Saúde

Pesquisadores afirmam que a fome está na cabeça

Cientistas identificam ação cerebral capaz de regular o apetite e a saciedade em ratos. Responsáveis pelo estudo acreditam que a descoberta pode levar a tratamentos contra a obesidade e distúrbios alimentares

Bruna Sensêve

Para o neurologista do Hospital Sírio-Libanês, Eduardo Mutarelli, o trabalho abre a perspectiva de outras abordagens terapêuticas para pessoas obesas, como, por exemplo, a modulação por estimulação cerebral, como acontece para o Parkinson
  Mais de meio século atrás, experiências com roedores e outros tipos de animais revelaram que as manipulações neuronais de uma região específica do cérebro, chamada hipotálamo lateral (LH, na sigla em inglês), era capaz de alterar diversos comportamentos, incluindo os hábitos alimentares das cobaias. O conhecimento sobre essa regulação, no entanto, estacionou nas décadas seguintes, até que, agora, um grupo de pesquisadores da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, nos Estados Unidos, e do Centro Médico da Universidade de Utrecht, na Holanda, promoveu um novo avanço no entendimento dessa área cerebral. Esses cientistas desvendaram como ocorre a regulação química dos circuitos neuronais da LH, o que, segundo eles, pode levar a tratamentos eficazes para distúrbios alimentares.


“Embora manipulações anatômicas e neurofarmacológicas diretas no LH produzam alterações profundas em uma variedade de comportamentos motivados, eles fornecem uma visão mecanicista limitada das discretas conexões dos circuitos que regulam comportamentos precisos, tais como a alimentação”, afirma Joshua Jennings, principal autor do estudo, publicado recentemente na revista Science.

Em estudos anteriores, percebeu-se que o hipotálamo lateral abriga um circuito de neurônios que pode tanto fazer com que indivíduos saciados continuem comendo quanto levar as cobaias a recusarem comida mesmo depois de muito tempo sem se alimentar. Para descobrir o processo que desencadeia esse controle neuronal sobre a fome, Jennings e colegas focaram uma outra região cerebral, chamada núcleo leito da estria terminal (NLET), cujos neurônios influenciam o LH.

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No experimento, os cientistas ativaram o NLET dos ratos enquanto observavam o que ocorria no cérebro dos bichos com uma moderna técnica que mescla luz e genética. Como esperado, a ação se refletiu no hipotálamo lateral, mas os autores do estudo conseguiram ver que essa influência se dá especificamente nos chamados neurônios glutamatérgicos, que são bloqueados. Segundo os cientistas, a interrupção dessas células em particular é que levou os animais a não só comerem em excesso como apresentarem preferência por alimentos de alto teor calórico.

A partir desse achado, os pesquisadores tentaram uma nova experiência e impediram que as células do NLET bloqueassem os neurônios glutamatérgicos do hipotálamo lateral. Quando isso foi feito, as cobaias se recusaram a comer qualquer coisa. “Até agora, os elementos precisos do neurocircuito responsável pela alimentação e os fenômenos motivacionais de comportamentos observados há cinco décadas por estimulação elétrica do LH eram um completo mistério”, comemora Jennings.

Terapias
Segundo ele, as entradas inibitórias do NLET inervam e suprimem especificamente os neurônios glutamatérgicos de LH para promover a alimentação. Jennings e sua equipe acreditam que, ao revelar os padrões de expressão genéticos e projetar alvos para essas estruturas, será possível identificar novos pontos para a intervenção terapêutica dentro desses circuitos e criar tratamentos para distúrbios alimentares e para a obesidade.

Para o neurologista do Hospital Sírio-Libanês, Eduardo Mutarelli, o trabalho abre a perspectiva de outras abordagens terapêuticas para pessoas obesas, como, por exemplo, a modulação por estimulação cerebral, como acontece para o Parkinson. “Seria um marca-passo implantado na área onde está localizado o circuito neuronal. Poderia atingir pessoas com outros tipos de desordens alimentares, mas a aplicabilidade estaria em grande parte voltada ao obeso.”

A vantagem de uma abordagem desse tipo é a possibilidade de definir os momentos de sua aplicação. “Você liga e desliga o marca-passo. O paciente não teria a vontade de comer eliminada, o que levaria a condições de inanição. A palavra certa é modular o apetite.” Segundo o neurologista, existe uma intenção do Departamento de Neurologia do Hospital em iniciar testes com o marca-passo cerebral em pacientes com obesidade.

O estímulo permanente desses circuitos do hipotálamo lateral também já é um caso conhecido da clínica médica. Segundo o neurocientista Ricardo de Oliveira, do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, no Rio de Janeiro, lesões nesse ponto são raras, mas existem. Elas causam a obesidade hipotalâmica ou anorexia, quando o resultado é inverso. “Dentro do hipotálamo, existem sistemas que trabalham em oposição, um pela saciedade e outro pelo apetite. Se você tem um funcionando mais, como o da saciedade, por exemplo, nós vamos ter uma pessoa ficando sem apetite.” O inverso também acontece. Se o sistema que regula o apetite estiver hiperativo, ele vai ter uma obesidade patológica, afirma o neurocientista. “Mas o que acontece é que a maior parte da obesidade não se deve a uma doença hipotalâmica.”

Ele reforça que a maioria das pessoas acima do peso não possuem uma doença ou lesão cerebral. Na pessoa normal, esses dois sistemas funcionam em equilíbrio. “Quando você come, o sistema de apetite é atenuado. Conforme o tempo passa, o sistema de saciedade vai diminuindo a força, e o de fome aumenta.” Para Oliveira o processo é exatamente um equilíbrio dos dois, que se alternam durante todo o dia. “Há uma abertura de perspectiva para o surgimento de métodos terapêuticos e, por isso, esse trabalho ganhou projeção.”

Estimulação
A terapia de estimulação cerebral profunda (DBS, em inglês) é um tratamento cirúrgico que pode reduzir alguns dos sintomas associados à doença de Parkinson. A técnica usa um dispositivo médico cirurgicamente implantado semelhante a um marca-passo cardíaco para fornecer estimulação elétrica a regiões específicas do cérebro. A ativação dessas regiões bloqueia os sinais que causam os sintomas motores incapacitantes do mal, permitindo ao paciente maior controle dos movimentos corporais.

Lesões
A obesidade hipotalâmica pode ser definida como extensas lesões no hipotálamo que causam alterações metabólicas. Essa condição pode ser observada especialmente em pacientes com craniofaringioma, um tumor embrionário de natureza benigna.