Só que Michele não esmoreceu. Estava determinada a abrir mão do medo de voltar a ser independente e de estar em um cenário totalmente desconhecido. O destino? Boston, nos Estados Unidos. O período? Dois meses para fazer um curso de inglês. Fortalecida, em agosto passado, arrumou as malas e embarcou com o patrocínio de empresas que apostaram no projeto da estilista: contar, em um diário virtual, como é ser uma mochileira cadeirante. Hoje, o Guia do Viajante Cadeirante (guiadoviajantecadeirante.blogspot.com.br) tem milhares de acessos e centenas de seguidores no Facebook. “Sei que, como eu, existem dezenas de deficientes que gostariam de se aventurar por aí, mas, quando abrimos a porta de nossa casa e nos deparamos com um mundo totalmente despreparado para nos receber, essa vontade fica lá, em um canto escuro, esperando por uma luz”, escreveu no primeiro post.
Com o blog, Michele pretende inspirar outros a criar asas. Para mostrar que é possível, é ela quem se vira, sozinha, na cidade norte-americana, mesmo que esteja na companhia do namorado, que conheceu pouco antes do acidente e também embarcou no projeto. Pegar ônibus, andar de metrô, flanar pela cidade, fazer compras e outras atividades são alguns dos desafios relatados por ela no blog. Para compartilhar essa experiência com os leitores da Revista, Michele contou o que a motivou a realizar essa aventura. Disposta e feliz por ter concretizado esse sonho, a blogueira encerrou a entrevista fazendo um convite simples e direto: “E agora? Bora viajar?”
As viagens
“Sempre amei viajar e, principalmente, o desafio de estar em um lugar diferente sem conhecer ninguém. Por isso, quando terminei o colégio, decidi prestar vestibular e morar no Paraná (minha família é de São Paulo). Logo que me formei, resolvi me mudar de Londrina para São Paulo a fim de ganhar experiência e poder juntar uma grana para viajar. Porém, tudo mudou com o acidente e tive que esperar um pouquinho. Desenvolvi o projeto do blog e encaminhei a algumas empresas, que abraçaram a ideia e me apoiaram muito, como a Central de Intercâmbio (CI), a House (butique de impressão) e a Kana (produtora), inclusive também escrevo no blog da CI. A opção de ir para os EUA foi definida pelo preço, pois ficaria mais barata. A escolha por Boston foi a junção de critérios como acessibilidade, cultura e lazer. A cidade é linda quase totalmente acessível, consigo andar nas ruas e sair sozinha aqui!”
A experiência
“É absolutamente incrível. Apesar de estar com meu namorado aqui, nesses dois meses fiz trajetos como ir à escola, lavanderia e mercado sozinha, peguei metrô, ônibus, fiz coisas que nunca mais tinha conseguido após o meu acidente no Brasil. Aqui, as ruas são acessíveis e todos os lugares têm banheiro acessível, então não tenho a menor preocupação se vou sair de casa e terei como entrar nos lugares. É como se eu voltasse a existir para a sociedade outra vez. Minha maior alegria aqui é me sentir independente e integrada à sociedade.”
A reação dos outros
“Já fui a várias baladas! Aqui, é muito diferente, as pessoas não me olham com pena. O mais engraçado é que, na maioria das vezes, eu defino os destinos. Agora mesmo, estou no laboratório de computação e estão todos aqui esperando que eu termine a entrevista (risos).”
O namoro
“Está sendo maravilhoso morar com o meu namorado aqui, porém estou testando os dois lados. Na primeira vez que peguei o metrô sozinha, subi vários lances de rampa e me comuniquei em inglês. Quase explodi de tanta emoção. Quanto à escola, pedi classes separadas, ou seja, mais um desafio, pois ser a única cadeirante no meio de pessoas de diferentes nacionalidades, sem dominar a língua, é um pouquinho assustador. Porém, a minha cara de pau e a vontade de me jogar nessa viagem me ajudaram a fazer inúmeros amigos. Os passeios, a maioria fazemos juntos, pois a turma é a mesma, porém conduzo a cadeira para ver a acessibilidade e me testar. O mais fofo de tudo são os amigos que fiz por aqui e que me ajudam também quando minha pressão não está legal.”
Planos para um livro
“Não sei se lançarei um livro, mas gostaria muito de dar continuidade ao projeto. Recebi inúmeros e-mails e mensagens de outros deficientes e não deficientes que se identificaram com o blog. Inclusive, conheci uma cadeirante brasileira que mora aqui há oito anos e me disse que, após me conhecer, ela se sente motivada a fazer mais coisas e a se aventurar. Acho que quase não existem cadeirantes viajando no Brasil ou fora. O tabu de que os deficientes são pessoas frágeis ainda existe, e a falta de informação e de interesse do setor de turismo pelos deficientes ajuda a desencorajá-los. A Central de Intercâmbio (CI) me deu todo suporte, mas raras agências fazem isso. Quero muito continuar esse projeto e compartilhar minha experiência com pessoas que, como eu, sonham conhecer o mundo.”