Escrever é uma forma de extravasar e pode se transformar em ferramenta terapêutica

Para especialistas, a experiência é mais imune aos boicotes sociais e pessoais, além de servir de estímulo aos leitores

por Correio Braziliense 26/10/2013 10:00

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Geyzon Lenin/Esp. CB/D.A Press
Júlia tem ataxia congênita e escreve em um blog sobre a doença: "Como muitas pessoas não têm coragem de perguntar, acredito que a gente deve, sim, esclarecer" (foto: Geyzon Lenin/Esp. CB/D.A Press)
Dos diários aos blogs, escrever sobre si é, para muitas pessoas, uma forma de tornar o dia a dia mais leve. Em busca de alívio e desabafo, a escrita tem função terapêutica para quem resolve derramar emoções, dificuldades e atitudes cotidianas na página ou na tela em branco. Organizar melhor o pensamento, refletir com mais profundidade sobre fatos passados ou simplesmente se libertar de sensações ruins são algumas das possibilidades que o registro descompromissado da rotina abre para quem se aventura em busca de mais bem-estar.

Única estudante deficiente em uma turma do curso de artes cênicas da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, Júlia Maia se sentia incomodada por saber que não conseguia expressar muitas questões sobre as dificuldades que enfrentava. Se, de um lado, os colegas não tinham coragem para perguntar o que gostariam de saber; Júlia, de outro, tinha vergonha de se abrir e revelar, pela fala, as singularidades da sua condição. A jovem de 28 anos sofre de ataxia congênita, síndrome caracterizada pela perda da força muscular. “Assim como as pessoas têm vergonha de perguntar, eu tenho de falar”, explica. Em 2009, a estudante resolveu criar um blog para contar e desmitificar por meio da escrita a rotina que leva e mostrar as próprias impressões sobre a vida.

A estudante começou anotando sobre pequenas provocações que recebia ou mesmo sobre indagações que tinha. “Eu quis me expressar, ter minha voz. Muitas vezes, não conseguia contar minhas angústias falando. Escrever foi uma forma de dizer o que gostaria”, lembra. A criação do blog expandiu o alcance das anotações de Júlia e possibilitou que outras pessoas tivessem contato com as reflexões da estudante. Ela acredita que compartilhar a vivência contribui para expandir novas ideias. “Todos podem transmitir conhecimento e aprender com a experiência que o outro tem”, afirma.

“Escrever me traz um bem-estar incrível. Tenho seguidores, pessoas que me acompanham”, diz a estudante. Além de relatar no blog as dificuldades, a estudante deseja mostrar, por meio dos textos, que, apesar da deficiência, pode realizar muitas atividades. “Como muitas pessoas não têm coragem de perguntar, acredito que a gente deve, sim, esclarecer.”

Presidente da International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), a psicóloga Ana Maria Rossi defende que as boas sensações que a escrita proporciona são reais e têm uma fundamentação fisiológica. “Não é meramente uma fantasia, algo banal. Quando a pessoa escreve, uma área do cérebro importante, o córtex pré-frontal, é ativada. Ela é a responsável por esses benefícios”, explica. Uma pesquisa realizada pelo ISMA-BR com 1000 pessoas de São Paulo e Porto Alegre investigou como elas lidavam com situações importantes e buscou compreender que atividades eram negativas ou positivas nesse contexto. Vinte e três por cento dos entrevistados, segundo a especialista, afirmaram que o ato de escrever era um aspecto positivo e que ajudava a aliviar o estresse causado pelos problemas cotidianos.

Geyzon Lenin/Esp. CB/D.A Press
Rayanne Queiroz escreve desde criança. Segundo ela, o hábito sempre foi uma espécie de desabafo (foto: Geyzon Lenin/Esp. CB/D.A Press)
Reinvenções
“Escrevemos para dizer quem somos, descobrir quem somos, inventar as nossas vidas, matar os nosso dragões, testemunhar”, afirma o psicólogo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) Francisco Cavalcante Junior. O especialista considera a escrita uma função vital e uma das maneiras mais eficazes e profundas de analisar a condição humana. “Escrever é, sobretudo, uma forma de investigação para a condição humana, não apenas filosófica e terapêutica, mas uma função criadora de realidades múltiplas.” Dentro dessa abordagem, criar um blog ou recorrer ao papel para se expressar pode ser de fato uma forma de terapia porque permite uma análise deslocada e mais aprofundada de si mesmo. “O ato de escrever torna-se terapêutico na medida em que nos faz compreender e deslocar de lugares prévios”, completa Cavalcante Junior.

A escrita faz, por exemplo, com que o autor rememore situações antigas e as reconstrua. Também permite reinventar, criar novos desfechos e refazer as situações passadas de maneira distinta. A distância para a situação ou a vontade de registrá-la já exige um processo de compreensão maior e que pode resultar em intervenções criativas. “A função de uma escrita terapêutica é a invenção criativa de si, das pessoas e dos mundos que as cercam”, explica o psicólogo.

