região cerebral do núcleo de base, estão associados a doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Huntington. Com pesquisadores dos Institutos Gladstone, Callaway utilizou vírus da raiva para identificar o circuito no cérebro de ratos — esse micro-organismo tem como alvo justamente células localizadas em fibras nervosas do órgão. O material genético viral foi marcado com fluorescente, de forma que os cientistas conseguiram visualizar a rede de neurônios infectados, pois ela ficava iluminada pelos vírus.
“Desenvolver novas formas de enxergar os circuitos cerebrais é algo urgente para a compreensão de doenças que ainda nos desafiam”, afirma Callaway. “Os métodos tradicionais de investigação do cérebro já não atendem as necessidades que temos hoje. Se quisermos entender doenças complexas como o Parkinson e buscar um meio efetivo de tratá-las, temos que descobrir técnicas mais sofisticadas de mapeamento dos neurônios. Se pudermos usar o vírus da raiva como guia que nos aponte distintos circuitos interrompidos por uma variedade de doenças neurológicas, conseguiremos melhorar significativamente nossa compreensão dos mecanismos moleculares por trás delas e, assim, ficar mais perto de encontrar soluções”, afirma.
Depressão
Um tratamento experimental desenvolvido com base no estudo dos circuitos cerebrais é uma cirurgia de estimulação elétrica, utilizada no tratamento da depressão severa. As redes de neurônios envolvidas nesse distúrbio mental são bem conhecidas, embora cientistas acreditem que há outros conjuntos de neurônios associados ao mal, ainda não investigados. Na Universidade de Emory, em Atlanta, a neurologista Helen Mayberg implanta eletrodos no cérebro de pacientes anestesiados, que sofrem da forma crônica da depressão, e para quem as terapias tradicionais não levam a melhoras no quadro.
Durante o procedimento, que dura quatro horas, são feitos buracos no crânio e nos tecidos cerebrais, para que dispositivos metálicos de 12mm cheguem a uma área profunda do órgão e, conectados a um estimulador externo, promovam descargas elétricas que vão ligar os circuitos de neurônios interrompidos. Para Mayberg, a causa biológica da depressão não é a deficiência de substâncias químicas naturais, os neurotransmissores, no cérebro. A cientista acredita que, na realidade, esse desbalanceamento já é uma consequência de um problema primário: o mau funcionamento de determinadas redes neurais. Em entrevista à Science, Mayberg contou que já foram realizadas cerca de 200 cirurgias do tipo, sendo que metade dos pacientes apresentaram melhora significativa.
Autor de um dos artigos publicados na revista americana, Henry Kennedy, do Instituto de Pesquisas do Cérebro e de Células-Tronco da França, acredita que, embora ainda exista um longo caminho pela frente, os cientistas estão próximos de chegar a um mapeamento efetivo do cérebro. “Apesar dos muitos desafios, nossa habilidade atual de mapear a conectividade do cérebro é análoga à cartografia da Era das Explorações”, compara. “O bruto do atlas, embora nem se comparasse ao Google Earth, delineou as fronteiras do mundo, direcionou novas explorações e mudou o mundo de uma entidade intocável a um objetivo tangível. Da mesma forma, avanços tecnológicos na neuroimagem têm levado pesquisadores a considerar o cérebro humano como um sistema que pode ser explorado como um todo.”