Escrever de forma livre e constantemente. Essa é a orientação que o psicólogo dá a quem deseja utilizar a escrita como forma de terapia. Segundo Cavalcante Junior, é importante estar sempre preparado, com aparatos tecnológicos ou só com caneta e papel, para o ato de escrever. “Carregue sempre com você o tablet, o celular, o notebook, netbook ou, simplesmente, o meu ainda preferido caderno. Escreva todos os dias e em qualquer momento”, aconselha.

A universitária Rayanne Queiroz, 20 anos, começou a escrever quando criança, em diários. Com o tempo, o registro da rotina deu lugar a reflexões da própria condição e das emoções. Desde a infância, os textos, segundo ela, cumpriram uma função terapêutica. “Mesmo com um olhar mais imaturo, infantil, era uma forma de desabafo. Eu era mais fechada, e escrever me permitia expressar mais”, lembra. Para Rayanne, o maior benefício que a escrita traz é a possibilidade de, ao externalizar os sentimentos que passam pela mente, encontrar alívio. “Ajuda a extravasar”, justifica. A estudante aconselha a experiência como ferramenta para o autoconhecimento. “Os princípios da terapia são buscar identificar os problemas e aprender a lidar com eles. A escrita também faz isso, permite olhar melhor para a situação e ter uma visão mais ampla.”

Para escrever, Rayanne não segue regras, o método é totalmente livre. “Escrevo no diário, normalmente em um lugar tranquilo, sem me preocupar. Penso: ‘Vou escrever porque vai me fazer bem’”, conta a estudante. Por algum tempo, os escritos de Rayanne foram publicados em um blog, que era restrito a alguns visitantes. A existência de leitores, entretanto, comprometeu a liberdade dos textos. “Notei que, no blog, eu me expunha mais, mas não tinha o mesmo efeito”, conta.

A psicóloga Ana Maria Rossi alerta que é preciso cuidado quando se resolve compartilhar os registros. Publicar textos de conteúdo pessoal logo depois de serem escritos pode causar complicações. “É preciso zelar pelo que se escreve e revela. Há o risco de publicar algo que venha a prejudicar emocional e profissionalmente e também expor situações íntimas”, alerta.

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Solange escrevia diários na adolescência. Hoje, é arteterapeuta (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Dos desabafos à profissão
Explorar os benefícios da escrita pode também ser um comportamento integrante de um tratamento terapêutico. Segundo Francisco Cavalcante Junior, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), psicoterapeutas têm solicitado a pacientes que escrevam diários entre as consultas. “E percebo essa técnica como bastante eficaz”, avalia.


Para a arteterapeuta Solange Pereira Pinto, 45 anos, o uso da escrita como forma de terapia se tornou também parte da vida profissional. Solange escrevia poemas e diários desde a  adolescência. Depois de abandonar a carreira na área de direito, fez especializações em psicodrama e em formas de usar a arte como terapia. “Nesse processo de estudo e de autoconhecimento, descobri que a escrita tinha mesmo função terapêutica. Isso embasou o que eu já fazia espontaneamente”, explica.


Com a mudança profissional, Solange criou o ateliê Arte com Texto, que busca utilizar a arte para o desenvolvimento pessoal. Um dos cursos oferecidos no espaço é o de utilização da escrita como forma de terapia. “Noto que as pessoas não sabem que é possível fazer terapia por meio da escrita e que o processo pode ser mediado pela presença de profissionais que as auxiliam.”

Quando adolescente, para Solange, a escrita era um caminho de expressão, de externalizar o que sentia. Segundo ela, o hábito também já trazia, em si, características de um processo terapêutico. Com a especialização, Solange convenceu-se de que a escrita, além de organizar sentimentos, dá consciência às sensações e possibilita ver de fora o que se passa por dentro.


“Não há dúvidas de que o escrever favorece muitas pessoas”, confirma a psicóloga e presidente da International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), Ana Maria Rossi. A especialista explica que, como o pensamento se dá de forma automática, muitas informações importantes para a análise e a compreensão dos fatos podem ser deixadas de lado no dia a dia. “Acontece uma instropecção e uma organização mental e cognitiva durante o momento de escrever. Por isso, ao escrever, a pessoa percebe coisas importantes, que podem passar batidas apenas pensando.”

 

Convite a mudanças
“Escrever pode ser uma excelente forma de mostrar para o mundo o que não está bem. Temos cânceres pessoais e sociais que precisam ser ditos e transformados em escritas. Curioso pensar o câncer como uma experiência de replicação, que, pretendendo a eternidade da sua expansão (de multiplicação desordenada), sequestra (corrói) todas as possibilidades do corpo. Quando escrevemos, também entregamos de volta ao mundo aquilo que nos adoeceu. O testemunho de alguns pode ser um convite para a mudança de outros.”

Francisco Cavalcante Junior, psicólogo e professor da Universidade Federal do Ceará